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Covid-19, onerosidade excessiva e a desnecessidade (ou a necessidade) de ordem judicial para rescisão dos contratos

Para todas as pessoas que já tinham estabelecido entre si obrigações antes de março do ano passado (2020), físicas e jurídicas, a pandemia do Corona Vírus evidentemente é um evento extraordinário e imprevisível.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Atualizado às 12:46

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Estamos passando por dias difíceis. Além da ansiedade e preocupação com saúde, existe a instabilidade política e econômica que assola o mundo e principalmente o Brasil.

Para todas as pessoas que já tinham estabelecido entre si obrigações antes de março do ano passado (2020), físicas e jurídicas, a pandemia do Corona Vírus evidentemente é um evento extraordinário e imprevisível, que foge à álea normal de qualquer contrato.

A álea normal são os riscos normalmente previsíveis em determinada espécie contratual e alocados no contrato entre os contratantes. Em outras palavras, basicamente a álea normal são os acontecimentos previsíveis no tipo do negócio. A doutrina italiana, citada por Paula Greco Bandeira, assim conceitua a álea normal:

A álea normal se caracteriza pela normalidade e previsibilidade do evento que possa vir a ocorrer no curso da relação contratual, em contraposição à extraordinariedade e imprevisibilidade própria dos eventos que tornam excessivamente onerosa a prestação e propiciam a resolução do contrato¹.

A álea normal pode ser ajustada, gerida, de duas formas entre os contratantes: positiva ou negativamente. A álea normal é gerida de forma positiva quando ocorre a distribuição dos ganhos e das perdas oriundas do risco no momento da celebração do contrato. Os contratos típicos já estabelecem certa alocação das áleas normais, mas essa alocação em algumas vezes não atende aos anseios da autonomia privada e por isso às vezes a gestão positiva da álea normal dá origem a contratos atípicos², nos quais a álea normal será mais ampla do que nos contratos típicos, uma vez que nos contratos atípicos "se pode dizer que é tendencialmente maior o âmbito do clausulado"³.

O risco econômico não alocado pelo contrato, seja negativa ou positivamente, será considerado imprevisível e extraordinário. Este risco não alocado deve extrapolar a normalidade do conteúdo e da função do contrato. Então, assim, as partes poderão remediar a situação através da resolução ou revisão contratual por onerosidade excessiva. Se o risco econômico que se insere na previsibilidade do contrato for simplesmente mal gerido no clausulado contratual, sendo atribuídas mais perdas a uma das partes ou eventual desproporcionalidade da prestação, não há ensejo da resolução ou revisão do contrato. A onerosidade, neste caso, advém do infortúnio de ter ocorrido fato objeto de risco imprevisto pelas partes no momento da celebração do contrato e não no fato de ter sido alocado de forma equivocada a ponto de prejudicar um dos agentes econômicos no futuro quando de sua superveniência.4

Hart e Moore afirmam que o contrato é incompleto quando as partes desejam incluir cláusulas sobre determinadas contingências, mas não o fazem porque é impossível prever naquele momento a situação futura, o "estado da natureza" superveniente, por ser incerto, ou porque é muito caro especificar tal contexto.5 Nesse sentido, Steven Shavell diz que a incompletude contratual é oriunda de contingências (como, por exemplo, a pessoa ter uma dor de estômago ou, no nosso caso nos dias de hoje, uma infecção por corona vírus) as quais podem ser difíceis para as partes verificarem, o que tornaria inviável a inclusão no contrato de uma cláusula relacionada a tal situação, sendo mais plausível elaborar uma cláusula de renegociação ou até mesmo estabelecer a possibilidade de inadimplemento mediante indenização por perdas e danos.6

Quanto às lacunas contratuais, apesar de o contrato incompleto não apresentar seu clausulado "detalhado plano de ação e de riscos, ele define, por exemplo, objetivos, regras gerais e modos de solução de conflitos". Apesar de os tribunais buscarem cada vez mais essa universalização para a interpretação dos contratos, a forma mais clássica de solução da incompletude contratual é por meio da renegociação entre as partes, ou seja, através de um novo acordo.

No momento de celebração dos contratos, as partes podem determinar que eventuais lacunas possam ser preenchidas por um terceiro ou por uma delas (discretionary power). Alguns autores entendem que se deve distinguir entre a função de completude do contrato da solução de conflitos, porque na complementação do contrato o terceiro (o árbitro para o caso de cláusula de arbitragem, por exemplo, ou o juiz) não deverá proferir decisão sobre qual parte tem razão, mas apenas preencher a lacuna7 e deixar para as partes resolverem o prosseguimento do negócio a partir da interpretação dada àquela incompletude anteriormente passível de interpretação pelo terceiro alheio ao contrato.

Podemos concluir que todos os contratos estabelecidos antes de fevereiro/2020 estavam incompletos em relação à superveniência de uma pandemia mundial.

Nos contratos em que não existir cláusula especificando perdas e danos oriundas de sua rescisão antecipada (ou seja, antes do prazo previsto no contrato), constando tão somente a possibilidade de rescisão mediante notificação à outra parte, a superveniência da covid-19 é causa suficiente para que haja MOTIVO para sua ruptura, sem dar ensejo à indenização estabelecida.

Já nos contratos em que existir cláusula de perdas e danos oriundos de sua resolução mesmo MOTIVADA, é necessário requerer judicialmente sua resolução sem incidência do pagamento das perdas e danos, nos moldes do art. 478 do Código Civil.

Assim, é possível concluir que 1) se o seu contrato prevê a possibilidade de rescisão MOTIVADA sem incidência de multas ou indenização, se for do seu interesse você pode rescindir o contrato mediante notificação extrajudicial à outra parte, devidamente fundamentada, respeitando os limites e obrigações estabelecidas em relação a isso; 2) se o seu contrato não prevê a possibilidade de rescisão sem incidência de multas ou indenização, é necessário você buscar a renegociação mediante reuniões com a outra parte, o que pode ser realizado através de uma mediação extrajudicial ou, em último caso, uma ação judicial ou arbitragem, a qual poderá ser fundamentada na tese da onerosidade excessiva.

_________

1. BANDEIRA, Paula Greco. O Contrato Incompleto. São Paulo Atlas, 2015, p. 131, citando Gianguido Scalfi, Corrispettività e alea nei contratti, Milano: Instituto Editoriale Cisalpino, 1960, p. 133-134.

2. BANDEIRA, Paula Greco. Op.cit., 2015, p. 52.

3. VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos atípicos. 2.ed. São Paulo: Almedina, 2009, p. 322.

4. BANDEIRA, Paula Greco. Op.cit., 2015, p. 51-52.

5. HART, Oliver; MOORE, John Hardman. Foundations of Incomplete Contracts, Disponível aqui. Acesso em 27/5/17, p.37.

6. SHAVELL, Steven. Why Breach of Contract May Not be Immoral Given the Incompleteness of Contracts. Mich. L. Rev. 2009, p.1572.

7. FORGIONI, Paula A. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. RT, p. 194-195.

Letícia Soster Arrosi

Letícia Soster Arrosi

Doutoranda em Direito Comercial pela USP, mestre em Direito Privado e especialista em processo civil pela UFRGS, graduada e bacharel em ciências jurídicas e sociais pela PUCRS, advogada atuante em resolução de disputas e pesquisas referentes a consultas e litígios comerciais de Direito Civil, Análise Econômica do Direito e Propriedade Intelectual.

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