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A concisão e os tempos modernos

Já se vai longe o tempo em que os magistrados podiam despender horas a fio em determinada causa.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Atualizado às 10:26

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

É bem conhecida a história, fato real ou não, de um suposto conhecido do famoso escritor Monteiro Lobato, que, tencionando vender um sítio, pede ao letrado que elabore um texto para publicar nos classificados da região. Segundo a história, ficou tão lindo o texto, que descrevia em minucias o canto dos pássaros, a beleza do regato que ali corria, os encantos da natureza ao redor e a romântica casinha ali existente, que o proprietário - dando-se conta do verdadeiro tesouro que possuía - desistiu da venda, passando a dar, ele mesmo, mais valor ao imóvel, antes legado ao esquecimento.

No Brasil, desde que o Direito foi sistematizado e os primeiros profissionais passaram a formar-se nas recém criadas Faculdades de Direito do país, verdadeiras pérolas podiam ser encontradas; e é, para os amantes das letras, verdadeiro deleite, consultar antigos autos de processo, e poder apreciar o esmero e cuidado com que os advogados de outrora sustentavam rebuscadamente suas teses, e o belo linguajar formal assumido indistintamente por petições, pareceres e mesmo decisões e sentenças.

O tempo foi mudando. O progresso trouxe inovação. Com a inovação, tecnologia. E com isso, a vida moderna passou a imprimir novo ritmo nas relações humanas, o que, por certo, não poderia deixar de afetar o Direito, Ciência Social por excelência, mesmo sendo reconhecidamente moroso, no que concerne a incorporar em seus mecanismos, as mudanças que, no mundo atual, ocorrem tão rapidamente em nossa sociedade.

Já se vai longe o tempo em que os magistrados podiam despender horas a fio em determinada causa, analisando profundamente suas mínimas nuances, o que nos obrigava (aos advogados mais antigos, ao menos) a nos esforçar por esgotar pormenorizadamente cada aspecto de nossas causas. Isso hoje já não mais há.

É notório e longevo o acúmulo de feitos amontoando-se nas prateleiras dos fóruns e tribunais país a fora, em todas as instâncias. E isso não por culpa de nossos magistrados ou da má fama que pudesse ser (muitas vezes injustamente) atribuída ao funcionalismo público de uma forma geral. Simplesmente havia processos demais, e seu curso nem sempre acompanhou a agilidade que a vida moderna apresenta em outros setores da sociedade.

O fato é que a vida quotidiana moderna nos trouxe a uma realidade absolutamente distinta da de outrora, e a agilidade com que as informações circulam entre as pessoas é absolutamente inimaginável ao mais visionário dos profissionais do início do século XX.

Num mundo em que um celular mediano possui uma capacidade de processamento milhares de vezes maior do que o computador que levou o homem à Lua em 1969, onde quaisquer informações estão acessíveis a poucos "toques de tela" a qualquer um com habilidade suficiente de ler e escrever, era natural que essa fluidez, em algum momento, afetasse as relações jurídicas.

Como consequência, toda a licença poética ou estética que pudesse adornar o texto numa petição, por exemplo, antes tão valorizados em sinal de distinção para os profissionais de alto gabarito, são hoje absolutamente dispensáveis, por tornar morosa e complexa a leitura e entendimento do caso. A modernidade substituiu, em nossa profissão, a beleza do texto, pela praticidade da escrita técnica, obrigando-nos a exercer em seu grau máximo nosso poder de concisão.

E isso não apenas no tocante à escrita do texto, mas igualmente quanto a seu conteúdo, na abordagem dos temas e no desenvolvimento de nossas argumentações. Não adianta mais descrever em minúcias, se não de forma mais abrangente e prática, os fatos.

Nada mais de rebuscamento em textos longos e de escrita refinada. E mais ainda: ao discorrer sobre um tema, se você ainda é daqueles Advogados que confundem "ser completo em suas alegações" com o velho "esgotar um tema até a exaustão", um alerta: melhor rever seus conceitos.

Obviamente que há situações em que vários pontos devam ser abordados, e é importante não os deixar de fora, por serem imprescindíveis ao conhecimento da demanda.

Porém há minúcias e pormenores que podem muito bem ser dispensados, em nome da praticidade que impõem, não apenas a pletora dos trabalhos de nosso surrado Poder Judiciário, que vem minando o esforço hercúleo de nossos Juízes e Desembargadores em manter o ritmo em sua faina diária, mas a própria maneira de pensar das pessoas desse nosso Tempo.

Não podemos nos esquecer que a petição nada mais é do que um requerimento. E também uma forma de comunicar direitos e postulações que não são os nossos, mas de nossos Clientes, onde o destinatário - o Julgador - deve não apenas ser suprido do necessário para seu entendimento, como ser convencido, de forma ágil, de que nossa alegação é a correta, para sairmos vencedores de nossas demandas, entregando ao Cliente, aquilo que ele espera, da melhor forma possível.

E se esse destinatário hoje demanda uma escrita mais ágil e prática, é nosso dever funcional, inclusive frente ao juramento que prestamos ao deixarmos os bancos de nossas formações, nos adaptar aos Tempos, e deixarmos o ímpeto do rebuscamento e o exaurimento temático para nossas teses e trabalhos acadêmicos, nem que seja para nosso próprio deleite, em função dessa tão emblemática profissão, que tanto amamos.

Ricardo Colasuonno Manso

Ricardo Colasuonno Manso

Advogado, atualmente residente na cidade de Sorocaba/SP, ex-membro do corpo de funcionários do TJ/SP, com mais de 26 anos de atuação na área jurídica. Atualmente é Content Writer na empresa Facilita Jurídico e colabora em análises e revisões de casos.

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