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Não, fazer a mulher infeliz não será crime no Brasil

Há muitas críticas cabíveis à demanda dos movimentos feministas pela tutela penal. O risco dessa tutela incentivar os homens a estabelecerem relações líquidas com as mulheres certamente não é uma delas.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Atualizado às 10:41

Em um texto publicado no Migalhas em 8 de junho, intitulado "Fazer a mulher infeliz será crime no Brasil?", o autor buscou apontar supostos riscos trazidos pelo Projeto de Lei 741/21, que se propõe a tipificar a violência psicológica praticada contra a mulher. Nele, analisa-se o tipo penal previsto no artigo 147-B, que seria incluído ao Código Penal. No texto, o autor vislumbra as interpretações analógicas possíveis a partir desse artigo, ao que formula a hipótese de que, caso transformado em lei, o projeto acabaria por "criminalizar qualquer relacionamento infeliz cuja vítima é mulher". Aqui, buscaremos demonstrar que a conclusão à qual o autor chega é equivocada, pois parte de diversas premissas errôneas, as quais serão apontadas aqui.

Em primeiro lugar, assim dispõe o artigo: 

"Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação". 

A própria Lei Maria da Penha, traz um conceito semelhante, mas mais abrangente, acerca da violência psicológica no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, vejamos: 

"Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;" 

De fato, a expressão "(...) ou qualquer outro meio (...)" autoriza a possibilidade de interpretação analógica do artigo. No entanto, a preocupação do autor com uma possível ampliação arbitrária do âmbito da lei, ao ponto de criminalizar a traição ou o abandono afetivo, dentre outros exemplos elencados em sua publicação, não corresponde à realidade fática.

Isso porque, o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a interpretação extensiva no direito penal para vedá-la "naquelas situações em que se identifica um desvirtuamento da mens legis" (RHC 106.481). Vê-se que o artigo constante na proposta de lei elenca as hipóteses em que o dano emocional causado à mulher configuraria crime, quais sejam: ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização e limitação do direito de ir e vir. Assim, observa-se que não é uma hipótese de tipo penal abstrato, nem de lacuna legislativa, tampouco de violação ao princípio da taxatividade, visto que eventual conduta englobada pela interpretação analógica feita em razão da fórmula genérica prevista no artigo teria como parâmetro a gravidade das condutas específicas elencadas por ele, já que interpretação analógica consiste exatamente na possibilidade de adequar a situação análoga à conduta descrita no tipo penal. Dessa forma, não há violação aos princípios orientadores da aplicação da lei penal.

Aqui, cabe ressaltar que, durante a pandemia, 15% das brasileiras com 16 anos ou mais relataram ter sido vítimas de violência psicológica, física ou sexual perpetrada por parentes ou companheiro/ex-companheiro íntimo1. Isso equivale a 13,4 milhões de mulheres. A contundência desses dados demonstra que as tensões de gênero existem, são a realidade palpável e escancarada.

De fato, há diversos motivos plausíveis pelos quais a busca do movimento feminista pela institucionalização de suas demandas por meio do sistema de justiça criminal pode ser criticada. No entanto, a preocupação com um hipotético risco de as legislações oriundas dessas demandas incentivarem os homens a estabelecerem relações líquidas com as mulheres certamente não é um deles.

As leis voltadas à proteção das mulheres contra a violência doméstica e familiar levam em consideração o fato de que todos os dias mulheres morrem por serem mulheres. Apesar de o autor afirmar que a criação do tipo penal proposto violaria a igualdade de gênero, o que se busca com leis dessa natureza é justamente o alcance da igualdade material entre homens e mulheres por meio da equidade, preceito segundo o qual deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade.

Além disso, realmente à lei não é atribuída a função de criar respeito, amor e consideração, mas é, sim, a de evitar que mulheres sejam vítimas de condutas que denotam não a mera ausência desses sentimentos, mas a presença de outros, nutridos por homens em relação a mulheres em decorrência da construção patriarcal da sociedade contemporânea, tais como os sentimentos de posse e de superioridade, e o desprezo em razão do gênero.

A bem da verdade, na vida real, frustrações com relacionamentos de quaisquer natureza fazem parte da existência humana. No mundo ideal, o dano emocional produzido em muitos relacionamentos afetivos entre homens e mulheres limitar-se-ia a essa frustração. Entretanto, o que se vê na verdade é que os danos emocionais causados às mulheres tratam de minar as suas relações que ultrapassarem o âmbito conjugal, a sua autoestima e a sua intimidade, de modo a mantê-las aprisionadas em relações conjugais abusivas e violentas.

Ao fim e ao cabo, relacionamentos já são difíceis e arriscados para mulheres. Apesar de acreditar que o direito penal não é instrumento adequado para encerrar opressões de raça ou gênero, pois ele é, em si mesmo, uma máquina de produção e reprodução dessas mesmas opressões, além da opressão de classe, tratar a busca pelo direito penal por parte dos movimentos de mulheres como algo absurdo por supostamente basear-se em ressentimento, ou, ainda, em um ódio aos homens, é ignorar o fato de que só recentemente os direitos humanos das mulheres passaram a ser objeto da proteção estatal adequada. Sobre isso, o professor Alessandro Baratta, criminólogo crítico, ao tratar da expansão do direito penal, assevera que "a intenção crítica e emancipatória não pode, portanto, compensar a falta de observância do paradigma de gênero"2.

Aliás, enquanto há quem preocupe-se em defender homens de moinhos de vento, como é o caso de uma suposta possibilidade de criminalização da traição praticada por um homem, o mundo real bate à porta para lembrar-nos que o que ocorria até esse ano era a normalização da tese da legítima defesa da honra na defesa criminal de acusados de feminicídio no julgamento perante o Tribunal do Júri.

Ademais, mesmo que a solução para o problema da violência doméstica não esteja no Direito Penal - e provavelmente não está -, certamente também não está na condescendência e na normalização de práticas que, embora para alguns possam parecer inerentes aos relacionamentos afetivos, são, sim violências graves. Tratar a tutela penal como um paternalismo do Estado para com as mulheres é ignorar que feminicídios são crimes evitáveis, uma vez que são precedidos de condutas que, via de regra, evoluem das mais sutis, como é o caso das agressões psicológicas, para as mais explícitas, como as agressões físicas, até culminarem na sua forma extrema.

Quanto a isso, apesar de o autor afirmar que as políticas de gênero feitas no Brasil não são dotadas de nenhum respaldo científico, na verdade, há uma ampla produção científica embasando o trabalho legislativo no âmbito do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Com efeito, a própria justificativa da proposição legislativa trazida ao debate fundamentou-se em uma pesquisa realizada pelo Senado Federal, que indicou que "a violência psicológica, por não apresentar marcas físicas visíveis, é uma das formas mais frequentes de agressão à mulher, representando o segundo maior tipo de violência doméstica sofrida"3.

O processo civilizatório permitiu que hoje mulheres tenham a ciência de que não precisam permanecer em relações abusivas, permeadas por comportamentos controladores e violentos perpetrados por seus cônjuges ou companheiros. Entretanto, as estatísticas indicam a existência de uma patente assimetria nas relações de poder entre homens e mulheres, de modo que há um longo caminho a ser percorrido no combate à violência contra a mulher.

A construção de uma sociedade livre da violência de gênero exige a identificação das causas dessa violência, dos percursos que os relacionamentos percorrem até culminarem em violências extremas, bem como a nomeação dos grupos que violentam e dos que são violentados. Fazer essas identificações e nomear as sutilezas do comportamento abusivo não significa fomentar uma suposta guerra dos sexos, mas sim possibilitar a efetiva mitigação dessas opressões - seja por meio do controle social informal, seja pela institucionalização.

Assim, as opressões estruturais não se perpetuam no vácuo. Elas valem-se da normalização de condutas sedimentadas no consciente coletivo como naturais, desprovidas de lesividade. Reduzir as políticas criminais elaboradas pelos movimentos feministas a uma vitimização, valendo-se de argumentos que buscam associá-las a um aparente exagero ou histeria, é deslegitimar os alcances obtidos no combate à desigualdade de gênero, inclusive no que diz respeito a políticas públicas de prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher.

Então, respondendo à pergunta formulada pelo autor, não, não será crime fazer uma mulher infeliz. A tutela estatal dos bens jurídicos relevantes é inafastável, e as violências psicológicas perpetradas por homens contra mulheres resulta justamente da omissão do Estado para resguardar a integridade psicológica dessas mulheres.

Em conclusão, ao longo da história, diversas práticas que antes eram tidas como normais se tornaram completamente inaceitáveis com o decurso do tempo. Essas mudanças, no entanto, não aconteceram sem que houvesse agentes atuando em prol delas. E, assim como há quem age para mudar a história, há quem reage à mudança. Em algum momento houve quem questionasse o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, até mesmo sob a insinuação de que essas pessoas atuavam pautadas em ressentimentos, sexismo e misandria. Felizmente, houve quem reivindicasse o direito das mulheres apesar de, à época, isso contrariar o senso comum. Nesse sentido, hoje, ampliar a abrangência das formas de proteção à saúde mental das mulheres vítimas de violência psicológica parece exagero, e até utopia, mas, como bem disse Eduardo Galeano, "a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."

___________

1 BUENO, Samira e REINACH, Sofia. A cada minuto, 25 brasileiras sofrem violência doméstica.  Revista Piauí, São Paulo, 12 de março de 2021. Seção Questões de gênero. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 09 jun 2021

2 BARATTA, Alessandro. O paradigma de gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de. (Org). Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editores, 2007.

BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei 741/2021. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, e a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, para dispor sobre medidas de combate à violência contra a mulher, e cria o Programa de Cooperação "Sinal Vermelho Contra a Violência Doméstica  Disponível em: clique aqui . Acesso em: 09 jun 2021. Texto Original.

 
Ana Luísa Costa de Oliveira Paranaguá e Lago

Ana Luísa Costa de Oliveira Paranaguá e Lago

Advogada. Pós-graduanda lato sensu em Direito Penal e Processual Prático Contemporâneo na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).

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