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A realidade das chancelas judiciais às mistanásias brasileiras?

A Mistanásia, tida como uma morte precoce, miserável e evitável de um indivíduo, socialmente vulnerável, em decorrência da violação de seu direito a saúde, é fato notório à realidade brasileira desde muito antes da pandemia da covid-19.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Atualizado às 10:30

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O direito à saúde no Brasil é de longa data um grande e inegável problema. A falta de estruturas hospitalares adequadas, a ausência de mão de obra em um número satisfatório e de pagamentos a contento pelos trabalhos prestados aos profissionais da área, a dificuldade para a aquisição de insumos básicos, em suma, decorrentes de uma má gestão assertivamente crônica, são pontos que de longe deixam de fazer parte apenas da atualidade, já que são históricos.

Somados, todos eles colocam em xeque nas rotinas em saúde, há muitos anos, os princípios da Bioética apresentados por Tom Beauchamp e James Childress, a saber, a Beneficência, a Não Maleficência, a Autonomia e a Justiça.

Não é de agora que muitos são os casos de pacientes que faleceram ou que sofreram complicações sérias em decorrência da ausência do que a eles se fazia necessário, diante da impossibilidade de se tentar amenizar as dores que sentiam ou de terem suas vidas salvas, com toda a dignidade que estas práticas precisam carregar com elas.

Inúmeras são as pessoas que não puderam efetivar suas vontades e que, por consequência, não tiveram qualquer respeito à própria autonomia, já que a elas, em incontáveis casos, não foi dada, se quer, a oportunidade de escolher.

Pessoas que não conseguiram ser beneficiadas e acabaram por ser maleficiadas por todo um sistema que é defasado e corrompido há anos, e que vieram a sentir na própria pele a violação da garantia fundamental do direito à vida e à saúde, vindo a compor, em síntese, um triste cenário de Mistanásia brasileira.

A Mistanásia, tida como uma morte precoce, miserável e evitável de um indivíduo, socialmente vulnerável, em decorrência da violação de seu direito a saúde, é fato notório à realidade brasileira desde muito antes da pandemia da covid-19.

Inúmeras pessoas, Brasil afora, perderam suas vidas de maneira precoce e miserável, à espera de algum procedimento que, caso tivesse sido realizado a tempo, teria evitado ou, ao menos, teria tentado evitar, a morte daquele que nesta situação se encontrava.

Todavia, com a pandemia e em decorrência de todas as complicações em saúde que dela surgiram, este cenário se tornou exponencialmente agravado.

Diante da disseminação galopante do novo coronavírus, a Mistanásia passou a ser ainda mais latente e concreta, em decorrência das urgentes necessidades de utilização de leitos de UTI, de medicamentos específicos para problemas cardiorrespiratórios, de intubação, de tubos de oxigênio, de equipes técnicas preparadas para lidar com especificidades tão minuciosas envolvidas nesta realidade, as quais, por restarem indisponíveis em uma grande parcela de casos, acabou por levar a óbito, de maneira precoce, um elevado número de vidas em território brasileiro.

A morte precoce de uma população que adoeceu em uma escala de proporções gigantescas e que não encontrou, em tempo hábil, o amparo de que necessitava, em decorrência uma reiterada e diminuta possibilidade de efetivação dos direitos a que faz jus, somada à uma constante elevação do número de doentes, são fatos públicos e notórios, que trazem preocupação e que merecem reflexão.

É sabido que para a amenização das contaminações pelo novo coronavírus, o comportamento social tem grande impacto e notória relevância. Na medida em que individualmente se busca pela adoção das práticas recomendas pela Organização Mundial da Saúde, como o uso de máscaras e de álcool em gel, o hábito de se lavar as mãos com a maior frequência possível e de igualmente se higienizar os produtos de que se fará uso, a adoção de condutas que evitem quaisquer tipos de aglomerações e uma exposição social apenas para o que for essencial, resta demonstrada a consciência social de cada um sobre os impactos advindos dos próprios atos para com as próprias vida e saúde e para com a vida e saúde dos que são próximos.

Porém, a crescente necessidade de internações e a busca por tratamentos, cada vez mais escassos, por leitos hospitalares e por tudo o mais que se faz necessário para amparar a luta de pacientes graves acometidos pela covid-19, são reflexos de que as práticas individuais estão muito aquém do que pode ser considerado como satisfatório, somando-se à ausência delas há igualmente uma inegável ausência de políticas públicas satisfatórias a repercutir em uma atenuação de um cenário que pode ser chamado minimamente como devastador.

Responsabilidades ponderadas, fato é que diante dos elevados números de casos e de uma oferta em caráter diminuto sobre o que se faz necessário para salvar a vida dos doentes, muitas são as pessoas que têm acessado o Poder Judiciário, a fim de que lhes sejam deferidos pelo Poder Público os pedidos relacionados à manutenção de suas vidas, em especial quando os casos dos pacientes acometidos pela covid-19 são graves.

Estas crescentes judicializações por pacientes graves acometidos pela covid-19 buscam, de uma maneira resumida, por uma chancela judicial que lhes garanta a satisfação do direito à vida e à saúde, com a determinação de que haja a disponibilização das vagas e dos tratamentos que se fazem necessários ou, em uma análise mais contemplativa, um socorro Judicial para a manutenção da própria sobrevivência.

Em decorrência das judicializações, algumas decisões recentes proferidas por alguns Tribunais Brasil afora, merecem atenção, em especial àquelas que indeferem os pedidos de internação em leitos de UTI (algumas podem ser consultadas mediante buscas livres pela internet, a saber: TJRS - Agravo de Instrumento 5038768-65.2021.8.21.7000; TJMS - Autos 1010343-97.2021.8.11.0041 e TRF5 - Autos 0804176-59.2020.4.05.8100).

Estas decisões, quando analisadas, ainda que com o mínimo de aprofundamento, causam imenso desconforto e nos levam às ponderações sobre as quais se considera serem importantes algumas reflexões, sem a menor pretensão de esgotá-las.

As decisões de indeferimento às ações interpostas por pacientes que acometidos pela covid-19 precisam ocupar algum leito de UTI e receber atendimento e tratamento adequados em decorrência das complicações advindas das infecções ou reinfecções ao novo coronavírus, se fundamentam, ao crivo de alguns Magistrados, no fato de ser público e notório o colapso vislumbrado na saúde brasileira, no entendimento de que decidir em contrário seria preterir um paciente a outro, haja vista que não é dado ao Judiciário poder sobrepor aos critérios técnicos científicos próprios dos profissionais da saúde a fim de eleger entre este ou aquele paciente que possa vir a ocupar as vagas a serem disponibilizadas, e ainda na explanação de que, diante desta somatória, apenas um milagre poderia salvar as vidas envolvidas nas demandas.

É inegável que as dificuldades relacionadas à saúde brasileira têm um considerável histórico, o que inclusive, já pontuamos no início desta exposição.

Igualmente, é de conhecimento jurídico primário que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a saúde é um direito social cuja salvaguarda é de responsabilidade solidária entre todos os entes da Federação, ainda que, na prática, seja igualmente elementar a ciência pública a respeito da dificuldade de recursos a contento a satisfazê-lo, em especial pelos pequenos Municípios, impossibilitados de amparar a contento os seus cidadãos por uma infinidade de motivos, resumidos à uma ausência de recursos financeiros satisfatórios quando equiparados a entes federativos de maior alçada tributária.

Assim, considerar que o colapso na saúde é decorrente da ausência de recursos e que por isso resta inviável o deferimento dos leitos de UTI que se fazem necessários, como fazem assegurar alguns Magistrados, é medida apta a configurar um peso esmagador à uma supervalorização de custos que, salvo melhor juízo e se o caso de serem realizadas as apurações numéricas esmiuçadamente necessárias, podem ainda restar comprovados como existentes, em detrimento à uma desconsiderada valoração das vidas envolvidas, corroborando com uma violação contundente à toda e qualquer dignidade humana que se pudesse se aventar na velha dicotomia entre custo e valor.

As decisões que indeferem as internações em leitos de UTI mostram que se olvidam estes mesmos Magistrados que as proferem a respeito de disposições legais vigentes, claras e coercitivas, no sentido de que, por ser solidária a responsabilidade pela saúde entre todos os entes da Federação, igualmente por eles devem ser praticados todos os esforços necessários, em iguais condições, a fim de se amparar a vida daquele que está na iminência da morte, de maneira irretocavelmente comprovada.

Esta afirmativa implica em dizer que, reconhecidas a responsabilidade solidária entre os entes federativos e a impossibilidade de custeio do que se faz necessário por apenas por um deles, todos os valores e trâmites que se fizerem necessários para amparar vidas e amenizar dores devem ser esgotados, igualmente, de maneira conjunta.

Assim, a responsabilidade financeira, por exemplo, pelos custos de transporte e pelo pagamento de profissionais a realizar locomoções de pacientes para localidades diversas de suas residências, quando se façam necessários, pertence aos cofres públicos, exatamente na proporção do que for despendido pelo ente federativo envolvido nesta dinâmica sempre que ela se faça presente, uma vez inexistente outra alternativa àquele que, na iminência de sua morte e numa tentativa de salvaguardá-la, busca se socorrer da via judicial e que precisa do amparo Estatal para sobreviver.

Os decisórios revelam ainda um total silêncio a respeito de ser possível, uma vez comprovada como impossível a alocação de pacientes em hospitais públicos localizados em comarcas diferentes às dos autores das ações no sentido do que aqui se trata, a determinação judicial sobre a responsabilização do Poder Público pelo pagamento das despesas a serem despendidas perante a esfera privada por aqueles que precisam ter suas saúdes e suas vidas amparadas.

Uma vez inexistentes as vagas necessárias em hospitais públicos, ainda que em geografias distantes, deve-se determinar o encaminhamento para a esfera privada dos pacientes que delas precisam fazer uso, sendo do Estado a responsabilização pelo custeio das despesas oriundas destas conduções, de maneira a se promover todos os esforços pela salvaguarda das vidas que evidenciarem essa necessidade e que restarem sem quaisquer outras alternativas.

Desta feita, exatamente por não ser dado ao Poder Judiciário a possibilidade de sobrepor aos critérios técnicos científicos próprios dos profissionais da saúde, restando os julgadores impossibilitados de eleger entre os pacientes que possam vir a ocupar as vagas a serem disponibilizadas, há de se considerar que uma determinação judicial que nega um pedido de internação em um leito de UTI precisa se valer de maior aprofundamento e de elementos jurídicos mais palpáveis para que seja efetivamente justa e contemplativa, não sendo os custos envolvidos nas práticas necessárias o crivo máximo a nortear qualquer decisório.

Os caminhos até aqui trilhados precisam ser revistos e complementados, como por exemplo, aqueles que levam à possibilidade de ser auferida a quantidade de vagas disponíveis em leitos de UTI junto à esfera pública.

Em tempos de necessárias readaptações e de inovações, porque não se aventar a respeito da possibilidade de que ao Poder Judiciário seja possível acessar a lista de leitos de UTI disponíveis junto ao sistema público e igualmente junto ao sistema privado, seguida, igualmente, por uma ordem a ser proferida por ele de que sejam realizadas todas as práticas e medidas necessárias de alocações e de transferências aos que precisam fazer uso de internações hospitalares tão específicas de forma solidária a todos os envolvidos nesta dinâmica.

Com estas especificidades aventadas, se o caso de consideradas, nos aventaríamos a dizer que então, somadas as hipóteses às particularidades já dispostas neste texto, restariam então os decisórios aqui considerados, inegável e efetivamente justos e contemplativos.

A aplicabilidade da lei ou, se o caso, da analogia e dos costumes, é o que possibilita ao Juiz da causa, no exercício de sua atividade jurisdicional, efetivar o papel de proteção do Estado àqueles que dele necessitam, estendendo a mão e dando suporte a quem precisa de socorro, com a prolação de decisões que reflitam a ponderação e a livre apreciação de todos os fatos e de todas as provas, sempre de maneira fundamentada.

Decisões de indeferimento, como as que temos visto, evidenciam julgados nos quais há um afastamento da lei e uma absoluta consideração a respeito de uma velha máxima, fundamentada na analogia e no costumes de ser o Poder Público, sempre que presente como parte em uma ação, considerado como uma pessoa jurídica de direito público sobre a qual incide a premissa de ser parte detentora de recursos parcos a tudo que se faz necessário de ser despendido por ele no exercício de suas atividades, sem grandes aprofundamentos, de maneira injusta e desacertada, como mais um ponto histórico brasileiro, triste, mas irretocável em incontáveis casos.

Por esta razão, decisões fundamentadas em uma ausência de recursos por parte do Poder Público, seguidas de um clamor por um eventual milagre, como se tem visto, acabam por refletir em uma realidade na qual uma população que há muitos anos já é vítima de Mistanásia e que tem a impossibilidade de efetivar com plena satisfação todos os princípios Bioéticos que lhes são garantidos, reste chancelada judicialmente como à mercê da própria sorte.

Natalia Carolina Verdi

Natalia Carolina Verdi

Advogada, especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, especialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, mestre em Gerontologia pela PUC-SP, professora convidada, palestrante, autora, blogueira no blog Direitos do Longeviver, junto ao Portal do Envelhecimento.

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