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Desigualdade social e estabilidade política: grandezas inversamente proporcionais?

Comparativo com as recentes pesquisas sobre o aumento da desigualdade e da fome no Brasil.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Atualizado às 14:08

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Não são raras as vezes em que problemas sociais de caráter estrutural são tomados como onipresentes ao longo da história, levando a se pensar que grandes problemas vivenciados nos dias atuais sempre foram considerados como um problema em outros momentos históricos.

Esse raciocínio se explica na medida em que tais questões estruturais geralmente têm uma origem associada à própria formação da sociedade na qual estão inseridas. É o caso das desigualdades sociais, por exemplo. Elas existem desde as primeiras formas de organização social (em graus e formas distintas) e permanecem, na maior parte das sociedades, até hoje.

Entretanto, o fato de tais problemas serem observados e vivenciados na prática não quer dizer que eles são refletidos, de forma congruente, no plano teórico/intelectual.  Existe um episódio na história do Brasil que exemplifica muito bem esse impasse entre a existência do problema na realidade e a não concepção do mesmo como um problema a ser resolvido. É o caso da escolha pela mão-de-obra europeia, através do processo de imigração, ao invés da incorporação da mão-de-obra ociosa interna do Brasil, relatado por Celso Furtado na sua obra "Formação Econômica do Brasil"1.

Em resumo, Furtado conta que, pela metade do século XIX, a força de trabalho da economia brasileira era praticamente constituída por uma massa de escravos que girava em torno de 2 milhões de pessoas. Por outro lado, o setor de subsistência, que se concentrava nas regiões norte e nordeste, poderia ser visto como uma oferta potencial interna de mão-de-obra.

A absorção dessa população rudimentar, advinda da subsitência, como força de trabalho na economia cafeeira poderia ter atendido tanto à demanda de mão-de-obra desta economia, como poderia ter contribuído fortemente para a redução das desigualdades regionais existentes. Acontece que essas desigualdades não eram vistas, na época, como um problema a ser combatido por meio de políticas governamentais, razão pela qual "não evoluiu no país a ideia de um amplo recrutamento interno" da mão-de-obra livre do setor de subsistência, dando-se preferência à imigração de trabalhadores europeus, que foi tida como a solução mais eficiente em termos econômicos.

Com efeito, a concepção das desigualdades sociais como um problema a ser combatido é muito mais recente do que se imagina, ganhando corpo no mundo acadêmico e intelectual apenas por volta do final do século XIX, muito graças ao surgimento de movimentos questionadores da então ordem social estabelecida.

Desde o surgimento dessa concepção até o presente momento, houve diversas reviravoltas no debate em torno do combate às desigualdades sociais. Porém, fato é que após a publicação da obra de Thomas Piketty em 2014, intitulada "O capital no século XXI"2, o problema da desigualdade retornou ao centro do debate político e intelectual.

Essa obra traça uma trajetória do tema a partir de uma perspectiva histórica baseada em três eventos: as grandes guerras, o estado de bem-estar social e o surgimento do neoliberalismo. O primeiro momento é marcado pela ascensão da concentração de renda durante o período de 1914-1945; o segundo é marcado pelos "anos dourados" entre 1945-1975, nos quais se observou uma forte queda das desigualdades graças à criação de um "welfare-state"; o último momento é marcado pelo surgimento e implementação de ideologias neoliberais, pautadas na ideia de que existiria um trade off entre crescimento econômico e desigualdade, que acabaram por acentuar, na prática, a concentração de renda, movimento teve início no final dos anos 70 e tem efeitos até os dias atuais.

Apesar de coerente para os países anglófanos e para os Estados Unidos, essa trajetória não traduz de forma fidedigna o percurso da desigualdade no Brasil, o que torna importante a ressalva de se importar livremente teorias estrangeiras para a realidade brasileira. Tais teorias precisam ser devidamente adaptadas para poderem ser úteis à compreensão do problema de acordo com as necessidades e particularidades vivenciadas a nível nacional.

Esse exercício de adaptação foi feito por Pedro Souza,  em seu livro "Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil 1926-2013", através do qual ele conclui que:

A desigualdade (...) teve no Brasil uma trajetória peculiar se comparada às experiências europeia e americana, irredutível a narrativas simples. O que salta aos olhos é a combinação de estabilidade e mudança observada entre 1926 e 2013. Por um lado, não houve nenhuma tendência unívoca de longo prazo: a fração recebida pelo centésimo mais rico oscilou entre 20% e 25% durante a maior parte do tempo. (...) Mesmo que, no longo prazo, seu efeito líquido tenha sido pequeno, as variações foram por vezes abruptas e significativas, coincidindo, grosso modo, com grandes ciclos políticos do país3.

Nesse contexto, o autor identifica que os dois aumentos bruscos na desigualdade social do país ocorreram durante o Estado Novo e, sobretudo, o golpe militar de 1964. Não obstante, Pedro faz questão de frisar que a "influência da conjuntura política não pode ser reduzida a uma oposição simples entre mais desigualdade em ditaduras e menos desigualdade em períodos democráticos"4, chamando atenção para importância de fatores como o cenário político e econômico internacional nessa equação.

Dessa forma, seria apenas parcialmente correto afirmar que, no Brasil, desigualdade e estabilidade política são grandezas inversamente proporcionais, visto que à essa equação teriam que ser acrescentados outros fatores, como a conjuntura internacional.  

Trazendo essas conclusões para o atual cenário político do Brasil e para a conjuntura internacional, as previsões são preocupantes. A um, porque o atual Governo tem sido marcado por uma lista inenarrável de eventos que levantam preocupações sobre a estabilidade política do país A dois, porque, para além do panorama político, tem-se instaurada uma verdadeira crise econômica e sanitária em razão da COVID-19 que, associada ao primeiro fator, parece criar o ambiente perfeito para o aumento das desigualdades sociais no Brasil.

E os indícios desse aumento são cada vez mais gritantes. Segundo dados recentes do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mais da metade da população está em situação de insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave. O total passou de 36,7% dos domicílios, em 2018, para 55,2% no final de 20205.

Se tais números confirmam a tendência apontada por Pedro Souza, o combate às desigualdades sociais no Brasil ganha uma feição de urgência que precisará de medidas inéditas para ser ultrapassada, visto que, até o presente momento, ainda não se tem histórico de outro país que tenha conseguido reduzir os níveis de concentração de renda como o do Brasil para níveis mais brandos, como os europeus, sem rupturas ou turbulências políticas.

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1 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Companhia das Letras, 2007.
2 PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Intrínseca, 2014.
3 SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de. A desigualdade vista do topo : a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. 1ª ed. Hucitec Editora: São Paulo, 2018.
4 SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de, ob. cit.
5 Disponível em: aqui. Acesso em 31/5/2021

Marina Souza Leão Araujo

Marina Souza Leão Araujo

Estudante de Direito na Universidade Federal de Pernambuco e Diretora de Comunicação da rede Women in Antitrust (WIA).

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