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Os credores locais e o processo de insolvência transnacional

Após ser notificado do prazo para habilitação de créditos no processo norte-americano, manifestando preocupação com eventual tratamento desigual aos credores brasileiros, o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou pedido de jurisdição voluntária para questionar a validade do ato.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Atualizado às 10:07

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O pedido de reestruturação do Grupo LATAM suscita muitos questionamentos sobre os efeitos do processo norte-americano em relação aos credores brasileiros e às atividades desenvolvidas pela companhia no Brasil. Não é nosso objetivo discutir detalhes do caso, mas apenas utilizar os recentes acontecimentos envolvendo a LATAM como pano de fundo e exemplo da complexidade das insolvências transnacionais.

Após ser notificado do prazo para habilitação de créditos no processo norte-americano, manifestando preocupação com eventual tratamento desigual aos credores brasileiros, o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou pedido de jurisdição voluntária para questionar a validade do ato. A manifestação do MPSP aponta que "não foram garantidos os mesmos direitos de ciência e de consequente possibilidade de participação dos credores brasileiros no mencionado processo de reorganização do Grupo LATAM", uma vez que o expediente não observou o rito da carta rogatório ou do procedimento de reconhecimento do processo estrangeiro, adotado no Brasil com a lei 14.112/20.

A petição inicial foi indeferida pela 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da cidade de São Paulo, sob os fundamentos que: (i) não foi requerida qualquer cooperação pelo Juízo estrangeiro ao Juízo local; (ii) sem que haja pedido de reconhecimento do processo estrangeiro, os credores não são afetados no Brasil pelo processo de recuperação judicial e poderão prosseguir com suas execuções normalmente para satisfação dos referidos créditos, e (iii) apenas o representante estrangeiro poderia ajuizar o pedido de reconhecimento do processo estrangeiro, sendo o Ministério Público considerado, ainda, parte ilegítima em relação a medidas cautelares para tutelar o resultado de um futuro processo que não poderia promover. 

A decisão, correta a nosso ver, se baseia em importantes institutos do sistema de insolvência transnacional, que passamos a explicitar. Afinal, trata-se de uma realidade nova e a lógica de sua aplicação pode, de fato, suscitar dúvidas. Mas o importante é ter em mente que, ao adotar a lei Modelo, o Brasil entrou no radar da comunidade internacional e da UNCITRAL, que inclusive mantém um arquivo com as decisões de países adotantes sobre a aplicação de tais regras (CLOUT). Por isso qualquer decisão que envolva a aplicação de artigo do capítulo IV-A da lei 11.101 deve ter em vista que, mais do que simplesmente solucionar a controvérsia, contribuirá para a formação da imagem internacional do país sobre uma matéria que não é nova e que já encontra seus fundamentos pacificados.   

Pois bem. O artigo 167-B, que corresponde ao item "d" do artigo 2º da lei Modelo da UNCITRAL sobre Insolvência Transnacional¹, traz a definição de representante estrangeiro e as funções que são a ele atribuídas. No direito brasileiro, a figura do representante estrangeiro corresponde, no caso da falência, ao administrador judicial e, no caso da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, ao próprio devedor, o que é confirmado pelo artigo 167-E. Nos termos do artigo 167-H, que coincide com o artigo 15, da lei Modelo da UNCITRAL, compete ao representante estrangeiro ajuizar pedido de reconhecimento do processo estrangeiro em que atua. A "restrição" quanto à legitimidade ativa tem por justificativa as finalidades do pedido de reconhecimento do processo estrangeiro, vale dizer, azeitar o relacionamento entre procedimento local de insolvência e aqueles que tramitam perante outras jurisdições e balancear a proteção conferida ao devedor, credores e terceiros interessados de modo a garantir uma "administração justa e eficiente de processos de insolvência transnacional". Ou a obtenção de medidas referentes a bens, informações ou credores localizados em outro país, mas sempre a partir do país em que se processa a insolvência. Em suma, a mera existência de credores brasileiros ou de atividade desenvolvida pela devedora no Brasil, não impõe o reconhecimento de um processo estrangeiro - principal ou não principal - em nosso país; trata-se de estratégia a ser definida pelos atores do processo estrangeiro e alicerçada nos objetivos descritos pelo preâmbulo da lei Modelo (art. 167-A).

O artigo 167-C reflete o artigo 1º, da lei Modelo da Uncitral (que, segundo a própria Uncitral, define seu "scope of application") e especifica taxativamente os seus limites. Ou seja: o "escopo de aplicação" da disciplina sobre insolvência transnacional, que é excepcional e, portanto, deve ser interpretado restritivamente, é limitado a algumas situações concretas - e nenhuma delas está, até o momento, configurada no caso LATAM, no que diz respeito ao Brasil. Nos incisos I e IV fica claro que a lei só se aplicará por iniciativa de estrangeiros (credores ou autoridades/representantes)². Não é este o caso, já que a iniciativa, no pedido em referência, é do Ministério Público. Já os incisos II e III tratam da relação entre um processo de recuperação judicial, extrajudicial ou de falência já em curso no Brasil ("processo disciplinado por esta lei", ou seja, aqueles apontados no art. 1º da lei 11.101³), e o juízo estrangeiro, haja (inc.III) ou não (inc.II) um processo de tratamento coletivo de credores em curso no país em que se buscará colaboração. Não se aplicam, portanto, ao caso LATAM, em que a iniciativa é brasileira apesar de não haver recuperação judicial no Brasil - nem se pode obrigar um devedor a inicia-la, como é mais do que sabido.

Resta saber se os credores nacionais ("credores domiciliados ou estabelecidos no Brasil") podem ser prejudicados pelo trâmite do processo norte-americano, conforme preocupação externada pelo MPSP. A lei Modelo, inclusive a versão adotada no Brasil, assegura aos credores o "direito de ajuizar quaisquer processos judiciais e arbitrais, e de neles prosseguir, que visem à condenação do devedor ou ao reconhecimento ou à liquidação de seus créditos"; de forma que o pedido de reconhecimento não afeta "os credores que não estejam sujeitos aos processos de recuperação judicial, de recuperação extrajudicial ou de falência" (art. 167-M,§ 2º e 3º) e a abertura de procedimento local de insolvência - falência ou recuperação - a qualquer momento (Art. 167-R e ss). Portanto, sob a perspectiva do direito brasileiro, os credores locais não são afetados pelo procedimento estrangeiro.

Ocorre que há uma peculiaridade neste caso: a reorganização da LATAM tramita sob as leis americanas, que são peculiares não só quanto à competência/jurisdição (atraída pela simples existência de ativos do devedor em solo norte-americano) mas também pela pretensão de extensão dos seus efeitos. Por força de disposições do sistema norte-americano4, as regras do Bankruptcy Code e as ordens proferidas pelo tribunal falimentar possuem efeitos extraterritoriais, atingindo bens e pessoas situadas para além de suas fronteiras. Esta característica vigora desde a edição da legislação falimentar (1978), de forma indistinta sobre devedor e credores, e independentemente de tratar-se de insolvência transnacional ou doméstica. Em relação ao devedor, o precedente In re Globo Comunicações e Participações5, decidido em 2004, afirmou a autoridade in personam e in rem da jurisdição falimentar norte-americana para iniciar um procedimento involuntário de insolvência contra a companhia brasileira, a despeito "da potencial falta de cooperação da Globopar, credores estrangeiros e tribunais brasileiros" e "aparente hostilidade da lei brasileira aos processos de falência estrangeiros relativos a empresas brasileiras". Em relação aos credores, a atribuição de efeito extraterritorial ao automatic stay supostamente impediria a promoção de ações individuais ou abertura de processo de insolvência em seus próprios países. Decisões sobre os efeitos extraterritoriais do stay e imposição de sanções aos credores que desrespeitam a ordem de suspensão, sob o manto da "contempt of court" e declaração de nulidade do ato, são encontradas desde a década de oitenta do século passado, ou seja, muito antes da própria redação da lei Modelo Uncitral. No entanto, os tribunais norte-americanos reconhecem que o efeito internacional de suas decisões decorre de um ficção legal6, cuja efetividade se restringe as pessoas, físicas ou jurídicas, que participem do processo em trâmite nos Estados Unidos ou possuam residência ou ativos naquele país. Nas duas hipóteses a sujeição é voluntária, no sentido dessas pessoas (devedor ou credores) terem ingressado nos procedimentos legais por iniciativa própria ou porque, ao estabelecerem conexões com os Estados Unidos, sujeitam-se àquele ordenamento jurídico. O caso In Re Gucci7 afasta qualquer dúvida de que a pretensão de desconstituir iniciativas tomadas por credores fora do território norte-americano não cria um obstáculo para que outros países - a exemplo do Brasil - tomem as decisões que julgarem convenientes a respeito de bens e direitos localizados em seus territórios. Nada há, portanto, que impeça os credores brasileiros de iniciar, no Brasil, medidas de execução individual de seus créditos, ou mesmo de, bem identificada a ocorrência de uma das hipóteses do art. 94, pleitear sua falência. Em outras palavras, no Brasil, LATAM segue sendo uma sociedade empresária fora de um regime coletivo de tratamento dos credores. E é assim que deve ser encarada. 

Esses exemplos demonstram que o receio acerca dos efeitos do processo de reorganização da LATAM em relação aos credores brasileiros é infundado e a extensão extraterritorial pretendida pela jurisdição norte-americana vigora há décadas esbarra na soberania nacional sobre seus residentes e as sociedades aqui constituídas. É justamente para superar esse óbice que existem as regras de insolvência transnacional, que a empresa, até o momento, optou por não acionar - o que é seu direito. Por fim, há um certo misticismo em se defender que os credores nacionais - não importa o grau de sofisticação - serão sempre melhor tutelados na jurisdição local.

__________

1. Disponível aqui.

2. Art. 167-C. As disposições deste Capítulo aplicam-se aos casos em que:

I - autoridade estrangeira ou representante estrangeiro solicita assistência no Brasil para um processo estrangeiro

II - assistência relacionada a um processo disciplinado por esta lei é pleiteada em um país estrangeiro

III - processo estrangeiro e processo disciplinado por esta lei relativos ao mesmo devedor estão em curso simultaneamente;

IV - credores ou outras partes interessadas, de outro país, têm interesse em requerer a abertura de um processo disciplinado por esta lei, ou dele participar. 

3. Na redação original da lei modelo:

"...(b) Assistance is sought in a foreign State in connection with a proceeding under [identify laws of the enacting State relating to insolvency]; or

(c) A foreign proceeding and a proceeding under [identify laws of the enacting State relating to insolvency] in respect of the same debtor are taking place concurrently;"

4. V.g., 28 U.S.C. § 1334 e 11 U.S.C. § 362(a).

5. In Re Globo Comunicacoes E Participacoes SA, 317 B.R. 235 (S.D.N.Y. 2004)

6. Hong Kong and Shanghai Banking Corp. v. Simon (In re Simon), 153 F.3d 991, 996 (9th Cir. 1998)

7. "The fact that Congress granted the district courts, and via their referral, the bankruptcy courts power to enter orders affecting assets of the debtor, wherever located, does not preclude foreign courts from exercising jurisdiction over estate property located in their countries, a matter that raises such questions as the extraterritorial effect of the automatic stay and the personal jurisdiction of the United States courts over the entity at whose behest the foreign court acts. (...). As the property in question here is located in Rome, its fate ultimately will be determined by Italian courts, which will give such weight as they think appropriate to the decision below." [In Re Gucci, 309 B.R. 679 (S.D.N.Y. 2004)].

Francisco Satiro

Francisco Satiro

Professor de Direito Comercial, Faculdade de Direito da USP.

Sabrina Maria Fadel Becue

Sabrina Maria Fadel Becue

Sócia do Escritório Haj Mussi Advogados

Isabella Noschese

Isabella Noschese

Doutoranda na Faculdade de Direito da USP

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