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Liberdade religiosa em tempos de covid-19

Em primeiro lugar, trataremos da liberdade. Versaremos sobre está como a capacidade de movimento sem impedimento. Trocando em miúdos, ser livre é a capacidade de agir sem algum tipo de coerção.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Atualizado às 11:00

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Há poucas forças político-sociais, no Brasil de hoje, mais influentes do que a religião - mais precisamente, do que católicos/protestantes. Recentemente, o debate público foi poluído por estes dois grupos religiosos. Ambos bradavam que o Estado, via decisão do STF, estava acabando com a liberdade religiosa ao não permitir que cultos presenciais, com aglomerações, aconteçam em plena pandemia do covid-19. Oras, parece um raciocínio muito simples e, portanto, pressupõe-se, correto: "se não posso ir à missa, não tenho mais a liberdade de ser cristão". Pois bem, analisemos esta premissa à luz do Direito e da Filosofia.

Em primeiro lugar, trataremos da liberdade. Versaremos sobre está como a capacidade de movimento sem impedimento. Trocando em miúdos, ser livre é a capacidade de agir sem algum tipo de coerção. Consequentemente, posso fazer o que desejo e devo buscar aquilo que me deixa feliz, independentemente de terceiros. Nesse sentido, tem-se uma liberdade absoluta, sem meio termo e sem consequências. Uma faculdade/direito ilimitado que se resume na seguinte expressão: "eu quero = eu posso".

Nada poderia estar mais longe da verdade. O livre agir não é um salvo conduto para justificar qualquer desejo individual. Com o propósito de facilitar o entendimento, imaginemos que, no nosso universo pessoal - aquele composto pelas nossas experiências exclusivas - coexistam dois mundos completamente diversos: o mundo do particular - nosso mundo familiar, sentimental e afetivo - e o mundo da sociedade - o mundo ampliado, com diversas relações interpessoais.

Estes dois planetas são regidos por leis completamente distintas e se aplicássemos sempre, inalteradas e irrestritas, as regras do mundo particular ao mundo da sociedade, como nossos instintos e anseios sentimentais nos incitam a desejar com frequência, nós o destruiríamos. Ao mesmo tempo, se aplicássemos as regras da realidade ampliada aos nossos agrupamentos mais íntimos, nós os suprimiríamos. Assim, temos de aprender a viver em dois tipos de mundo ao mesmo tempo¹. Vou além: não basta aprendermos a viver nestes dois mundos tão distintos, é necessário transgredir o mundo particular e tornar- se um cidadão², justamente por serem de naturezas tão diversas.

Fica evidente, portanto, que a liberdade não se fundamenta apenas na vontade do mundo particular. O cidadão, que é livre para agir no mundo da sociedade, tem responsabilidade sobre todas as suas decisões. Uma responsabilidade que vai muito além da sua "busca pela felicidade". Sendo legítima, sim, a busca pelos seus desejos, caso se responsabilize pelo dano dessas ações.

E é neste último "se" que a militância "em defesa da liberdade religiosa" entra em contradição. Em plena pandemia, evocar o direito de realizar cultos presenciais em nome da liberdade de crença é colocar o mundo afetivo à frente da sociedade. É, justamente, ter a ânsia de satisfazer seus desejos pessoais - disfarçados de espirituais - sem querer se responsabilizar por isso.

Exposta a antinomia do ponto de vista da liberdade, partiremos à análise do Direito.

Inicialmente, tracemos a trajetória dos discursos que alegam o fim da liberdade religiosa. Em síntese, após uma liminar do Ministro Marques Nunes autorizando cultos religiosos, o Ministro Gilmar Mendes argumentou e se manifestou contra a liminar, alegando "negacionismo" diante da pandemia do covid-19. Com isso, grupos religiosos começaram a atacar o Ministro Gilmar Mendes alegando que a derrubada de tal liminar seria uma afronta à liberdade religiosa, protegida como Direito Fundamental no Artigo 5o, VI, da CF.

Com este resumo em mente, avaliemos o que a doutrina do Direito diz a respeito da liberdade religiosa*. Para tal, considera-se religião um sistema de crenças em um (ou mais) ser(es) divino(s), em que se professa uma vida além da morte, que possui um texto sagrado, que envolve uma organização e que apresenta rituais de oração e de adoração³. Nesse contexto, a liberdade religiosa consiste na liberdade para professar fé em Deus. Por isso, não cabe arguir a liberdade religiosa para impedir a demonstração da fé de outrem ou em certos lugares, ainda que públicos.4

Conclui-se, então, que a Constituição protege a liberdade de religião para possibilitar que as pessoas possam viver a sua fé5. E, ao proteger a liberdade religiosa, o Estado protege, por conseguinte, a liberdade das liturgias.

Neste momento, o leitor pode estar pensando que é óbvio que o Estado não pode interferir na prática da igreja, portanto a proibição do STF é inconstitucional. Vamos com calma e analisemos a realidade.

Estamos diante da maior crise epidemiológica das últimas décadas, na qual o contágio se dá pelo contato entre pessoas infectadas e não infectadas. Sendo assim, cultos como normalmente são feitos tornam-se aliados à proliferação do vírus. Deixo claro, ainda em tempo, que entendo o apelo pela liberação dos cultos, mas tal demanda não é compatível com a atual conjuntura nacional. É nesta esteira que argumenta Gilmar Mendes, na ADPF 881:

"No ano de 2008, em discurso proferido na Universidade de Münster, rememorando as lições do Professor PETER HÄBERLE4, destaquei que, no limiar do século XXI, liberdade e igualdade deveriam ser (re)pensadas segundo o valor fundamental da fraternidade, de modo que a fraternidade poderia constituir a chave por meio da qual podemos abrir várias portas para a solução dos principais problemas vividos pela humanidade em tema de liberdade e igualdade. A dialética entre direitos e deveres, entre empatia e imparcialidade, entre  a  justiça  e  a  misericórdia,  entre  legalidade  e  bem  comum  que compõem o conceito da fraternidade nos mostra o caminho para encontrar a melhor solução jurídica diante das oposições, dicotomias e contradições envolvendo o momento presente5.É esse o norte que tem guiado este STF na realização do controle de constitucionalidade de restrições impostas às liberdades individuais em razão das medidas de enfretamento à pandemia do novo coronavírus."6

Por fim, é fundamental observarmos que a decisão não proíbe nem cessa o direito fundamental à crença. Tal premissa é constatável por meio dos seguintes fatos: (i) a igualdade com que todas as religiões foram tratadas. Não foi uma decisão de que apenas cultos das religiões "a" ou "b" seriam proibidos. Por isso, não há que se falar em perseguição; (ii) foram proibidas as aglomerações geradas pelos cultos, não o funcionamento das instituições religiosas que, no Brasil, exercem substancial papel social. Por último, é mister ressaltar que em tempos de comunicação em rede, os cultos podem ser realizados via internet, o que, mais uma vez, prova que não existiu proibição.

___________

1. HAYEK, Friedrich A. von. Os erros fatais do Socialismo - Pág 29. Ed.1

2. HOLANDA, Sérgio Boarque. Raízes do Brasil - Pág 169.

* Utilizarei como base o livro "Curso de Direito Constitucional" do atual ministro do STF Gilmar Mendes e do professor Paulo Gonet Branco - 15. Edição.
3.  John H. Garvey e Frederick Schauer, The first amendment: a reader. St. Paul: West Publishing Co., 1996, p 595. Citado por Gilmar Mendes em "Curso de Direito Constitucional", p 323.

4. Gilmar Ferreira Mendes, Curso de Direito Constitucional, p 327.

5. John H. Garvey, What are Freedoms for?, Cambridge-Mass: Harvard University Press, 1966, p.45 e.s. Citado por Gilmar Mendes em "Curso de Direito Constitucional", p. 326.

6. Voto do Ministro Gilmar Mendes da ADPF 881. Disponível aqui.

Carlos Henrique Roscoe Januzzi

Carlos Henrique Roscoe Januzzi

Acadêmico do 5º período de Direito na Faculdade Milton Campos.

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