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Os sete erros da súmula 229 do STJ

A súmula, seja vinculante ou persuasiva também necessita de interpretação porque, no final das contas, é um texto normativo.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Atualizado em 30 de abril de 2021 09:06

Em artigo publicado no início deste ano, o prof. Nelson Nery Júnior abordou o tema das súmulas dos tribunais como problema inerente a todo enunciado linguístico que demanda apreensão de seus possíveis significados.1 A súmula, seja vinculante ou persuasiva - ensina o prof. Nery - também necessita de interpretação porque, no final das contas, é um texto normativo. Além disso, exige absoluta fidelidade à Constituição e à lei federal brasileira, requisito que ele considera não ter sido observado ao menos nas súmulas vinculantes 3 e 5 do STF e nas súmulas 381, 623, 637 e 641 do STJ.

De fato, exemplos não faltam. Bem-vindos agora à súmula 229 do STJ. Como se sabe, diz ela que "O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão". Aqui, temos um pacote completo de defeitos, congregando sete problemas que justificam seu urgente cancelamento.

Primeiro: a súmula 229 está desatualizada. Ela foi editada em 8.9.1999, há mais de 20 anos, sob a vigência do Código Civil de 1916, que tinha parâmetro legislativo diferente do atual. Ali, o velho estatuto dizia que a ação do segurado contra o segurador prescrevia em 1 ano contado do dia em que o interessado tivesse conhecimento do fato (CC/16, art. 178, § 6º, II).

Esse regime, todavia, mudou em 2002. O Congresso Nacional estabeleceu outro critério, dessa vez baseado na pretensão, que é o poder que alguém tem para exigir de outrem o cumprimento de uma prestação positiva ou negativa.2 Esse poder, no entanto, só nasce para o titular quando violado o seu direito (CC/02, art. 189). Em matéria de seguros, o Código vigente manteve o prazo ânuo, mas afirmando que começa a correr da ciência do fato gerador da pretensão (CC/02, art. 206, § 1º, II, "b"). O paradigma legislativo é bastante diferente. A pretensão, lembra Moreira Alves, a par de constituir um dos temas mais difíceis da Teoria Geral do Direito, é a chave para explicar o fenômeno da prescrição.3

Segundo: a súmula 229 contraria a natureza do contrato de seguro. A relação securitária é complexa e dinâmica, estando inserida naquilo que Clóvis do Couto e Silva chama de "processo obrigacional".4 Todo evento relevante precisa ser comunicado o quanto antes à seguradora para que ela investigue suas possíveis causas, apure a existência do dano, calcule a extensão do prejuízo e identifique a cobertura na apólice, se houver. Isso significa que existe um processo de apuração a cargo do segurador prévio e necessário ao reconhecimento da cobertura, à semelhança do processo de constituição do crédito tributário pelo Fisco.5 Essa etapa, que representa a fase de execução do contrato, se chama regulação e liquidação de sinistro, integrando o ciclo obrigacional como "momento antecedente (e obrigatório) ao da exigibilidade da prestação securitária", nas palavras de Judith Martins-Costa.6

Portanto, não existe pretensão indenizatória alguma na mão do segurado enquanto esse processo não for concluído.7 Muitas vezes não se sabe ao certo, nem mesmo a seguradora, se houve efetivamente um sinistro indenizável pelo contrato de seguro. Tudo isso mostra que, pela natureza de processo obrigacional que caracteriza o contrato de seguro, não faz sentido algum falar de prazo prescricional correndo contra o segurado diante da ocorrência pura e simples de um fato (evento remoto). Não existe pretensão indenizatória até então. No máximo, o segurado pode exigir da companhia o cumprimento de uma obrigação de fazer, no caso a de regular o sinistro na forma e no prazo devidos.

Terceiro: a súmula 229 é obscura. Sua redação não fala claramente que o prazo de prescrição começa a correr já do evento remoto. Essa informação é extraída por inferência. O verbo "suspender", conjugado na terceira pessoa do singular, dá ao leitor uma dica muito sutil de que o prazo começou a correr antes. Mas antes quando? O texto também não fala. Supõe-se que seja do acidente ou fato que possivelmente poderá caracterizar um sinistro.

Salvo os especialistas experientes no contencioso securitário, quem lê esse enunciado, sem estar muito atento às suas entrelinhas, é levado a pensar que o importante ali está na parte final da mensagem. A "ciência da decisão" tem aparência de marco inicial de contagem. Ledo engano. Esse equívoco muitas vezes só vem a ser descoberto em juízo, quando o advogado do segurado percebe que existe uma equação matemática por trás. A súmula 229 quis dizer, na verdade, que o prazo começa a correr do evento remoto, fica suspenso com o aviso de sinistro e volta a contar (de onde havia parado) da decisão negativa de cobertura. A "ciência da decisão", portanto, não é termo a quo, mas um marco de continuidade do prazo que estava congelado.

Quarto: a súmula 229 é diabólica. Sua obscuridade surpreende o segurado com um critério de perecimento contínuo de uma pretensão que sequer chegou a nascer (actioni nondum natae non praescribitur). A pretensão só surge a partir do momento em que a seguradora se recusa a indenizá-lo, seja por meio de negativa expressa por escrito, seja por sua omissão prolongada e injustificável em concluir o procedimento de regulação. É dessa resistência que nasce a pretensão indenizatória do segurado diante da possível violação do seu direito.

Por essa razão, é diabólico deflagrar prazo contra o segurado que não tem pretensão formada e nem sabe se o seu direito foi violado, quando a seguradora sequer cumpriu ainda com sua obrigação básica de regular o sinistro. A depender da complexidade do evento, a regulação pode durar vários anos. Quando sobrevém a negativa, o segurado não consegue fazer esse cálculo matemático retroativo para chegar em juízo a tempo de utilizar o pedaço remanescente do prazo de 1 ano que voltou a correr de onde havia parado.

Nos seguros de responsabilidade civil (CC, art. 787), a situação tende a se agravar. O sinistro tem natureza complexa porque envolve uma cadeia de acontecimentos ao longo do tempo, desde o evento remoto, passando pela imputação de responsabilidade apresentada pelo terceiro prejudicado, até desaguar em ação judicial e possível condenação.8 Aqui, existe regra específica afirmando que o prazo do segurado começa a contar da data de sua citação para responder à ação indenizatória do terceiro, ou da data em que este é indenizado pelo segurado com a anuência do segurador (CC, art. 206, § 1º, II, "a"). Se não houver elementos probatórios suficientes para indenizar prontamente o segurado, de preferência pagando diretamente à vítima do dano, a seguradora deve acompanhá-lo nos autos do processo ou fora dele, auxiliando sua defesa com vistas ao julgamento de improcedência da demanda. Se houver condenação, terá que proceder ao pagamento da prestação indenizatória nos limites e condições do contrato de seguro.

Entretanto, se acaso ela negar a cobertura anos depois, eis o cenário perfeito a conduzir o segurado ao buraco negro da prescrição. Aplicada a equação 229, a citação disparou o prazo de 1 ano e o aviso de sinistro o suspendeu, voltando a fluir da negativa de cobertura pelo tempo restante. Em departamentos jurídicos de empresa, aquele que recebe a negativa normalmente não é a mesma pessoa que assistiu ao sinistro 5 ou 10 anos antes. Em muitos casos, a companhia de seguros nada faz para orientar o segurado, nada fala sobre o assunto ao longo da regulação de sinistro, silencia em sua carta negativa, mas depois surpreende o autor da ação em juízo com capciosa preliminar de prescrição, acusando transcurso do prazo ânuo contado lá de trás.

Num ambiente de incertezas, com sua atenção voltada para o processo movido pela vítima, não é razoável exigir de alguém esse cálculo retroativo - com prazo já tão curto - para identificar o tempo remanescente e poder exercer seu direito fundamental de acesso aos tribunais. O decreto de prescrição se torna ainda mais injusto quando o cenário fático demonstra nunca ter havido inércia do segurado.

Por outro lado, se acaso não tiver havido ação judicial da vítima e a seguradora vier a negar o pleito de cobertura em algum momento, sua contestação em juízo igualmente aparecerá com um tópico inicial em caixa alta, a título preliminar, acusando que o prazo do segurado disparou sua contagem a partir do acidente (evento remoto). Tal manchete, panfletando entendimento do Tribunal Superior, é a uma "carteirada" difícil de contornar. Nos contratos de seguro garantia, é muito comum a seguradora acusar a deflagração do prazo a partir de qualquer intercorrência ou divergência ordinária havida durante a construção da obra de engenharia, muito antes de configurar o inadimplemento absoluto que implica a rescisão contratual.

A súmula 229 é um convite diário a esse tipo de comportamento avesso à boa-fé objetiva negocial e processual. Se isso representa uma dificuldade insana até mesmo para os operadores da advocacia securitária, imagine o cenário diabólico de insegurança que abraça o advogado do contencioso cível não especializado.

Quinto: a súmula 229 é incoerente. Se a pretensão do segurado nasce do fato remoto, o que explica então a extinção do processo sem resolução do mérito para quem ingressa em juízo com ação indenizatória no dia seguinte ao sinistro? Foi porque o aviso feito ao segurador teria "congelado" a pretensão? Se o segurado então não fizer aviso de sinistro, sua ação pode prosseguir normalmente rumo ao julgamento de mérito? Evidente que não. Não há interesse de agir justamente porque não houve pretensão resistida para configurar o conflito. A súmula expele contradições que não aguentam um sopro de racionalidade jurídica.

Sexto: a súmula 229 é inconstitucional. Ela ofende o inciso XXXV do art. 5º da Constituição, porque amputa um pedaço do prazo prescricional que não pôde ser usufruído antes e nem será devolvido depois. Isso restringe o canal de acesso do segurado à Justiça para além da própria restrição já implantada pela fixação do prazo prescricional. Atinge também a cabeça do art. 5º. O regime de prescrição proporciona segurança e estabilidade às relações jurídicas, em benefício do devedor, mas não pode jamais constituir uma armadilha surpreendente para o titular da pretensão. Segurança jurídica - assinala Humberto Ávila - existe precisamente quando o indivíduo conhece e compreende o conteúdo do Direito, quando tem assegurados no presente os direitos que conquistou no passado e quando pode razoavelmente calcular as consequências que serão aplicadas no futuro relativamente aos atos que praticar no presente.9

Sétimo: a súmula 229 está na contramão da doutrina brasileira. A tese do verbete continua sendo aplicada todos os dias sem qualquer reflexão, apesar das agudas críticas que a têm colocado em xeque.10 Sua revisão se impõe não só por uma preocupação com a integridade do sistema, mas também pelas consequências desastrosas que ela tem produzido em detrimento do acesso à Justiça e da tutela do direito material. Em mais de duas décadas, sem contar os anos anteriores à sua edição, quantas pretensões e direitos foram prematuramente decepados por força desse entendimento cristalizado?

Não se negue o mérito da solução encontrada nos anos 90, sem dúvida voltada à proteção do segurado. O problema, todavia, ficou resolvido pela metade, pois não se trata de suspensão, mas sim de impedimento para um prazo que sequer começou a fluir. No dia em que for cancelado o verbete para corrigir esse jogo dos 7 erros, fica aqui nossa sugestão: o prazo de 1 ano previsto para exercício da pretensão do segurado contra a seguradora só começa a contar de sua ciência sobre a decisão negativa de cobertura apresentada por escrito pela companhia de seguros.11

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1 JÚNIOR, Nelson Nery. Súmulas também precisam ser interpretadas. 
2 BARBOSA MOREIRA, J. C. Notas sobre pretensão e prescrição no sistema do Novo Código Civil Brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil. V. 3, Nº 11, p. 67-78, jul./set., 2002.
3 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito subjetivo, pretensão e ação. Revista de Processo. V. 47. São Paulo: RT, 1987, p. 112 e 120.
4 COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 81 e 95. Nesse sentido: THEODORO JR., Humberto. Contrato de seguro. Ação do segurado contra o segurador. Prescrição. In: MARTINS-COSTA, Judith & FRADERA, Véra Jacob de (Org.). Estudos de Direito Privado e Processual Civil. São Paulo, RT, 2014, p. 151;
5 THEODORO JR., Humberto. Contrato de seguro. Ação do segurado contra o segurador. Prescrição. In: MARTINS-COSTA, Judith & FRADERA, Véra Jacob de (Org.). Estudos de Direito Privado e Processual Civil. São Paulo, RT, 2014, p. 151;
6 MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o dies a quo do prazo prescricional. In: MIRANDA, Daniel Gomes de; CUNHA, Leonardo Carneiro da & JÚNIOR, Roberto Paulino de Albuquerque (Org.). Prescrição e Decadência - Estudos em homenagem ao Professor Agnelo Amorim Filho. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 296.
7 Merece registro a sensibilidade manifestada ainda sob o CC/16: STJ, 4ª T., REsp 305.746-MG, Min. Fernando Gonçalves, j. 26.08.2003. No CC/02: TJRJ, Órgão Especial, Uniformização de Jurisprudência nº 08/2006, Des.ª Telma Musse Diuana, j. 18.06.2007.
8 MELO, Gustavo de Medeiros. Ação direta da vítima no seguro de responsabilidade civil. São Paulo: Contracorrente, 2016, p. 46.
9 ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 19.
10 THEODORO JR., Humberto. Contrato de seguro. Ação do segurado contra o segurador. Prescrição. In: MARTINS-COSTA, Judith & FRADERA, Véra Jacob de. (Org.). Estudos de direito privado e processual civil: Em homenagem a Clóvis do Couto e Silva. São Paulo: RT, 2014, p. 151; SIMÃO, José Fernando. Prescrição e Decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 237; MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de seguro e contrato de resseguro. Sinistro complexo e cláusula de interdependência. Defeito no fornecimento. Interpretação contratual. A prática ("usos individuais") e as relações interempresariais. Comportamento posterior das partes. Comportamento deslealmente contraditório e proteção da confiança legítima. Prescrição e pretensão de direito material. Revista dos Tribunais. Vol. 948, p. 193. São Paulo: RT, outubro, 2014; TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B. & PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 3. ed., São Paulo: Roncarati, 2016, p. 327; PIZA, Paulo Luiz de Toledo. Provisão de Sinistros Ocorridos e Não Avisados, Aviso de Sinistro e Cômputo do Prazo Prescricional da Pretensão do Segurado em Face do Segurador. Revista Brasileira de Direito Comercial. Nº 3, p. 32. Porto Alegre: Magister, 2015; MIRAGEM, Bruno & PETERSEN, Luiza. Regulação do sinistro: pressupostos e efeitos na execução do contrato de seguro. Revista dos Tribunais. Vol. 1025, p. 291-324, março, 2021; MELO, Gustavo de Medeiros. O pedido de reconsideração nos processos de regulação de sinistro. Revista Brasileira da Advocacia. Vol. 6, ano 2, p. 46-47. São Paulo: RT, 2017; GOLDBERG, Ilan. A prescrição e o contrato de seguro. Direito de seguro e resseguro. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 66.
11 O PL da Câmara 29/2017, que pretende instituir uma lei específica para os contratos de seguro no Brasil, atualmente no Senado, propõe a seguinte regra:
"Prescrevem: I - em um ano, contado o prazo da ciência do respectivo fato gerador: (e) a pretensão do segurado para exigir indenização, capital, reserva matemática, prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias e restituição de prêmio em seu favor, após a recepção da recusa expressa e motivada da seguradora" (art. 124, inc. I, "e").

 
Gustavo de Medeiros Melo

Gustavo de Medeiros Melo

Mestre e doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, Centro de Estudos Avançados de Processo e sócio do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia.

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