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O art. 75, VIII, da nova lei de licitações e a Constituição Federal

A inconstitucionalidade da vedação de recontratação de empresa já contratada com base em situação emergencial prevista na nova Lei de Licitações.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Atualizado às 17:10

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente artigo presta-se à análise de dispositivo que aqueceu o debate entre os estudiosos do Direito Administrativo, em especial das licitações: o artigo 75, VIII, da nova lei 14.133/2021 - a nova lei de licitações.

A lei 14.133, publicada em 1º de abril de 2021, revogou a lei 8.666/93, estabelecendo-se como novo diploma legal de normas gerais de licitações e contratos administrativos, tal como dispôs o art. 1931.

O legislador estabeleceu um período de 2 (dois) anos de vacatio legis, a partir da data de publicação do novo diploma legal, com relação às leis 8.666/93, 10.520/2002 e 14.642/2011 - art. 193, inc. II.

Com relação aos artigos 89 a 108 da antiga lei de licitações, os quais dispunham sobre os crimes, a revogação foi imediata - art. 193, inc. I/art. 1942.

Superado os esclarecimentos iniciais, para o que objetiva o presente artigo, o capítulo VIII do novel diploma legal, regulamenta a contratação direta por parte da Administração Pública, relevando-se que a seção III deste mesmo capítulo, refere-se às hipóteses de dispensa de licitação.

Sendo assim, o art. 75, da lei 14.133/21, elenca as hipóteses em que a licitação é dispensável, especificando o inc. VIII acerca das situações de dispensa em casos de emergência ou calamidade pública, veja-se:

Art. 75. É dispensável a licitação:

VIII - nos casos de emergência ou calamidade pública, com caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou calamidade, vedadas as prorrogações dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso; (grifamos)

Como se vê, ao final do dispositivo transcrito, o legislador vedou a recontratação de empresa que já tenha sido contratada com base na dispensa de licitação em virtude de emergência ou calamidade pública.

Em outras palavras, caso a empresa tenha sido contratada em situação emergencial da Administração, ela estará proibida de ser contratada em nova situação de emergência.

Certo é que tal dispositivo pretendeu coibir as contratações emergenciais sucessivas - inovação trazida pela lei 14.133/2021 -, chamando a atenção da Administração Pública ao dever de planejamento.

Aliás, esta vedação já era prevista na lei anterior, em seu art. 24, inc. IV, no qual expressamente impunha prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias para contratação emergencial:

Art. 24.  É dispensável a licitação: (...)

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

Contudo, tal disposição contida na nova lei de licitações - lei 14.133/2021 -, apesar de impor à Administração Pública e seus gestores cumprirem com dever de gestão e planejamento eficientes, resulta em punição antecipada, sem qualquer precedente, as empresas que prestam ou fornecem bens ao Estado em regime de contratação emergencial.

Essa vedação não se mostra razoável, principalmente, constitucional. A vedação de recontratação de empresa anteriormente contratada em regime emergencial origina discriminação indevida, sobretudo, no tocante a necessidade da busca do melhor preço para aquisição de serviços ou bens pela Administração Púbica.

Não se desconhece a obrigação da gestão adequada e eficiente pela Administração Pública, estabelecendo-se como regra o processo de licitação, de outro lado, efetiva exceção à contratação por procedimento emergencial.

O legislador introduziu tal vedação - recontratação de empresa em situação de emergência - como forma de obrigar a Administração Pública a garantir o planejamento das contratações via procedimento de licitação.

Contudo, a referida vedação não pode obstaculizar a recontratação de empresa por novo procedimento emergencial, por exemplo, quando a referida empresa apresentar a melhor proposta, melhor valor.

É preciso chamar atenção para fato interna corporis, ou seja, a empresa não possui qualquer ingerência sobre a situação de emergência vertida em desfavor da Administração Pública e, mesmo assim, não poderá ser recontratada, repita-se, mesmo que apresente o melhor valor, sendo mais vantajosa a sua recontratação para a Administração Pública em detrimento de contração de nova empresa.

Ressalta-se que tal vedação, por muitas vezes, poderá aprofundar os prejuízos para Administração Pública, já que com a obrigatoriedade de contratação de uma nova empresa em regime emergencial, ocasionará óbice a continuidade do fornecimento de bens e serviços essenciais, inclusive, por preço maior.

Nem se diga que o legislador, ainda no art. 75, § 6º, destaca a necessária averiguação de responsabilidade do agente público que deu causa à situação emergencial.

Vê-se que é inequívoco o fato de ser a própria Administração Pública, por de seus agentes, que dão causa à situação emergencial, inexistindo relação de causalidade entre aquele fato e as empresas. A situação de emergência configura fato a priori, ou seja, anterior à contratação da empresa por procedimento emergencial.

A mens legis é imperiosa na medida em que impõe sempre ao Administrador Público o dever de proceder com a aquisição de serviços e bens no plano da proposta vantajosa, menos onerosa, sempre buscando os valores adequados e eficientes aos fins propostos, circunstâncias que não se alcançam pela contração emergencial - daí o porquê da sua excepcionalidade.

Com isso, a vedação à recontratação de empresas já contratadas com base na emergência ou calamidade pública, pressupõe incorreto procedimento, por inercia da própria administração pública, permitindo-se assim, mesmo em procedimento de contração emergencial, flagrante desrespeito ao art. 37 da Constituição Federal.

O art. 37 da Carta Magna, paradigma constitucional para declaração de inconstitucionalidade, elenca os princípios básicos norteadores da Administração Pública, sendo eles: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Em relação a tais princípios, destacam-se os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência.

No que tange ao princípio da impessoalidade, tem-se basicamente a imposição na igualdade de tratamento a todos os indivíduos, não permitindo à Administração Pública atuar com vistas a beneficiar ou prejudicar determinadas pessoas.

No caso em destaque, não cabe à lei restringir o que a norma constitucional não o fez. A proibição de recontratação de empresa por intermédio de procedimento emergencial, imposta indevidamente pelo legislador, não se conforma com o art. 37 da Constituição Federal, pois a empresa contratada poderá apresentar proposta mais vantajosa, nos termos impostos pela norma constitucional.

Neste caminho, o princípio da impessoalidade confunde-se com o princípio da finalidade já que se impõe à Administração agir de acordo com o interesse público, coibindo qualquer atuação arbitrária por parte do agente público, que deve praticar atos voltando apenas para o seu fim legal, in casu, a contratação emergencial para que seja mantida a continuidade do serviço público na plataforma sempre mais vantajosa que pode culminar com a recontratação de determinada empresa.

Assim, o dispositivo analisado neste artigo viola frontalmente o princípio da impessoalidade e eficiência insculpidos na Carta Magna, já que contém discriminação indevidamente dispensada a particulares, na medida em que proíbe a recontratação de empresa anteriormente contratada com base na situação emergencial, frisa-se, originária por ato interna corporis da Administração Pública.

E mais, veda-se a possibilidade de recontratar empresa com proposta mais vantajosa para a Administração pública.

Com relação ao princípio da moralidade administrativa, merece destaque que tal preceito incumbe ao administrador atuar de acordo com a ética, boa-fé, razoabilidade, justiça, sempre com vistas ao interesse público.

Ocorre que na hipótese em tela, caso o agente público atue sob os ditames da vedação contida no inciso VIII, do art. 75, da lei 14.133/21, estará violando o princípio da moralidade.

Isto porque ao desclassificar uma empresa que, ainda que ofereça o melhor custo e melhor serviço à Administração, conforme a supremacia do interesse público, o agente violara preceitos básicos ligados à moralidade, sobretudo, eficiência.

Não bastasse isso, outro paradigma constitucional merece destaque, qual seja: o inciso XXI do mesmo art. 37, da Constituição Federal, que assegura a igualdade de condições a todos os concorrentes do processo de licitação pública.

A igualdade de condições entre os concorrentes também é um dos pilares da Administração Pública, cujo objetivo é afastar a possibilidade de qualquer preferência para a escolha de fornecedores de bens ou serviços para a Administração, sobretudo quando ausente fundamentos que justifiquem tal direcionamento.

Desta forma, a nova lei geral de licitações 14.133/2021, ao vedar a recontratação de empresa já contratada com base em situação emergencial, sem justificativa razoável, diverge das diretrizes constitucionais previstas no art. 37 da Constituição Federal.

A lei em comento, além de fixar tal critério, viola frontalmente princípios básicos constitucionais que norteiam a atuação dos agentes públicos, conforme exposto no presente tópico.

Não se pode olvidar da extrema importância dos princípios violados em razão da vedação contida no inciso VIII do art. 75, da lei 14.133/21 - pilares da Administração Pública, merecendo tal dispositivo, portanto, especial atenção do guardião da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal.

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1 Art. 193. Revogam-se:
I - os arts. 89 a 108 da lei 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta lei;
II - a lei 8.666, de 21 de junho de 1993, a lei 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A  da lei 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta lei.
2 Art. 194. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Fernanda de Almeida Toledo

Fernanda de Almeida Toledo

Advogada no escritório Advocacia Toledo. Especialista em Direito Administrativo.

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