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Decisões estruturais em demandas sanitárias

As decisões estruturais carregam a responsabilidade de se estar interferindo em serviços próprios de políticas públicas. É de se refletir sobre esse tipo de decisão como uma solução eficiente em demandas sanitárias de alta complexidade.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Atualizado às 11:30

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Na contramão do movimento processual de julgamento por demandas repetitivas, em que se destaca um julgado para servir de representativo de controvérsia e conduzir a solução de lides similares, o Judiciário tem se deparado também com demandas que reclamam direitos constitucionais fundamentais em questões singulares e complexas, envolvendo diversos atores estatais e carregando consigo elevada carga moral quanto às possíveis soluções processuais e meritórias.

Algumas dessas demandas carregam em si a interferência direta do Poder Judiciário em políticas públicas, tais como as de saúde e de educação (pense-se, como exemplos, nos pleitos medicamentosos e naqueles que pretendem garantia de vagas em creches), e com isso, independente da celeridade e do teor da decisão que seja prolatada nesse tipo de processo, há desdobramentos imprevisíveis no âmbito do órgão responsável pelo serviço reclamado, sejam eles de ordem financeira ou de gestão.

Levando em consideração a possibilidade de se trabalhar o litígio apresentado dentro de um processo judicial de médio a longo prazo, pode-se pensar em decisões estruturais como meio de solução para esse tipo de demanda? Afinal, o que é uma decisão estrutural?

Decisões estruturais são aquelas que intentam garantir a prestação de um direito fundamental ou a efetiva implementação de uma política pública em um cenário complexo, por meio de ações programadas, em determinado lapso temporal e com o condão de interferir na estrutura da instituição que deveria ser aquela a garantir o serviço que se mostra falho.

Edilson Vitorelli, em sua obra "Processo Civil Estrutural - Teoria e Prática", indica que, pressupondo se tratar de um litígio estrutural, a sentença prolatada nesse tipo de demanda mais se assemelha a uma decisão de cumprimento de sentença do que a uma decisão própria da fase de conhecimento. Isso porque, se tratando de demanda complexa, envolvendo vários atores institucionais, os provimentos judiciais ao longo do processo implicam na adoção de técnicas próximas à mediação e à negociação, formando o chamado "provimento em cascata". Assim, é comum nesse tipo de processo que a primeira decisão se limite a estabelecer diretrizes gerais à tutela jurisdicional, passando a outras mais específicas, até se chegar à "decisão-núcleo", que se prestará a oferecer a melhor solução possível ao caso concreto, após um lapso de tempo considerável.

Reconhecendo que esse tipo de jurisdição representa interferência do Poder Judiciário no mérito administrativo, é preciso refletir sobre os limites de atuação judicial em processos desse tipo. Carlos Alexandre de Azevedo Campos, em sua obra "Estado de Coisas Inconstitucional", explicando lição essencial de Owen Fiss, assevera que "[o]s direitos e a gravidade do conflito devem influir nos limites dessa alocação de poder - trata-se de desafiar a errônea prática de pensar o procedimento independentemente da substância".

Sérgio Cruz Arenhart, em "A Tutela Coletiva de Interesses Individuais", elenca alguns requisitos e limites para as decisões estruturais: maturidade do sistema jurídico como um todo para que se possa revisitar a ideia de separação dos Poderes, reconhecendo que a noção de Estado contemporâneo admite a permeabilidade da atuação judicial nos atos de outros Poderes; a capacidade de percepção do julgador em reconhecer a inviabilidade de outras medidas como forma de prestação jurisdicional efetiva, ou seja, decisão estrutural deve ser tomada como o último recurso processual; deve haver certa flexibilização do princípio da demanda, de forma que o magistrado possa se afastar da pretensão inicial ou mesmo criar medidas não inicialmente elaboradas pela parte demandante.

Uma vez entendida a singularidade de uma decisão estrutural, indaga-se se é possível pensar na ampliação da utilização desse tipo de condução judicial em demandas sanitárias. Cada vez mais comum, o custo para a União com a judicialização da saúde, em 2019, foi de R$ 1,3 bilhão, tendo triplicado desde 2007 (Vitorelli, 2020). São processos que variam desde ações individuais que pleiteiam o fornecimento de determinado medicamento específico, até ações civis públicas que pretendem a criação de leitos ante o agravo da pandemia.

Algumas dessas demandas carregam consigo a possibilidade de serem apresentadas como um litígio estrutural, em que a ação judicial não se limita ao relato de fatos limitados e a um pedido individual, mas, sim, ações que passam pelo reconhecimento da complexidade da demanda e da necessidade de que as causas sejam reconhecidas e acompanhadas até possíveis soluções globais.

Como exemplo, vale conferir um dos muitos casos de êxito relatados pelo professor Edilson Vitorelli: a Justiça Federal do Ceará, no âmbito de duas ações civis públicas que demandaram a regulação e regularização das filas de cirurgia ortopédica de alta complexidade, por meio de decisões estruturais conduzidas pela Juíza Cíntia Menezes Brunetta, atuou de forma a criar o Sistema Integrado de Cirurgia, em 2017, em que é possível o acompanhamento online do paciente da fila para cirurgia. A atuação da magistrada lhe rendeu o prêmio Innovare 2019.

Diante de um cenário atual pandêmico, em que as demandas sanitárias das mais diversas ordens continuam aumentando, e considerando que avanços práticos na prestação jurisdicional medicamentosa (como as diretrizes fixadas no julgamento da STA 175/STF, a criação dos Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário (NAT-JUS), dentre outros) ainda não se mostraram suficientes para corrigir a falha na prestação do serviço à saúde, é de se pensar cada vez mais sobre a adoção e o aperfeiçoamento de decisões estruturais como via processual para se atenuar esse quadro.

Giselle Sissy Medeiros de Lima

Giselle Sissy Medeiros de Lima

Assistente de Ministro do STJ e Mestranda em Regulação e Políticas Públicas na UnB.

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