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Bolsonarismo, "fake news" e o aparente paradoxo da liberdade de expressão

A conveniência e o oportunismo desenfreados no exercício da liberdade de expressão - uma análise crítica em direito comparado com base na jurisprudência da Suprema Corte Norte americana e brasileira.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Atualizado em 17 de junho de 2021 09:16

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A liberdade de expressão é inegavelmente sede de inúmeras celeumas no campo político e jurídico nacional e internacional. Constantemente nos deparamos com emblemáticas controvérsias que demandam uma análise das circunstâncias do caso concreto para que se realize ponderações dos direitos colidentes.

Apesar de não haver hierarquia entre os direitos fundamentais previstos em nossa constituição, a liberdade de expressão desfruta de certa preferência, uma vez que é pressuposto para que se exerça muitos outros direitos fundamentais, como o exercício da liberdade, autonomia privada e pública, e para que as pessoas possam decidir de maneira esclarecida e bem-informada. Influindo, portanto, no exercício dos direitos políticos, sociais e individuais1.

Em paralelo, recentemente, no cenário político nacional e internacional, nos deparamos com casos extremos onde o exercício da liberdade de expressão parece encontrar, ou ao menos tangenciar, limites em sua manifestação. Casos notórios envolvem figuras extremamente polêmicas como o então ex-presidente dos Estados Unidos e o presidente Jair Bolsonaro.

Trump, ao ter sua conta no Twitter bloqueada por tempo indeterminado, após inflamados discursos que resultaram na invasão do Capitólio, bem como na morte de diversas pessoas, incidiu no âmago das discussões da jurisprudência constitucional norte americana, no que se denomina primeiro modelo de interpretação da 1ª Emenda (SUSTEIN, Cass R. One case at a time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University; 1999, p. 176)2. Isto ocorre ao enquadramos o cenário com um trecho do voto do Justice Oliver W. Holmes no caso Abrams v. United States (250 U.S. 616; 1919):

"É apenas o perigo presente de um mal imediato ou a intenção de provocá-lo que justifica o Congresso em estabelecer um limite para a expressão da opinião quando os direitos privados não estão em causa." [Livre tradução]

Isto é, se fôssemos levar em consideração essa raiz das discussões que permeiam o exercício da liberdade de expressão, encontraríamos razão, com base na doutrina do "perigo claro e iminente", para que manifestações como as do ex-presidente Donald Trump sofressem certos impedimentos. Na medida em que o uso destemperado da livre expressão, com ímpeto inclusive megalômano, desencadeou sucessivos acontecimentos que não só ocasionaram depredação do patrimônio público, mas também a morte de pessoas.

No mesmo sentido, o presidente Jair Bolsonaro, desde antes de sua campanha para presidente, até os tempos atuais, demonstrou uma relação bastante controversa no tocante ao desempenho da liberdade de expressão.

Ora exaltando figuras que antagonizam com princípios básicos do Estado Democrático, ora fazendo uso de disparo em massa de Fake News para consolidar seu eleitorado - estratégia utilizada desde o momento de sua campanha até o presente momento -, ou, até mesmo, conforme episódios mais recentes, atacando deliberadamente a liberdade de imprensa (cerca de 428 vezes em 2020) e elegendo uma retórica negacionista em plena pandemia, o que, por sinal, é objeto de análise na Comissão Parlamentar de Inquérito da covid-19 recentemente instaurada.

Quanto à postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro, em conjunto com inúmeros ataques à imprensa, o Brasil parece entrar em um portal do tempo, revisitando o fundo do poço em termos de garantia à liberdade de imprensa, que seria o momento mencionado pelo voto do Ministro Barroso na ADIn 4.451/DF:

"Mas para lembrar - porque acho emblemático lembrar -, apenas no período da última ditadura, nós tínhamos a censura à imprensa, em que os jornais eram submetidos a censura prévia, com cortes de textos. [...]

[...] Mas eu acho que o pior símbolo desse período foi a proibição da divulgação de que houve, no início dos anos 70, no Brasil, um surto de meningite. Não se podia divulgar porque isso comprometia a imagem do Brasil grande."

Em que pese os principais meios de comunicação não estarem sofrendo uma censura prévia direta, como nos tempos sombrios relembrados pelo Ministro em seu voto, a liberdade de expressão enfrenta um aparente paradoxo ao demandar, atualmente, certa intervenção para que se possa melhor proteger, garantir e efetivar tal liberdade em conjunto com outros direitos fundamentais.

Diante dos acontecimentos recentes, tanto no cenário internacional quanto no nacional, invariavelmente nos questionamos acerca dos limites que a liberdade de expressão parece encontrar. Quer dizer, ao passo que figuras políticas resolvem adotar um discurso integralmente irresponsável, sem qualquer compromisso com a integridade das pessoas (isto sem mencionar em demais princípios como a supremacia do interesse público ou o da moralidade), as consequências podem vir a ser irreversíveis.

Nesse ponto esbarramos também em outra raiz dos debates acerca do exercício da liberdade de expressão, qual seja, o modelo madisoniano de interpretação da 1ª Emenda da constituição norte americana, com origem no caso New York Co. v. Sullivan (376 US 254, 1964). Sobre o caso, explica muito bem o Ministro Gilmar Mendes em seu voto na ADIn 4.4513:

"Decidiu a Suprema Corte, no caso Sullivan, que, para a efetiva garantia das liberdades de expressão e de imprensa, não se poderia exigir dos comunicadores em geral a prova da verdade das informações críticas aos comportamentos de funcionários públicos. O requisito da verdade como condição obrigatória de legitimidade das críticas às condutas públicas seria equiparável à censura, pois praticamente silenciaria quem pretendesse exercer a liberdade de informação. Mesmo nas hipóteses em que se pudesse ter certeza da veracidade das informações, a dúvida poderia persistir sobre a possibilidade de prova dessa verdade perante um Tribunal. Tal sistema suprimiria a vitalidade e a diversidade do debate público e democrático e, dessa forma, não seria compatível com as liberdades de expressão e de informação protegidas pela 1ª Emenda."

Note que, as principais discussões na jurisprudência constitucional norte americana reconhecem e asseguram a necessidade e a importância de haver o livre exercício da liberdade de expressão, não se exigindo, conforme demonstrado no voto do Ministro Gilmar Mendes, que haja a prova da verdade nas críticas aos comportamentos de funcionários públicos.

Nessa mesma lógica, observa o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto na mesma ADIn4:

"Uma última observação que eu queria fazer é que a liberdade de expressão é um pressuposto da democracia; não é garantia de verdade, não é garantia de justiça. Também eu concordo com o Ministro Alexandre de Moraes: Quem se dispõe a vir para o espaço público tem que aceitar uma certa resignação à crítica construtiva, à crítica destrutiva, à crítica bem informada, à crítica desinformada, à crítica de quem tem interesses afetados e até às críticas procedentes que a gente deve reconhecer e procurar se aprimorar. Logo, liberdade de expressão não é garantia de justiça nem de verdade; é garantia de uma liberdade que é pressuposto para o exercício de outras liberdades."

Tais concepções acerca da livre expressão, iniciadas em jurisprudência internacional e paulatinamente aderidas pela Suprema Corte nacional, dão um grande enfoque à proteção em seu exercício, especialmente no contexto de uma relação vertical, qual seja, entre o cidadão e o Estado. O cidadão, no exercício da livre expressão, pode pronunciar pensamentos, críticas e posicionamentos com os fundamentos que achar razoáveis, o que é, inegavelmente, de suma necessidade para se cultivar uma democracia saudável.

Porém, uma nova problemática surge, quando figuras políticas do próprio Estado e o debate público passam a enfrentar um discurso malicioso, em larguíssima escala, baseado exclusivamente em informações falsas ou imprecisas, visando exclusivamente o interesse pessoal e/ou a manutenção do poder, e não o interesse público.

Apesar de nossa Constituição prever soluções posteriores, para casos envolvendo o exercício prejudicial da livre expressão, como o direito de resposta e eventual indenização em situações entre particulares, tal problemática acima parece extrapolar as proteções previstas no ordenamento jurídico. Evidenciando uma questão aparentemente paradoxal que as Cortes terão de enfrentar: se por um lado é necessário reconhecer e assegurar o exercício da livre expressão, o uso irresponsável e vil por parte de agentes estatais pode gerar consequências irreversíveis.

Peguemos por exemplo o caso do presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia. Existem incontestáveis recomendações científicas, em termos de política pública, no que diz respeito ao combate e controle da pandemia do coronavírus. Em contrapartida, o Presidente, desde o princípio da pandemia, refutou os conhecimentos e recomendações científicas: negando e ridicularizando-as, realizando "ensinamentos" no sentido contrário e até mesmo recomendando o uso de medicamentos que não encontram respaldo científico sólido.

A falta de compromisso com a verdade por parte do Presidente da República, no presente cenário, não influi apenas em mal-estar, dissabores ou dissenso ideológico, mas num gesto comissivo que corrobora com a perpetuação da pandemia e, consequentemente, com um espantoso número de mortes.

Nesse primeiro momento, não parece ser possível traçar um número de vidas perdidas em razão da postura adotada pelo Governo Federal, liderado pelo Presidente da República, mas o que nada impede de traçarmos uma inconteste relação de causa e consequência entre tais fatos.

O bolsonarismo refutando fatos e conhecimento científico, disseminando falsas informações de acordo com a conveniência e oportunidade política, parece colocar os entendimentos históricos acerca da liberdade de expressão diante de um aparente paradoxo, ocasionado uma colisão de direitos fundamentais entre o exercício da liberdade de expressão e a própria saúde pública.

Para buscarmos possíveis soluções, vale conferirmos este aparente paradoxo com base nos valiosos ensinamentos de Virgílio Afonso da Silva, em sua brilhantíssima obra recentemente publicada5. Virgílio salienta que, em que pese a literatura constitucional e a jurisprudência considerarem praticamente toda forma de restrição prévia à liberdade de expressão como censura, tal perspectiva não pode servir como critério de decisão. Isto é, conforme esclarece o professor, o momento da restrição não é o que distingue censura de não censura.

Para ilustrar tal explicação, Virgílio traz como o exemplo o caso Ellwanger6 em que foram recolhidos diversos livros publicados que continham amplo conteúdo considerado antissemita pelo STF. Ora, se toda restrição prévia é considerada censura, no caso hipotético, em que os livros considerados antissemitas pelo STF, tivessem sido impressos, mas não publicados, seria necessário aguardar a publicação do mencionado livro para, tão somente nesse momento, se realizasse uma restrição posterior da liberdade de expressão - o que não faz sentido.

Nessa mesma esteira, o professor traz uma interpretação compatível com a sistemática Constitucional e conceitualmente consistente:

"Restrição a liberdade de imprensa que tenha caráter político, ideológico e artístico é censura, não importa se prévia ou posterior, não importa a autoridade que a executa, não importa o procedimento[7]"

Neste ponto, portanto, não significa dizer que não pode haver restrição à expressão de certas ideologias, mas sim que a restrição não pode ter fulcro tão somente em uma discordância ideológica. Tampouco significa dizer que não pode haver restrição prévia, devendo apenas ser executado pela autoridade competente e atentando-se minuciosamente ao devido procedimento.

Logo, se o bolsonarismo prega nítida desinformação, ridiculariza e nega informações científicas que são necessárias para o combate da pandemia, gerando a morte de um número incalculável de pessoas, uma restrição a essa liberdade de expressão, apesar de incidir diretamente na ideologia bolsonarista, não estaria baseada exclusivamente em critérios ideológicos, mas na defesa de outros direitos fundamentais como o direito à vida, dignidade da pessoa humana e a saúde pública.

Sob essa análise, não seria inconstitucional, ou sequer irrazoável, que determinadas medidas fossem adotadas à livre expressão bolsonarista. Aliás, com base desde a doutrina do "perigo claro e iminente" trazida pelo Holmes no caso Abrams v. United States (250 U.S. 616; 1919), aos ensinamentos sobre censura e momento da restrição cunhados pelo professor Virgílio, seriam possíveis e, na verdade, até mesmo necessárias, certas medidas à livre expressão bolsonarista.

Assim sendo, e tendo em vista o profundo e extenso lastro probatório obtido diariamente na CPI da Covid-19, reiterando e agravando a inegável natureza nociva do bolsonarismo, que anula direitos fundamentais - como o próprio direito à vida -, poder-se-ia, ao final da mencionada CPI, adotar medidas que visassem garantir esses direitos. Dessa forma, providências como o cancelamento da conta do Twitter do presidente, como feito com Trump, ou até mesmo o impedimento da veiculação de seus vídeos ou áudios em que se dissemina esse tipo de posicionamento e/ou "Fake News", configurariam uma adequada ponderação envolvendo o direito de liberdade de expressão e o próprio direito à vida.

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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4451/DF. Requerente ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO - ABERT. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Acórdão, pg. 41; 21 de junho de 2018.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4451/DF. Requerente ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO - ABERT. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Acórdão, pg. 101; 21 de junho de 2018.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4451/DF. Requerente ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO - ABERT. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Acórdão, pg. 103; 21 de junho de 2018.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4451/DF. Requerente ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO - ABERT. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Acórdão, pg. 42; 21 de junho de 2018.

5 SILVA; Virgílio Afonso da. DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021.

6 HC 82424 (2003)

7 SILVA; Virgílio Afonso da. DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. Editora da Universidade de São Paulo; São Paulo, 2021. Pg.: 174

João Fernando Ramos Costa

João Fernando Ramos Costa

Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

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