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Do Édipo Rei ao juiz-Édipo

Ou da tragédia grega à tragédia (judicial) brasileira: o que ainda podemos aprender com os gregos antigos.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Atualizado às 15:50

Poder, política e justiça: a tríade sobre a qual estamos falando

Se Ronald Dworkin, ao seu tempo e lugar, concebeu a figura do juiz-Hércules1 como sendo aquele magistrado dotado de capacidade e sabedoria sobre-humanas, entendendo o sistema jurídico como integridade, como este filósofo denominaria a figura de um certo tipo de juiz, gestado e criado nesta "terra adorada, entre outras mil", exato oposto em capacidade, sabedoria - e ética - se comparado ao juiz-Hércules? Diria o filósofo norte-americano que teríamos dado azo ao aparecimento do juiz-Édipo?

A arte detém um importante papel simbólico na leitura crítica daquilo que se apresenta diante de nossos olhos, fazendo emergir significação, entre tantos outros aspectos, do poder-político2 estabelecido. É neste sentido que o legado artístico deixado pelos gregos antigos, mesmo após milênios do fim desta civilização fundante do Ocidente, ainda reverbera sobre o que vivemos e nos ajuda a entender a imbricada relação entre poder, política e justiça na contemporaneidade brasileira. É do palco montado por esta tríade que se torna possível observamos certas semelhanças entre a tragédia grega de Sófocles, e a tragédia judicial brasileira, do qual emergiu um novo assombro jurídico, o qual denominaremos de juiz-Édipo.

Como é de conhecimento até mesmo para aqueles não tão versados nas letras clássicas, Édipo Rei é uma tragédia grega escrita por Sófocles, por volta de 427 a.C., e que narra a jornada do rei de Tebas, filho de Laio e de Jocasta, o qual acaba por dilacerar os próprios olhos a fim de se tornar cego diante do fato de ter assassinado seu pai e ter-se casado com sua mãe, gerando com ela dois filhos e duas filhas. A abordagem dos desdobramentos da saga mitológica é aqui trazida en passant porque já amplamente lida e estudada, nos interessando muito mais duas reflexões de fundo sobre esta tragédia, as quais procuraremos explorar vis-à-vis à realidade judicial brasileira: (I) a relação entre poder e saber do soberano e; (II) a leitura de Édipo Rei como "a história de uma pesquisa da verdade"3.

Tais propostas são chaves de leitura sobre a tragédia de Sófocles e que foram trazidas por Michel Foucault em seu célebre conjunto de cinco conferências, mais precisamente na segunda delas, proferidas em janeiro de 1973 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, reunidas e organizadas na obra denominada "A verdade e as formas Jurídicas". Tendo referida obra como aporte teórico para a presente análise, a nós será permitido propor, mutatis mutandis, os contornos do que designamos como juiz-Édipo e seu cinismo4 dentro da tragédia judicial brasileira.

Um primeiro aparte: a tragédia judicial brasileira

A tragédia judicial em questão, como o leitor já deve ter pressuposto, diz respeito à forma de condução da denominada operação "lava jato", bem sintetizada pela Exma. Ministra Carmen Lúcia, na sessão do dia 9.3.21, durante o julgamento do Habeas Corpus 164.4935pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao ecoar superlativo do qual não olvidaremos tão cedo: "gravíssimo". Durante a tarde e noite do dia 23.3.21 assistimos à continuidade do julgamento, decidindo a Segunda Turma, por maioria, pela suspeição do então magistrado. Dada a importância da decisão alcançada pela Segunda Turma à efetividade de um processo justo e verdadeiramente democrático, não há dúvidas de que este feito ficará gravado para sempre nos livros de Ciências Humanas e Sociais para ser estudado, denotando a atuação temerária, para dizermos o mínimo, entre acusação e julgador.

E desde já importante adiantar: a par da confirmação, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, da incompetência do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba em que atuou o juiz-Édipo (HC 193.726), na qual se pode anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, julgamento designado para o próximo dia 14.4.21, muito foi perdido um pretenso herói, sintoma dos tempos sombrios em que vivemos. Esta mácula está talhada em pedra não só em nosso Direito, mas também no processo democrático eleitoral, o qual fora evidentemente influenciado por ele. Frisamos: o juiz-Édipo atua no palco judicial alicerçado sobre o tripé do poder, da política e da justiça. Até mesmo por isso devemos estar atentos para que novos capítulos desta tragédia anunciada não se repitam, haja vista que o juiz-Édipo não se esgota de modo personalíssimo, podendo espalhar suas raízes nefastas por outras veredas. Por isso devemos zelar pelo fortalecimento do processo enquanto instrumento à concretização da justiça e da democracia, o qual deve ser conduzido de modo imparcial pelo julgador. Preteridas tais condições, morto estará o Direito e enterrada a democracia. O miasma jurídico brasileiro deve sempre ser identificado para não se permitir crescer, tal como determinado pelo rei Apolo, pela voz de Creonte6, na tragédia grega.

Um segundo aparte: o encontro do Édipo Rei no juiz-Édipo

Na leitura foucaultiana de Édipo Rei, joga-se luz sobre a relação existente entre o saber-poder7 do protagonista, o qual é eivado, em forma e conteúdo, de tirania. Édipo sabia demais, mas "unia seu saber e seu poder de uma certa maneira condenável que a história de Édipo devia expulsar definitivamente da história"8. E será precisamente a possibilidade de modificação, pela prova, do eixo sobre o qual gravita a relação de detenção do saber e do poder dentro da tragédia grega que permitirá o confronto e o alcance da verdade em face do soberano.

Na tragédia judicial brasileira não é diferente. O juiz-Édipo é justamente aquele que une saber e poder de forma não republicana e ao arrepio da lei e da Constituição. Toda sua ação estratégica é pensada e posta em prática para o alcance de um poder político nutrido, reciprocamente, entre acusação e julgador, verdadeira pintura de um realismo cínico maquiavélico. O processo judicial enquanto rito democrático à concretização da justiça, lugar público por excelência da dialogia comunicativa entre todos os atores judiciais envolvidos e alicerçado sobre a imparcialidade judicial enquanto pilar fundamental, passa a ser mero simulacro.

Embebido de poder, o juiz-Édipo se apresenta como o dono do saber e, tal como Édipo Rei bradava aos quatro ventos que tinha desvendado o enigma da esfinge, aquele entoa a pretensa descoberta do enigma da corrupção nacional. O miasma ganhava força junto ao coro que faz perante parcela significativa da sociedade brasileira. "Nos ritos e delitos do poder", diria Tom Zé, em célebre canção.

Mas Édipo Rei é também uma história da pesquisa pela progressão da enunciação da verdade. "A tragédia do poder e da detenção do poder"9, conforme nos adiantou Michel Foucault, pelo alcance e conhecimento da verdade proporcionado pelo inquérito - que se pode ler em sociedades democráticas como a institucionalidade do rito judicial, o qual deve ser conduzido de modo imparcial, por aquele que julga - nunca é demais repetirmos. Portanto, é nesse espaço público que a verdade pode ser paulatinamente reconstruída por intermédio da realização mútua de ações discursivas carreadas pelos atores judiciais envolvidos, com vistas ao soerguimento da decisão judicial justa, como efetivo restabelecimento da fissura social. O Poder Judiciário existe para solucionar problemas, não ser mais um deles.

O processo judicial imparcial: a prova e a "lei das metades"

O mecanismo de estabelecimento da verdade é então alcançado, na leitura foucaultiana, pela denominada "lei das metades". É pelo ajustamento e encaixe das "[...] metades que se poderá reconhecer a autenticidade da mensagem, isto é, a continuidade do poder que se exerce"10, puro raciocínio jurídico baseado em lógica e prova. Quando Apolo determina a expulsão do miasma de Tebas, resta saber a outra metade: o que deu causa ao seu aparecimento? A resposta é dada por Creonte: um assassinato. Na sequência, exsurge a necessidade de nova complementação por outras duas metades: quem é a vítima e quem é o assassino? Para a primeira pergunta, a resposta vem de Apolo, por intermédio do próprio Crente: Laio. Para a segunda indagação, a resposta virá pela progressão da tragédia enquanto tentativa de enunciação da verdade, a qual se dará pela reunião de fragmentos11 que foram separados e que, se novamente reunidos, ceifarão o miasma da pólis grega.

Ora, o que é a tragédia judicial brasileira a que fazemos referência senão a mais pura progressão da verdade baseada na prova, a união de metades que estavam fragmentadas e, quando novamente postas em conjunto, apenas evidenciaram a impossibilidade de um julgamento justo pelo juiz-Édipo, sua incapacidade absoluta em continuar a exercer o poder que detinha? A vinda à tona das mensagens trocadas entre acusação e julgador apenas subscreveu a sucessão de desmandos judiciais praticados ao arroubo do Direito, valendo-se este último do poder que detinha e que culminou, como sabemos, em cargo político. O juiz-Édipo torna-se cego porque também já não consegue mais ver o miasma que representa.

O paralelo mitológico-brasileiro, ainda que separado por milhares de anos, só nos mostra como nosso juiz-Édipo, ao cabo e ao fim, eleva à última potência seu voluntarismo judicial, distorce seu poder em tirania e assemelha-se ao Édipo Rei pelo desprezo às leis em face de seus desejos políticos, cego à justiça12.

Resta-nos o Supremo Tribunal Federal enquanto guardião da Constituição Federal. Espera-se que os Ministros possam, no próximo dia 14.4.21, reconhecer a obscuridade da tragédia e do assombro jurídico a que fomos submetidos, podendo iluminar o caminho futuro de nossa democracia "mergulhando a pena nas trevas do presente."13 Na tragédia grega, Tirésias é profético no enfrentamento ao Édipo Rei: "Mesmo que eu silencie, os fatos falam. [...] Ninguém conhecerá um desmoronamento pior do que o teu."14 Que assim seja com o juiz-Édipo.

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1 "Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules" (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 165).

2 "A arte, como qualquer campo simbólico, é um lugar de disputas sociais, especialmente tendo em vista o seu poder-de-significação. [...] a arte é política por se constituir em outra realidade, o que implica instaurar uma linguagem própria, um tempo e um significados próprios. Neste domínio, a experiência sensível é por si mesmo emancipadora, e isto na medida em que nos liberta das heteronomias do real. Por isso, a arte revela poder, exerce poder [...]" (BITTAR, Eduardo Carlos Bianca, Semiótica, Direito & Arte: entre teoria da justiça e teoria do direito. São Paulo: Almedina, 2020, ps. 80-81).

3 FOUCAULT, op. cit., p. 31.

4 "O cinismo é justamente a resposta da cultura vigente à subversão cínica: reconhecemos o interesse particular por trás da máscara ideológica, mas mesmo assim conservamos a máscara. O cinismo não é uma postura de imoralidade direta, mas, antes, a própria moral colocada a serviço da imoralidade: a "sabedoria" cínica consiste em apreender a probidade como a mais rematada forma da desonestidade, a moral como a forma suprema da devassidão e a verdade como a forma mais eficaz da mentira. Assim, o cinismo realiza uma espécie de 'negação da negação' pervertida" (ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 60).

5 Writ cujo objeto era o reconhecimento da parcialidade do magistrado que atuou nos autos da operação "lava jato", com a consequente declaração de nulidade dos atos processuais praticados na ação penal envolvendo o apartamento do Guarujá.

6 "Creonte: Escutarás tal qual ouvi do deus.

Sem circunlóquio, Foibos, pleniluz,

Mandou-nos expulsar o miasma. Aqui

Cresceu, e há de crescer, se não ceifado" (Sófocles, Édipo Rei. Trad. De Trajano Vieira; apresentação J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. p. 42).

7 "Se existe complexo de Édipo, ele se dá não no nível individual, mas coletivo; não a propósito de desejo e inconsciente, mas de poder e de saber" (FOUCAULT, op. cit., p. 31).

8 FOUCAULT, op. cit., p. 41.

9 FOUCAULT, op. cit., p. 43.

10 FOUCAULT, op. cit., p. 38.

11 "A história de Édipo é a fragmentação desta peça de que a posse integral, reunificada, autentifica a detenção do poder e as ordens dadas por ele. As mensagens, os mensageiros que ele envia e que devem retornar autentificarão sua ligação ao poder pelo fato de cada um deles deter um fragmento da peça e poder ajustá-lo aos outros fragmentos. Esta é a técnica jurídica, política e religiosa do que os gregos chamavam s?µß???v - o símbolo" (FOUCAULT, op. cit., p. 38).

12 "Do mesmo modo, Édipo é aquele que não dá importância às leis e que as substituiu por suas vontades e suas ordens. Ele o diz claramente. Quando Creonte o reprovava por querer exilá-lo dizendo que sua decisão não era justa, Édipo responde: "Pouco me importa o que seja justo ou não; é preciso obedecer assim mesmo". Sua vontade será a lei da cidade. É por isso que no momento em que se inicia sua queda o coro do povo reprovará Édipo por ter desprezado a d???, a justiça" (FOUCAULT, op. cit., ps. 45-46).

13 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 62.

14 SÓFOCLES, op. cit., ps. 53-57.

Alexandre Simão de Oliveira Cardoso

Alexandre Simão de Oliveira Cardoso

Advogado. Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - FDUSP. Bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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