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O custo do feminino: A tributação brasileira sobre o consumo como um estímulo à desigualdade de gênero

A forma regressiva do sistema tributário brasileiro, principalmente na tributação sobre o consumo, colabora para o aumento da desigualdade entre homens e mulheres.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Atualizado às 17:00

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Materialização de uma clara contradição ao direito e garantia fundamental previstos na Constituição Federal, que vislumbram um tratamento igual a todos, sem distinção de qualquer natureza, a desigualdade de gênero é uma característica marcante ainda presente no cenário brasileiro e que tem sido pauta nas discussões em nível internacional, em razão de seus impactos econômicos e sociais.

Segundo relatório Global Gender Gap Report1 elaborado pelo Fórum Econômico Mundial para o ano de 2021, em que são considerados critérios como: participação e oportunidades econômicas, acesso à educação, empoderamento político e questões de saúde e expectativa de vida, o Brasil ocupa a posição nº 93 no ranking comparativo da desigualdade de gênero, onde foram considerados 156 países.

Os efeitos da desigualdade de gênero podem ser percebidos em diversos setores da sociedade, sobretudo no setor econômico, especificamente no que diz respeito ao sistema tributário.

Segundo dados apresentados em relatório2 produzido pela Receita Federal Brasileira, com base em informações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, a arrecadação tributária brasileira incide majoritariamente sobre o consumo de bens e serviços. Por si só, esta característica regressiva do sistema tributário brasileiro constitui fator agravante das desigualdades sociais. Isto porque, neste contexto, não se considera a capacidade contributiva de cada indivíduo, pelo contrário, no que diz respeito ao consumo de bens e serviços, salvo exceções de benefícos fiscais, a alíquota é fixa e igual para todos os consumidores.

Num primeiro momento, a regressividade pode parecer uma forma justa de matriz tributária, prezando pela igualdade, entretanto, num país com inúmeras desigualdades como o Brasil, esta uniformidade deve ser repensada, uma vez que os cidadãos brasileiros não dispõem igualitariamente dos mesmos recursos.

A proporção da renda comprometida para o consumo de um cidadão hipossuficiente é consideravelmente maior do que a de um cidadão com maiores recursos financeiros. Cabendo destacar que, o consumo por si só, na maioria das vezes, está atrelado à subsistência do indivíduo.

O cenário se torna ainda mais desproporcional quando esta regressividade é analisada sob a ótica da desigualdade de gênero. Isto porque, segundo dados coletados pelo IBGE  (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)3, em 2019, o salário pago às mulheres chega a ser quase 30% menor do que o pago aos homens, mesmo no exercício das mesmas atividades.

Portanto, considerando que, mesmo exercendo as mesmas funções profissionais, as mulheres possuem renda menor do que a dos homens, de um modo geral, a regressividade do sistema tributário por si só já seria um fator agravante para a desigualdade, uma vez que, ainda que consumissem exatamente a mesma quantidade e os mesmos bens e serviços, haveria uma disparidade na realidade econômica.

Além do exposto, importa considerar a figura do pink tax, ou imposto rosa, que consiste no termo utilizado para o preço adicional pago pelo público feminino no consumo de bens e serviços. Não se trata de um tributo propriamente dito e específico para mulheres, mas de um acréscimo aos valores dos produtos femininos, tornando-os mais caros do que os similares destinados ao público masculino.

O termo decorre do fato de que, historicamente, por questões de cunho sociológico, a cor rosa é atribuída às mulheres, e do fato de que o pagamento do referido valor não é facultativo e está embutido no preço das mercadorias e dos serviços, tendo aspectos semelhantes aos de um imposto indireto seletivo, conforme expõe a professora Alara Efsun Yazicioglu4.

Exemplos práticos desta desproporcionalidade entre os valores podem ser percebidos em produtos de higiene pessoal, roupas e acessórios, medicamentos, brinquedos infantis, e até mesmo na prestação de serviços, como corte de cabelo. 

Desta forma, considerando que, a tributação brasileira é regressiva e incide majoritariamente sobre o consumo de bens e serviços, uma vez que exista uma precificação diferenciada em razão do gênero do consumidor, consequentemente a tributação seguirá este padrão. De forma que, um produto destinado às mulheres não será apenas mais caro, mas também mais tributado.

Nas palavras de Maria Raquel Firmino: "(...) a regressividade do sistema atua de forma bastante penosa para as mulheres devido ao maior encargo sobre os produtos que elas estão mais propensas a consumir, seja porque faz parte da divisão de trabalho tradicionalmente que lhes foi atribuída, seja porque são de uso obrigatório, por questões fisiológicas (como já citado, os produtos para amamentação, absorvente higiênico, etc), seja porque estão mais vulneráveis à pobreza e à miséria (sobretudo mulheres negras).5"

Importa dizer que, na prática, o pink tax passa despercebido, principalmente pelo público feminino. Para alguns estudiosos, este fato se insere no campo de estudo da economia comportamental.

O conceito de economia comportamental, desenvolvido por Richard Thaler,  com base nas obras de Herbert Simon e Daniel Kahneman, consiste na ideia de que o ser humano, ao contrário do que prega a economia clássica, não age pautado pura e simplesmente na razão, tomando suas decisões seguindo impulsos e instintos.

De forma que, instintivamente, uma mulher tende a consumir produtos destinados ao público feminino, ainda que estes apresentem as mesmas funcionalidades que produtos similares masculinos, e principalmente, ainda que estes sejam mais caros, sem se dar conta desta realidade.

Segundo estudo realizado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM6, numa pesquisa feita com 480 mulheres, nas capitais de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, 82% das mulheres entrevistadas não percebem a diferença entre os preços dos produtos femininos e masculinos.

Assim, no que diz respeito ao pink tax, as mulheres ao comprarem bens, tendem a impulsivamente optar pelos produtos destinados ao público feminino, não percebendo que, apesar das mesmas funcionalidades presentes nos produtos masculinos, são mais caros. Diversos fatores sociais podem estimular esses impulsos, como a pressão estética, a imposição de padrões de beleza e comportamento, e a atribuição de determinadas obrigações tradicionais às mulheres, como administração do lar e absoluta responsabilidade na criação dos filhos.

Outro fator agravante da desigualdade de gênero no sistema tributário brasileiro, é a tributação, por vezes exarcebada, sobre produtos essenciais ao público feminino, como é o caso da tributação sobre absorventes íntimos. A tributação incidente sobre esses itens pode chegar a até 25% do valor do produto. Esta alta carga tributária é consequência do fato de que o absorvente íntimo não é visto como produto essencial, passível de inclusão aos itens de cesta básica, logo, não incidindo sobre estes benefícios fiscais.

Ao considerar a carga tributária de um item, a alíquota incidente não deve ser o único critério levado em consideração. No caso dos absorventes íntimos, cabe a reflexão num sentido amplo e a análise do impacto desta tributação de modo geral.

Num contexto brasileiro, em que a maior parte da população é formada por mulheres, e que estas mulheres tem salários inferiores aos dos homens (mesmo exercendo as mesmas atividades que estes), e que o uso destes produtos decorre de um fator biológico feminino, a desconsideração do absorvente íntimo como um item essencial passível de menor tributação e a não facilitação ao acesso, não é plausível e não condiz com o caráter justo e eficiente que se busca atingir com a tributação.

Assim, somada a existência do pink tax, que por si só já onera o consumo e a tributação feminina, à tributação desproporcional e injusta dos itens essenciais às mulheres, aos demais fatores econômicos e sociais, o sistema tributário brasileiro em seu formato atual não só é conivente com a desigualdade de gênero, como acaba sendo um elemento de agravo.  

Desta forma,  a discussão da tributação brasileira sob a ótica desigualdade de gênero faz-se necessária e não representa uma busca por privilégios por parte da população feminina, mas um alerta para a efetivação de um sistema tributário mais igualitário, eficiente e justo. E sobretudo, para defesa à garantia e ao direito fundamental à igualdade. 

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1 World Economic Forum. Global Gender Gap Report 2021. Geneva, 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 02 maio 21.

2 Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros. Receita Federal (org.). Carga Tributária no Brasil 2018: análises por tributos e bases de incidência. Distrito Federal, 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 02 maio 21.

3 BARROS, Alerrandre. Homens ganharam quase 30% a mais que as mulheres em 2019. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 maio 21.

4 YAZICIOGLU, Alara Efsun. The pink tax: the Schrondinger's cat of tax law, Op. Cit., p. 111.

5 RAMOS, Maria Raquel Firmino. "No taxation without women representation": Por um sistema tributário progressivo em relação ao gênero. In: MELO, Luciana Grassano; SARAIVA, Ana Pontes; GODOI, Marciano Seabra de. Política Fiscal e Gênero. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 7-145.

6 6. MARIANO, Fábio. Taxa Rosa, Mestrado Profissional em Comportamento do Consumidor. Escola Superior de Propaganda e Marketing, 2017. p.4. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 maio 21.

Mariana Oda

Mariana Oda

Advogada. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós Graduanda em Direito Tributário pela FGV/SP.

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