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Euro digital e Cryptoyuan: Uma inevitável batalha ou aliança civilizacional através das moedas digitais?

O Euro Digital e o Cryptoyuan terão uma inevitável batalha ou aliança civilizacional através das moedas digitais, como forma de se posicionarem no mundo. No caso de uma aliança civilizacional criará um risco existencial para a hegemonia do Dólar ou eventual e-Dólar.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Atualizado às 16:54

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O Império Chinês foi minado por forças internas de interesses conflituantes, que levou o país à anarquia, resultando na mudança do regime político e com efeito à proclamação da República. Fatores externos, como às pressões militares de nações europeias, levaram, a classe dominante chinesa a se dissociar. O principal fator de desintegração do sistema imperial emergiu diante das necessidades crescentes dos últimos governantes da dinastia Manchu de concentrar recursos materiais e financeiros para fazer frente às rebeliões internas e aos inimigos externos. As necessidades materiais e financeiras só puderam ser atendidas a partir da destruição do amplo sistema de privilégios que unia a burocracia administrativa e a classe fundiária.1 No período do século XV a China já era uma potência, mas por causa das razões citadas acima a sua hegemonia foi adiada até a sua invasão pelos britânicos, russos e japoneses. E, após vários séculos, a China se ergue de forma gigantesca, no seu tecido industrial. No âmbito destes avanços, a China apresentou a sua primeira moeda digital na categoria CBDC, o Criptoyuan, através do Banco Popular da China, dando um passo mais adiantado do que o resto do mundo.

A guerra comercial dos EUA e China (2016-2020) motivou a que vários países começassem a cogitar a desdolarização das suas economias para evitar os efeitos negativos, no caso de serem vítimas de sanções impostas pelos EUA ou pela UE ou a salvaguardarem a sua boa relação com China, caso esta potência vença de uma vez por todas essas frenéticas contendas. Neste embate entre as grandes potências, desde a muito havia a necessidade de uma moeda digital da china, porquanto permitiria a redução de custos de fabricação de notas físicas, tal como a sua expansão global, como uma moeda de transação internacional, preferindo (estrategicamente) que o dólar americano continue como moeda de reserva internacional pelo menos por agora. Essa situação e temendo ser ultrapassada levou a UE a estudar a criação da sua própria moeda digital, Euro Digital, por iniciativa da Christine Lagarde, Presidenta do BCE em dezembro de 2019 uma ideia explicitada por Hélder Rosalino (Administrador do BdP e integrante do grupo de estudo para a criação do Euro Digital), ao dizer que ".a necessidade de garantir a independência da economia europeia, o papel do euro pode ficar em causa se outras moedas ganharem predominância," ou seja, trata-se apenas de uma batalha geopolítica por meio da concorrência criptomonetária internacional, que ocorre através de circuitos digitais da economia e finanças internacionais. Tudo ficou mais intenso quando os chineses começaram a fazer testes do Cryptoyuan em quatro cidades. Parece que, se os Chineses não criassem estas moedas, talvez os europeus não dariam muita relevância, como se viu no período entre 2015-2018. Neste sentido, coloca-se a questão de se saber, nesta batalha criptomonetária entre o Euro Digital (CBDC) e a Cryptoyuan (CBDC), quem terá maior benefício a nível de escala, segurança, confiança e exposição internacional? Com efeito, não há uma resposta efetiva, entrementes, os pressupostos económicos, a situação sanitária global (Covid19), os incentivos para a recuperação da economia e a crescente digitalização das economias e finanças internacionais vão ser determinantes. Outras questões a ter em conta tem que ver com o sistema da dinâmica das moedas de reservas internacionais, onde por exemplo, existe também uma batalha sobre que moeda de reservas internacionais estariam em melhores condições para suplantar o Dólar americano, num acirramento entre o Euro e o Yuan Chinês.

Estudos do FMI, demostram que o Dólar americano ainda é a moeda de reserva mais usada nas relações financeiras internacionais, de acordo com Alina Iancu (2020)2, ao afirmar que "há evidências empíricas (.) sugere que, extrapolando as tendências recentes, o domínio do dólar americano como moeda de reserva deve perdurar. No entanto, a pandemia COVID-19 levanta incertezas significativas sobre as principais tendências nos impulsionadores econômicos das configurações de reservas daqui para frente. Ao mesmo tempo, as crescentes tensões geopolíticas podem desencadear ajustes estratégicos repentinos nas reservas. Além disso, os avanços tecnológicos, particularmente o surgimento de moedas digitais e avanços nos sistemas de pagamento, podem alterar a importância dos motores tradicionais das moedas de reserva, acelerar a transição para configurações alternativas de reserva, resultar no surgimento de novas moedas de reserva e ainda diminuir a estabilidade das configurações futuras de moeda de reserva". Alguns países como a Venezuela, em função da situação financeira que vivem, resultantes das sanções impostas pelos EUA, tiveram dificuldades em manejar as suas reservas internacionais líquidas e de ouro, até mesmo para financiar os custos de combate a crise sanitária da COVID19. Países como o Irão, Rússia, China, Turquia e Venezuela, influenciados pelas políticas de sanções dos EUA e UE, estão a celebrar acordos internacionais de uso das suas moedas nas trocas comerciais bilaterais como alternativas das mesmas. Verifica-se também, que se o Cryptoyuan tiver sucesso à nível da sua expansão digital, as moedas FIATs como o dólar, e especificamente o Euro poderão ter dificuldades na sua projeção global como moeda de reservas internacionais, como afirmou Hélder Rosalino (2020) e Alina Iancu (2020), em função da dimensão da economia chinesa, que segundo Graham Alison ".explicando sua decisão de mudar de MER para PPP em sua avaliação anual das economias nacionais, (.) a CIA observou que "PIB à taxa de câmbio oficial [MER PIB] subestima substancialmente o nível real de produção da China vis - a - vis o resto do mundo".

Assim, de acordo com Graham Alison, a PPP "fornece o melhor ponto de partida disponível para comparações de força económica e bem-estar entre economias". O FMI acrescenta ainda que "as taxas de mercado são mais voláteis e usá-las pode produzir oscilações bastante grandes nas medidas agregadas de crescimento, mesmo quando as taxas de crescimento em países individuais são estáveis". Graham Alison (2020)3, considerou ainda que "para que os EUA enfrentem o desafio da China, os americanos precisam acordar para o fato desagradável: a China já nos ultrapassou na corrida para ser a economia nº 1 do mundo. Além disso, em 2020, a China será a única grande economia que registará um crescimento positivo: a única economia que será maior no final do ano do que era no início do ano. As consequências para a segurança americana não são difíceis de prever. O crescimento econômico divergente irá encorajar um ator geopolítico cada vez mais assertivo no cenário mundial". Diante desta constatação, que precisará ainda muitos estudos adicionais para melhor compreensão, o facto da China se tornar a maior economia do mundo, de acordo ao critério de avaliação do PIB através da PPP, na visão de Graham Alison, permite que a situação da UE seja muito complexa, na batalha hegemónica a nível das moedas digitais com a China. Trata-se de uma situação que ainda não se sabe os seus efeitos concretos até ao final de 2025. Parece que a estratégia da China começou desde 2014 ao ter proibido operações de Bitcoin no seu território, seja como meio de pagamento e como local de mineração. No mesmo ano, enquanto o mundo discutia se podia ou não aceitar as criptomoedas, a China estava a desenvolver estudos para a criação do criptoyuan4.

Já em 2019, enquanto os europeus ainda relutavam com aquela possibilidade, rejeitando as propostas do então Ministro da Finanças da Espanha para a criação do Euro Digital e a Libra do Facebook, os Chineses começaram a fazer testes operacionais em Shenzhen, Suzhou, Xiong'an e Chengdu e reconhecendo mais 80 patentes desenvolvidas para o Cryptoyuan. Tendo em conta que, a dita civilização ocidental engloba a Europa, EUA e Canadá, resumidamente, no oriente médio, a China ergue-se industrialmente, como a maior fábrica do mundo, apesar da crise sanitária da covid-19. Neste sentido, a criação de uma moeda digital como o Cryptoyuan pode levar a uma batalha civilizacional com a UE, através do Euro Digital nos próximos tempos. O ocidente e o oriente diante de uma batalha de hegemonia tecnológica, através das CBDC que, como vimos acima, podem modificar e alterar a importância dos motores tradicionais das moedas de reserva, acelerar a transição para configurações alternativas de reservas, resultar no surgimento de novas moedas de reserva e ainda diminuir a estabilidade das configurações futuras de moeda de reserva, isso se os americanos não ficarem desatentos, mesmo apesar de já terem dado um passo na atribuição de licença do primeiro Banco Digital, a Anchorage Digital Bank. Será isso que os chineses desejam com o Cryptoyuan, tornar a sua moeda física e digital uma alternativa as moedas de reservas internacionais?

Será esse receio que Hélder Rosalino se referia, quando dizia que a ". necessidade de garantir a independência da economia europeia, o papel do euro pode ficar em causa se outras moedas ganharem predominância"? O receio de Hélder Rosalino (2020), pode estar em concordância com o receio dos analistas do Deutsche Bank (Nolting, Heinz e Köhling, 2020) que acreditam que "a utilização da moeda virtual chinesa pode acabar com a necessidade de utilização dos serviços da SWIFT, algo que poderia converter o yuan em moeda de reserva mundial. Anteriormente, o dólar se tornou uma moeda de reserva graças ao início da negociação de commodities nessa moeda. Portanto, possíveis mudanças no sistema financeiro poderiam alterar completamente o equilíbrio de forças no mercado monetário mundial".5 A empresa SWIFT prevendo isso, promoveu uma aliança com a China recentemente. Em resposta a estes receios, o Governador da Federal Reserve Board, Lael Brainard, comunicou que "...dado o importante papel do dólar, é essencial que a Reserva Federal permaneça na vanguarda da pesquisa e da formulação de políticas relativas às moedas digitais de bancos centrais dos Estados Unidos"6. A suposta batalha civilizacional entre o ocidente e o oriente através das moedas digitais, pode ser evitável através de uma "aliança civilizacional", ideia proposta por José Rodrigues Zapatero em 2005, para contrapor as ideias do "Fim da História" de Francis Fukuyama (1992), o "Choque de Civilizações" de Samuel P. Huntington (1995). Neste sentido, uma aliança civilizacional para impedir a suposta batalha seria a criação de uma moeda digital global, que não dependesse de um país, e que funcionasse de acordo as regras do funcionamento das principais instituições financeiras globais (FMI, Banco Mundial, BIS e NDB etc). Essa necessidade justifica-se porque a nível do setor privado já existe a Bitcoin.

Cogitando a aliança civilizacional, o Banco Popular da China planeja cooperar com outros reguladores financeiros a fim de estabelecer uma estrutura legal para moedas digitais em todo o mundo, de acordo com Yi Gang (2020) quando afirma que "gostaria de cooperar com o Banco de Compensações Internacionais, o Conselho de Estabilidade Financeira e banqueiros internacionais para discutir uma estrutura legal, [promover] transparência e como salvaguardar [o desenvolvimento] de moedas digitais"7

A agência Reuters (2020)8, referindo-se a um artigo publicado pela China Finance, informou que a "China, por sua vez, aspira a se tornar a primeira nação a emitir uma moeda digital em seu esforço para internacionalizar o yuan e reduzir sua dependência do sistema global de pagamentos em dólares, e que o Banco Central da China previa que os direitos de emitir e controlar uma moeda digital se tornarão um - novo campo de batalha - entre países soberanos concorrentes"9. Será que haverá mesmo uma batalha ou aliança entre civilizações (Ocidente vs. Oriente), através das moedas digitais? Yi Gang (2020) prefere uma aliança (no sentido de cooperação internacional), como a que se concretizou recentemente com a criação conjunta de uma empresa de pagamento entre a Swift, Centro de Compensações e Instituto de Pesquisa sobre Moedas Digitais do Banco Popular da China (PBoC)10. Mas será que este é mesmo o interesse da China? E será que o Euro Digital vai ajudar o desenvolvimento da economia da zona euro ou é apenas um mero instrumento de competitividade geoestratégico através das moedas digitais para se contrapor a presumível velocidade das tecnologias criptomonetárias da China? Entre o Euro Digital e o Cryptoyuan terão uma inevitável batalha ou aliança civilizacional através das moedas digitais, como forma de se posicionarem no mundo. No caso de uma aliança civilizacional entre o Euro Digital e o Cryptoyuan seria um risco existencial para a hegemonia do Dólar (ou o eventual e-Dólar) e que teria uma resposta enérgica dos EUA. Em caso de confronto entre o Euro Digital e Cryptoyuan, é bem provável que o Euro Digital não conseguirá suplantar a força da moeda digital chinesa com facilidade, a não ser através de uma ajuda do Dólar Americano (ou o eventual e-Dólar). Portanto, o Euro Digital, que a UE prepara a sua construção, e o Cryptoyuan em teste de implementação real na China podem transformaram-se em novos focos de batalhas ou alianças geoestratégicas dos Estados para liderar a humanidade através da unipolaridade ou multipolaridade. É a história se repetindo com a semelhança do início da revolução industrial. Apesar de tudo, trata-se de uma realidade que só o tempo nos dirá o seu final!



1 Disponível clicando aqui.

2 IANCU, Alina. "Reserve currencies in an evolving international monetary system". IMF. Strategy, Policy, and Review Department. Washington, DC. 2020, p.33.

3 ALISON, Graham. "China Is Now the World's Largest Economy. We Shouldn't Be Shocked". October 15,2020. National Interest. Available at: clique aqui. Acesso: 26.1.21.

4 "El yuan digital pasa las pruebas internas: ¿cómo cambiará la moneda virtual china el sistema financiero global? " Disponível clicando aqui. Acesso: 26.1.21.

5 NOLTING, Christian; HEINZ, Gerit; KÖHLING, Stefan. "Central Bank Digital Currencies Money reinvented". Deutsche Bank Wealth Management. Sept. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso: 13.2.21.

6 Disponível clicando aqui; Disponível clicando aqui.

7 Governador do Banco Popular da China. 2 de nov. de 2020. Disponível clicando aqui.

8 Future of Money. "China needs first mover advantage in digital currency race: PBOC magazine". Septe. 21, 2020. By Reuters Staff. Disponível clicando aqui. Acesso: 26.1.21.

9 Ibidem.

10 "SWIFT e banco central da China criam empresa para "internacionalizar" o yuan." Disponível clicando aqui. Acesso: 12.2.21.

José Francisco Lumango

José Francisco Lumango

Jurista especializado em Regulação Financeira. Doutorando em Direito Financeiro e Económico Global pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre em Direito e Mercados Financeiros pela NOVA School of Law - NOVA IMS da Universidade Nova de Lisboa. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola.

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