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Upcycling e propriedade intelectual

Os impactos e riscos jurídicos da nova prática fashionista.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Atualizado às 08:18

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O termo upcycling já pode ser considerado um velho conhecido no ramo da moda. No entanto, para o mundo jurídico, a falta de conhecimento sobre este tema gera muitas dúvidas sobre o que é upcycling e quais seriam seus impactos jurídicos.

Em síntese, podemos conceituar upcycling como o reaproveitamento de materiais já utilizados ou destacados, como roupas, aviamentos ou sobras de tecidos, para a fabricação de novas peças.

Importante ressalvar que upcycling não se confunde com reciclagem. Esta última envolve processos químicos e maquinários para dar nova destinação aos materiais descartados, já o upcycling adapta os materiais sem alterar a sua forma original.

Este movimento ganhou força nos últimos anos, especialmente devido à pressão dos consumidores quanto a melhores práticas de sustentabilidade, em especial, quanto à destinação a ser dada ao grande volume de resíduos produzidos pela indústria da moda.

Em sinergia com esse movimento, algumas Maisons criaram suas próprias iniciativas de upcycling. A Miu Mil lançou uma coleção composta por vestidos dos anos 30 e 50, garimpados em lojas vintage, que foram transformados em peças exclusivas. A grife Hermès possui, há anos, a linha Petit H, que utiliza retalhos de pele e couro resultantes da produção de suas bolsas na criação de novas peças.

A Louis Vuitton, por sua vez, lançou a coleção Be Mindful, utilizando tecidos reaproveitados de suas próprias coleções anteriores. Inclusive, no início de 2021, o grupo LVMH, do qual a Louis Vuitton faz parte, criou uma plataforma para revender ao público os tecidos não utilizados pelas marcas do conglomerado - a Nona Source.

Contudo, iniciativas próprias não parecem dar conta da quantidade de resíduo têxtil e materiais destacados pela indústria da moda, o que leva à criação de iniciativas independentes de upcycling.

Quais os impactos e riscos quando as iniciativas de upcycling não partem das próprias marcas?

De acordo com a Revista Elle1, já existem inúmeros tutoriais de customização ou transformação de peças de roupa no YouTube e, nas redes sociais Tik Tok e Instagram, a hashtag #upcycledcloting possui mais de 50 milhões de visualizações.

Esse enorme volume de citações demonstra que, cada vez mais, os consumidores de moda estão interessados em práticas sustentáveis, buscando consumir de forma mais consciente e com menor impacto ambiental.

Como consequência, há um aumento de iniciativas independentes de upcycling, utilizando como matéria-prima as roupas, bolsas, acessórios e aviamentos para a criação de peças que, posteriormente, serão comercializadas por suas marcas próprias.

Exemplo destas práticas de upcycling independente é o de uso de botões e aviamentos de bolsas na criação de joias e bijuterias e customização de bolsas grifadas, como nas imagens abaixo:  

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Como é possível notar, a matéria-prima utilizada traz a aplicação de marcas famosas, o que leva a alguns questionamentos sobre possibilidade de seu uso não autorizado por terceiros.

O primeiro aspecto jurídico a ser observado quando se trata de upcycling é a aplicação - ou não - do princípio da exaustão de direitos como forma de impedir os titulares das marcas de atuarem contra a revenda de seus produtos.

Considerando que o produto que leva a marca original foi modificado e transformado em outro item, distante do original, o entendimento é no sentido de que não há aplicação do princípio da exaustão de direitos, uma vez este que veda somente a revenda do produto em seu aspecto original.  

Superada essa questão, outro aspecto a ser observado refere-se aos direitos dos titulares das marcas apostas nos produtos transformados.

A Lei de Propriedade Intelectual estabelece, em seu artigo 130, III, garante ao titular de uma marca registrada o direito de zelar pela integridade material e reputação de sua marca5.

Assim, considerando que os produtos desenvolvidos através de upcycling independente não possuem qualquer forma de licença ou autorização de uso de marca por seus respectivos titulares, é possível a adoção de medidas contra os terceiros que fabricam e comercializam estes itens, sob as seguintes bases:

a) Violação de marca registrada - ao pegar um botão, aviamento ou tecido estampado com uma marca registrada e transformá-lo em item diverso e vende-lo sob sua própria marca, os direitos de marca registrada dos titulares estão sendo infringidos.6

b) Concorrência desleal - quando um produto com marca registrada é alterado, os consumidores tendem a se confundir ou se equivocar quanto às qualidades e características do produto. Além disso, há exploração parasitária pelo vendedor do produto desenvolvido ao utilizar-se do prestígio da marca original para atrair seus clientes.

c) Enriquecimento sem causa - Como o vendedor dos produtos de marca modificados não investiu na criação do renome e reputação da marca original, explorá-la, vendendo um item modificado com sua própria marca, pode ser entendido como um enriquecimento sem causa e ilícito.

d) Tarnishment - produtos modificados podem diluir a distinção e reputação da marca original associada, fazendo com que seu público consumidor associe a falta de qualidade ou falta de prestígio destes produtos aos produtos originais de marca.

Por fim, no aspecto ambiental, a marca original poderia alegar que, uma vez que esses itens / componentes reutilizados são misturados com metais e outros itens que não originais, eles não seguem os compromissos ambientais e de sustentabilidade da empresa. Assim, a marca não poderia garantir sua qualidade nem sua origem e, ao permitir que disponibilidade desses produtos, estaria implicitamente concordando com o uso de material poluente e não ecologicamente correto.

Como visto acima, a tendência de upcycling de artigos de luxo poderá encontrar alguns obstáculos no Brasil, em especial no que tange à violação de direitos de propriedade intelectual. Por esta razão, as marcas devem estar atentas às práticas do mercado e buscar reprimir o uso de seus materiais de forma desautorizadas.

Alternativamente, as marcas podem criar iniciativas próprias para disponibilizar aos seus clientes itens sustentáveis para consumo, garantindo o uso correto de seus ativos de propriedade intelectual, além da qualidade dos materiais utilizados.

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1 O upcycling está na moda. Acesso em 10/6/2021.
2 Large Rare Repurposed Gold Gucci Rectangle Charm Bracelet.
3 Repurposed Designer Tag Necklace | statement necklace designer jewelry | upcycled luxury button.
4 Handbags. Acesso 10/6/2021.
5 Art. 130. Ao titular da marca ou ao depositante é ainda assegurado o direito de: [...] III - zelar pela sua integridade material ou reputação.
6 Art. 189. Comete crime contra registro de marca quem: I - reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão.

Marcela Lima Costa Pacheco

Marcela Lima Costa Pacheco

Advogada no escritório Garé Advogados.

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