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Tributação dos livros: Um retrocesso à concretização dos direitos fundamentais

Um panorama sobre os impactos da tributação dos livros proposta pelo Ministro da Economia Paulo Guedes.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Atualizado às 17:22

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em abril de 2021, a Receita Federal divulgou um documento de perguntas e respostas sobre a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), objeto da reforma tributária proposta pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes. O novo tributo, se implementado, unificará a Contribuic¸a~o para o Programa de Integrac¸a~o Social e de Formac¸a~o do Patrimo^nio do Servidor Pu'blico (PIS/Pasep) e a Contribuic¸a~o para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), conforme consta do Projeto de lei 3887/20.

Quando questionado sobre o porquê de cobrar o CBS na venda de livros, o órgão respondeu que a garantia constitucional presente no art. 150, VI, "d" da Constituição Federal, que prevê a isenção de impostos sobre os livros não se estende para o PIS/Pasep e Cofins. Outrossim, argumentou que, apesar de a lei 10.865/04 conceder a isenção dessas contribuições, não existem estudos que comprovem que houve a redução do preço dos livros causada pela falta de cobrança, tampouco, foi identificado qualquer  beneficio para a sociedade.

Nessa linha de raciocínio, os que defendem esse tipo de tributação, entendem que o Estado estaria deixando de arrecadar dinheiro de pessoas e editoras que teriam a condição de pagar pelo aumento de preços do livro. Usando a Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), ressaltaram que as famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e que a maior parte desses livros seria consumido pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos, o que justificaria a taxação nesse setor.

Reitera-se, assim, o entendimento de que o livro é um artigo de luxo e que as editoras estariam enriquecendo ilicitamente com a não incidência de tributos sobre esses bens. Além disso, quando questionado sobre a exclusão dos grupos em vulnerabilidade econômica, o Ministro Paulo Guedes sugeriu que o poder público comprasse livros para "doar aos pobres"¹. A publicação desse documento, por conseguinte, reacendeu o debate sobre a democratização do acesso à informação, educação, cultura e, também, sobre as prioridades do governo, uma vez que ao ser constatado que famílias de classes mais baixas não consomem livros não didáticos, a postura que se esperava é que o governo desenvolvesse políticas públicas de incentivo a leitura e acesso a esse tipo de livro e não a tributação do setor, que reduzirá ainda mais a possibilidade de que essas classes venham a consumir esse tipo de conteúdo, pois a taxação trará inevitavelmente um aumento ao preço final cobrado do consumidor.

Segundo o projeto do atual Ministro da Economia, a venda de livros passaria a ser tributada em 12%, que é a alíquota geral da CBS. Rompendo, dessarte, com o histórico de 74 anos da isenção de impostos para o setor. Essa luta começou em 1946 com o escritor brasileiro e então deputado federal pelo Estado de São Paulo, Jorge Amado, que com seu projeto de emenda constitucional requeria a não cobrança de impostos sobre o papel usado para imprimir livros, revistas e jornais.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, esse direito continuou sendo garantido e se expandiu de forma a abranger não só o papel destinado a impressão, mas também a livros, jornais e periódicos como produto final, como fica expresso no art. 150, IV, da CF/88².

Trata-se, portanto, de imunidade objetiva à tributação, a fim de diminuir o preço dos livros e, consequentemente, cumprir com as garantias constitucionais previstas no artigo 5º, XIV, da Carta Maior, que asseguram a todos o acesso à informação, bem como no artigo 6º, que garantem os direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Com base nessa mesma premissa, a lei 10.865, de 2004, zerou a alíquota da PIS/Cofins, incluindo, dessa forma, a isenção nas contribuições sociais e ampliando o alcance da imunidade tributária. Esse ato legislativo reitera o entendimento que os direitos fundamentais devem sempre seguir um processo de agregação, visando aumentar o seu núcleo, incorporar novos direitos, expandir o âmbito de incidência nas relações humanas , mas nunca recuar ou eliminar direitos já conquistados³.

Este entendimento já é consolidado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como forma de proteger as normas que versam sobre garantias fundamentais4. Segundo o Ministro Ricardo Lewandowski, o princi'pio da proibic¸a~o do retrocesso, impede que, a pretexto de superar dificuldades econo^micas, o Estado possa, sem uma contrapartida adequada, revogar ou anular o nu'cleo essencial dos direitos conquistados pelo povo5. Portanto, o que está proposto no Projeto de lei 3.887/20 é um retrocesso, pois viola o dever jurídico de progressiva e crescente efetivação de direitos, sendo plenamente possível o questionamento da constitucionalidade da norma.

Nessa mesma linha, o Professor Heleno Torres, do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da USP, em entrevista ao jornal da Universidade, afirmou que o inciso IV, artigo 150 da CF tem como objetivo proteger direitos de liberdades individuais, tais como os direitos de expressão, liberdade de acesso a fontes de informação, à educação e à cultura.

Ressalta, ainda, que ao criar imposto sobre livros, age-se contra essas liberdades que conhecemos como garantias constitucionais que asseguram a cidadania e o acesso a esses direitos. Por fim, ele considera a colocação do Ministro Paulo Guedes, uma forma de querer tirar a atenção da população dos verdadeiros temas e das reais prioridades do Brasil6.

Considerando, também, a tendência internacional, a Professora Marisa Midori da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP lembra que na economia, mesmo para os neoliberais, há setores que não podem viver sem esse tipo de auxílio. Na América Latina todos os países, com a exceção do Chile, não cobram nenhum tipo de imposto, que incide sobre bens e serviços, para livros7.

Dados de 2019, apresentados pela International Publishers Association, mostram que dos 134 países, em 53 (40%) os consumidores não pagam nenhum valor de IVA (Imposto sobre Valor Agregado) no preço final dos livros, em 49 países (37%) aplicam -se taxas reduzidas do tributo e em 32 nações (24%), o imposto é aplicado normalmente.

Segundo a Associação, supramencionada, os livros são uma mercadoria muito sensível ao preço, o que significa que mesmo um pequeno aumento no custo para o consumidor pode ter impactos dramáticos e prejudiciais no consumo. Também pode ocorrer prejuízos no desempenho educacional do público, além do encorajamento à pirataria, o que retira livreiros e editores legítimos do mercado. Um exemplo disso é o Quênia, onde as vendas de livros caíram 35% em todo o país desde que uma taxa de IVA de 16% foi aplicada aos livros em 20138.

Aplicando lógica reversa, nesse caso o da isenção, o Brasil, segundo a Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros), vivenciou a venda de 90 milhões de exemplares entre 2006 e 2011, por consequência da isenção promovida pela lei 10.865/04, a qual resultou na redução em 33% do preço do livro.

Em 2020, o Instituto Pró-livro, juntamente com o Itaú Cultural e o IBOPE inteligência, divulgou a 5ª Edição do Retratos da leitura no Brasil. Um dos resultados de pesquisa demonstrou que, em 2015, 56% dos brasileiros se declaravam leitores, enquanto 44% se declaravam não leitores. Em 2019, a taxa de leitores reduziu para 52% e não leitores aumentou para 48%9, o que demonstra a importância de políticas que incentivem a leitura no país. A tributação vai de encontro a essa necessidade.

A pesquisa também mostra que 49% dos leitores estão na Classe C  (rendimentos entre R$ 4.180- 10.450,00) e 21% estão nas Classes D/E (rendimentos entre R$ 2.090,01 e R$ 4.180 e no máximo 2 salários mínimos, respectivamente)10. Assim, aumentar o valor do livro vai onerar parte maior do orçamento familiar, o que pode diminuir o consumo e o acesso ao produto e, além disso, impactar na concretização do direitos à educação, à informação, à cultura e ao lazer.

O estudo ainda aponta que, em 2019, 31% dos entrevistados nunca comprou um livro11. Ademais, levando em consideração a estimativa populacional do mesmo ano, somente 20% da população comprou algum livro nos u'ltimos 3 meses, seja em papel ou em formato digital12. Dados como esses demonstram a necessidade e o dever do Poder Executivo de criar e executar projetos de acesso ao livro e de incentivo à leitura, conforme prevê a lei 10.753/03, que instituiu a Política Nacional do Livro13.

Por fim, a isenção de imposto é uma garantia constitucional que não pode retroceder para reduzir direitos fundamentais os quais são concretizados por meio do acesso aos livros. Adicionar alíquota de 12% ao preço dos livros em substituição ao PIS/Pasep e Cofins, que não incidem, desde 2004, sobre o valor atual da mercadoria, significa violar a imunidade objetiva à tributação, os direitos fundamentais e, consequentemente, a Constituição Federal.

__________

1. MAGALHÃES, Lu. Taxar livros: combate a privilégio de um setor ou democratização do acesso a educação e cultura? Disponível aqui. Acesso em 13/4/21.

2. Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (grifo nosso): 

VI - instituir impostos sobre: (.) d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; (grifo nosso)(.)

3. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 12ª Edição. Editora Juspodivm. 2020, pág. 384.

4. PONTES, Helenilson Cunha; PONTES, Juliana Fonseca. A inconstitucional tentativa de tributação dos livros. Disponível aqui. Acesso em: 14/4/21.

5. LEWANDOWSKI, Ricardo. Proibição do retrocesso. Disponível aquiAcesso em 15/4/21.

6. COSTA, Claudia. Tributação de livros é inconstitucional, lembram docentes da USP. Proposta do governo federal agride a Constituição e fere direitos à liberdade individual, dizem professores. Disponível aqui. Acesso em: 13/4/21.

7. COSTA, Claudia. Tributação de livros é inconstitucional, lembram docentes da USP. Proposta do governo federal agride a Constituição e fere direitos à liberdade individual, dizem professores. Disponível aquiAcesso em: 13/4/21.

8. International Publishers Association. Disponível aqui. Acesso: 13/4/21.

9. Instituto Pró-livro, pág. 20. Disponível aqui. Acesso em : 15/4/21.

10. Instituto Pró-livro, pág. 31. Disponível aquiAcesso em : 15/4/21.

11. Instituto Pró-livro, pág. 133. Disponível aqui.Acesso em : 15/4/21.

12. Instituto Pró-livro, pág. 131. Disponível aqui. Acesso em : 15/4/21.

13 . Art. 1º. Esta lei institui a Política Nacional do Livro, mediante as seguintes diretrizes:

I - assegurar ao cidadão o pleno exercício do direito de acesso e uso do livro;  

III - fomentar e apoiar a produção, a edição, a difusão, a distribuição e a comercialização do livro;

IX - capacitar a população para o uso do livro como fator fundamental para seu progresso econômico, político, social e promover a justa distribuição do saber e da renda; (.) Art. 13. Cabe ao Poder Executivo criar e executar projetos de acesso ao livro e incentivo à leitura, ampliar os já existentes e implementar, isoladamente ou em parcerias públicas ou privadas, as seguintes ações em âmbito nacional: (.)

Mariana Melo Botelho

Mariana Melo Botelho

Estudante de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Editora-assistente da Revista dos Estudantes de Direito da UnB (RED|UnB). Fundadora do projeto Livros para Sol Nascente, na Associação Despertar Sabedoria.

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