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Tema 897 dois anos depois: Imprescritibilidade do ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade

Dois anos após o julgamento do Tema 897 pelo STF, inúmeras dúvidas permanecem durante o processamento por improbidade administrativa. O procedimento aplicável e a responsabilidade objetiva se destacam.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Atualizado às 14:00

No Tema 897 de Repercussão Geral, Recurso Extraordinário 852.475/SP, foi fixada por maioria de votos a tese: "São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa."1 O acórdão foi publicado em 25 de março 2019, e dois anos depois não são poucas as incompreensões que sua interpretação causa cotidianamente em processo de improbidade.

O julgamento iniciou em 02 de agosto de 2018 com voto do Min. Relator Alexandre de Moraes, quem se posicionou pela prescrição em nome da segurança jurídica, do devido processo legal e da ampla defesa. Na mesma data acompanharam o voto do relator os Ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Seis votos a favor da tese da prescritibilidade. Apenas dois Ministros votaram naquela data pela imprescritibilidade (Luiz Edson Fachin e Rosa Weber). O Min. Luís Roberto Barroso enunciara seu voto de modo eloquente na sessão de 2 de agosto:

Eu devo dizer, Presidente, que, depois de ter feito uma reflexão, estou aderindo à posição proposta pelo eminente Relator nesta sessão e até revendo ou flexibilizando uma posição que havia inicialmente delineado nesta matéria. Porque eu acho que a posição aqui defendida hoje pelo Ministro Alexandre de Moraes é a que deve prevalecer. Em primeiro lugar, porque onde a Constituição quis instituir a imprescritibilidade ela o faz com linguagem inequívoca, e o Ministro Alexandre de Moraes destacou esses pontos: crime de racismo, ação de grupos armados e a propriedade das terras indígenas, o que seriam a qualquer tempo retomáveis, sem legítima oposição de direito. Portanto, a Constituição fez uma opção por enunciar regras específicas e inequívocas quando queria a imprescritibilidade. (...) Assim sendo, Presidente, penso que é prescritível. Nisso, estou acompanhando o Ministro-Relator.2

O Min. Luiz Fux inicialmente também foi enfático na defesa da tese da prescritibilidade. Destacam-se dois de seus principais fundamentos trazidos em sessão:

Um terceiro argumento, que também me conduz a acompanhar, por esses fundamentos, o voto do Ministro Alexandre. As pretensões exercitáveis contra a Fazenda Pública se submetem a um prazo prescricional, quer pelo Decreto nº 22.210, quer pelo Decreto 2.210, quer pela lei 9.494, lei recentíssima. Ou seja, todas as pretensões que o particular tem contra a Fazenda se submetem à prescrição. Por que a Fazenda teria a imprescritibilidade de suas pretensões contra o particular se o particular só tem cinco anos? No meu modo de ver, isto violaria flagrantemente o princípio isonômico. Se, para reclamar contra a Fazenda, o particular tem prazo, a Fazenda Pública também tem para reclamar os danos praticados pelo particular.

Trago ainda um último argumento no sentido de que a última ratio do Direito é o direito criminal. E as figuras criminais, tirar a vida humana, o homicídio prescreve, a pena aplicável ao homicida que tirou a vida alheia prescreve, e as ações do poder público são imprescritíveis, isso não me parece, com a devida vênia, que corresponda à lógica do razoável que permeia a Constituição Federal. De sorte que, pedindo vênia à divergência, acompanho integralmente o voto do Ministro Alexandre de Moraes.3 

O julgamento, no entanto, foi suspenso dado o adiantado da hora4 e retomado apenas seis dias depois para colher os últimos votos. Em 8 de agosto de 2018 bastou iniciar a sessão para o Min. Roberto Barroso pedir a palavra e informar que em virtude do recebimento de "diversas manifestações - inclusive uma da Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral da República - (...)", estaria "considerando seriamente reajustar" seu voto, como de fato fez.5

Em seguida, coube ao Min. Fux invocar a humildade como virtude para também retratar-se. Com a mesma veemência que defendera seis dias antes a prescrição, mudou seu voto para se conformar à tese da imprescritibilidade. Segundo o Min. Luiz Fux, "Debaixo da nossa toga bate o coração de um homem." E que apesar de obrigado a aplicar o Direito, cabia-lhe acima de tudo fazer justiça.6

Ao final, pela imprescritibilidade votaram os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Celso de Mello, Carmem Lúcia, Luiz Fux e Luiz Roberto Barroso. Restaram vencidos os Ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio (tese da prescritibilidade). Placar de 6 x 5.

Na tese prevalecente, curiosamente o STF diferenciou para fins de prescrição atos culposos e atos dolosos de improbidade. Nem a Constituição nem a lei de Improbidade acolhem a distinção, mas os Ministros o fizeram.  Foi o voto do Min. Barroso que se propôs à diferenciação de atos dolosos e culposos para fins de prescrição da pretensão de ressarcimento. Nenhum dos Ministros tinha até então se preocupado com essa classificação. Sua proposta, ao final do julgamento apenas, foi concisa: "Eu gostaria de cingir a imprescritibilidade do ressarcimento às hipóteses de dolo e excluir as hipóteses de culpa, em que, por uma falha humana, não intencional, se tenha eventualmente causado um prejuízo ao Erário."7

A diferença entre dolo e culpa ("falha humana, não intencional", nas palavras do Ministro) foi a maneira encontrada de reajustar o voto e ao mesmo tempo revesti-lo de juridicidade. Mas a decisão fez pouco caso das consequências que a distinção criada trouxe no plano processual, que em 2021 repercute nos tribunais brasileiros.

O STF gerou um impasse no procedimento das ações de ressarcimento ao erário tidas como imprescritíveis. Se as diversas pretensões condenatórias da Lei de Improbidade estão prescritas e já não se pode ajuizar ação de improbidade e declarar a existência de ato ímprobo doloso ou culposo, como chegar à conclusão de que houve ato ímprobo na ação de ressarcimento de procedimento comum? A pergunta (não respondida) do Min. Marco Aurélio resumiu o fundamental da problemática que a decisão final do STF gerou: "Qual é a premissa do ressarcimento? É ou não a prática do ato de improbidade? Se não se pode mais discutir a configuração desse ato, como caminhar para a ação de ressarcimento, considerada a imprescritibilidade dessa ação patrimonial?"8

Em 2021 sérios problemas já estão sendo observados com a dúvida sobre qual ação propor e qual o rito a observar. Se o procedimento a prevalecer for o comum do CPC, haverá violação constitucional ao art. 5º, LIV e art. 37, §4º (devido processo legal) e ao rito legal da Lei de Improbidade, pois se definirá como ímprobos atos fora do procedimento especial exigido pelo constituinte. Mais grave, haverá fomento a um sistema de responsabilização objetiva por ato de improbidade, em que basta ao autor da ação de ressarcimento alegar que houve ato de improbidade dolosa na causa de pedir da ação de ressarcimento para que a premissa seja tida como verdade. O que já está, aliás, acontecendo na prática.

A retórica da decisão final no Tema 897 fica evidente na súbita mudança que aconteceu no intervalo de meros seis dias entre o início da sessão de julgamento e seu final. Se no início ao menos os Ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux fiavam-se na interpretação dogmática, sistemática e histórica da Constituição para afastar a imprescritibilidade, na retificação dos votos deixaram claro que, no fundo, a mudança residia em resposta a pressões externas.


1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário 852.475/SP. Relator para acórdão Min. Edson Fachin. Julgamento em 08 ago. 2018. Publicação em 25 mar. 2019.

2 Pág. 49-50 do acórdão.

3 Pág. 57-58 do acórdão.

4 PLENO: Prescrição de ação de ressarcimento decorrente de improbidade administrativa (2/2), 2018. 1 vídeo (1h6min07s). Publicado pelo canal STF. Disponível em: clique aqui. 1h05min29s. Acesso em 08 abr. 2021.

5 Pág. 81 do acórdão.

6 "Debaixo da nossa toga bate o coração de um homem. E nós temos, como dever de ofício, de aplicar o Direito, mas, acima de tudo, fazendo justiça." (Pág. 109 do acórdão. Grifou-se).

7 Pág. 133 do acórdão.

8 Pág. 130 do acórdão.

Felipe Klein Gussoli

Felipe Klein Gussoli

Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná e advogado em Curitiba-PR.

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