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Em vez de cancelar, dialogar

Cancelar é o ato de mobilizar pessoas para interromper o apoio a um artista, um político, uma empresa, um produto ou uma personalidade pública devido à demonstração de algum tipo de postura considerada inaceitável.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Atualizado às 12:27

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A onda de cancelamento está intensa. Empresas, organizações, influenciadores e famosos vão do céu ao inferno em poucas horas por conta de uma palavra ou um comportamento considerado inaceitável por alguns, do ponto de vista ideológico ou comportamental.

O dicionário australiano Macquaire elegeu o termo "cultura do cancelamento" como expressão do ano, em 2019, mas o ato de cancelar continua atual. Foi o que aconteceu com a atriz Thaila Ayala, que tentou criar uma marca de roupa com o nome vir.us e com a Bombril, que retirou do mercado uma esponja de aço com o nome de Krespinha depois de receber acusações de racismo.

Cancelar é o ato de mobilizar pessoas para interromper o apoio a um artista, um político, uma empresa, um produto ou uma personalidade pública devido à demonstração de algum tipo de postura considerada inaceitável.

De acordo com o estudo promovido pela agência Mutato, o cancelamento é um fenômeno próprio das redes sociais e do universo virtual e costuma se manifestar de três formas:

1. Boicote - ação direcionada para a crítica de instituições com intenção investigativa e de debate, mas que com o tempo é esquecida.

2. Ban - originária da palavra banimento, também se estende pouco no espaço de tempo, no entanto, é mais voltada para a crítica de pessoas, com maior ou menor anonimato, analisando comportamentos pontuais que foram incoerentes ou impopulares. A imagem do cancelado se torna pública e pode prejudicar contratos profissionais com empresas pelo receio do cancelamento da pessoa jurídica relacionada.

3. Linchamento virtual - ocasionado pelo acúmulo de comportamentos tido como reprováveis que desencadeiam o cancelamento total, se alongando na crítica e represália social, a depender da gravidade da gafe cometida.

Qualquer que seja o tipo de cancelamento praticado e independentemente da natureza do "erro" identificado pela comunidade digital, é necessário refletir sobre a origem e as consequências dessa prática.

Críticas sempre existirão. É natural do ser humano querer dar sua opinião contra ou a favor. O que torna a questão delicada é o fato de não haver mais um diálogo. As redes sociais nos deram o poder de fala e isso precisa ser comemorado, já que todos têm o direito de se posicionar. O ponto de atenção está no fato de que os algoritmos fazem o internauta mergulhar num feed no qual todos têm opinião parecida, o que traz a falsa impressão de unanimidade coletiva de ideias e valores. Nesta bolha, os diferentes não têm direito de dar opinião ou de se defender. É assim que começa a polarização. Falamos em diversidade, em direito da livre expressão, mas poucos estão abertos ao diálogo ou a ouvir opiniões divergentes.

Há 30 anos, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) trouxe normas de caráter essencialmente principiológico e colaborativo entre as partes, com destaque para os parâmetros de boa-fé, transparência e informação estabelecidos para harmonizar as relações consumeristas. Mas o que o CDC não previu foi a parte comportamental do consumidor como cancelador, dentro de uma infantilização da opinião pública.

Assim, o ato de cancelar uma pessoa (física ou jurídica) associa-se ao descarte de uma relação e ao cerceamento de defesa, inibindo o perdão (social, jurídica, pessoal) e o direito ao esquecimento, valendo-se da maior ferramenta de interação e informação mundial, a internet, para impor amarras sociais.

Em meu livro Uma Lei Para Todos eu dediquei um capítulo para a discussão do consumo na era da geração conectada. Não há como não reconhecer as mudanças que a internet trouxe para nossa forma de escolher e comprar os produtos e, consequentemente, para as relações entre empresas e consumidores. Se antes o comprador insatisfeito ligava para o SAC para fazer uma reclamação, hoje ele vai para as redes sociais para elogiar e para reclamar. Esta proximidade é uma conquista que começou lá atrás com o CDC e deve ser comemorada. O efeito colateral indesejado é o cancelamento e a dificuldade de harmonização. Se uma das partes não está aberta a dialogar, a solução para o problema fica mais difícil.

A evolução humana se dá com a troca e não com o isolamento. Teremos um mundo menos polarizado e menos agressivo quando o cancelamento der lugar ao diálogo. Indivíduos e empresas precisam buscar harmonizar as relações, exercitando a escuta ativa e a empatia para entender o outro lado. Só assim evoluiremos como sociedade.

Ellen Gonçalves Pires

Ellen Gonçalves Pires

Advogada, sócia-fundadora de Pires & Gonçalves - Advogados Associados. Especialista em Direito do Consumidor. Referência em Resolução de Conflitos e em Contencioso de Alta Complexidade.

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