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Reforma administrativa: a estratégia de desconstrução da segurança pública

A PEC/32 demoniza os servidores para, posteriormente, anunciar que a "reforma" resolveu o problema. Entretanto, não alcança o Judiciário e o Legislativo, esvaziando totalmente a narrativa de combate aos privilégios.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Atualizado às 16:52

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Elaborada pela equipe econômica do Poder Executivo Federal sob assinatura do ministro da Economia Paulo Guedes, a proposta de EC 32 de 2020, também chamada de "PEC da Reforma Administrativa", foi encaminhada em 3 de setembro de 2020 pelo presidente da República Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional. Tramitando inicialmente na Câmara dos Deputados e, a despeito de ter recebido diversas críticas de parlamentares, especialistas e estudiosos do tema, a proposição foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e segue seu rito especial conforme regimento interno da casa1.

A proposta pretende alterar disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa, sob o pretexto de conferir maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação do Estado. No entanto, quando e se aprovada, é provável que provoque, na verdade, um efeito de desconstrução da Administração e todo o seu corpo de servidores, eleitos como alvos das medidas2. Desta forma, dentre os maiores prejudicados pelas alterações destrutivas, estão os profissionais da Segurança Pública e, por arrastamento, o próprio funcionamento do serviço público essencial por eles prestado.

Marcada pelo recorrente estratagema do "bode na sala", que nas palavras de Ivo Reis é a criação de um problema para a apresentação da sua solução3, a manobra lançada na PEC/32 diverge da versada na referida parábola por dois motivos, sobretudo no que tange aos seus efeitos:  1) a complexidade estrutural do serviço público brasileiro - por óbvio - não é a mesma de uma pequena residência, isto é, os resultados indesejados dos dispositivos anacrônicos da proposta são perenes e não podem ser facilmente debelados como quem tange um bode do cômodo de uma casa; 2) os danos irreversíveis ao único patrimônio verdadeiramente do povo (os serviços públicos essenciais) são exponencialmente maiores do que os prejuízos causados a quem convive transitoriamente com um animal em sua sala.

Assim, como na alegoria do bode, o cerne da estratégia do Governo Federal é fomentar uma narrativa de "ameaça" ao país, demonizando os servidores públicos e os apontando como "maior e única" causa de ineficiência do Estado (colocação do bode na sala), e, em seguida, anunciar que resolveu esse "enorme problema" por meio da reforma  administrativa (retirada do bode); artifício em total descompasso com as reais necessidades dos cidadãos brasileiros, que carecem de seriedade no planejamento das políticas públicas e de  continuidade na prestação dos serviços públicos básicos realizada por seus servidores.      

Vale acrescentar que o Executivo Federal, durante toda sua gestão, vem seguido um só padrão de atuação, ou seja, conduzido pelo Ministério da Economia, tem lançado e defendido reiterados diplomas normativos extremamente danosas ao funcionalismo público. Para demonstrar isso, optamos por descrever brevemente aqui as seguintes inserções no ordenamento jurídico: a PEC da reforma da previdência 06/2019 (EC 103, de 12 de novembro de 2019) abriu caminho em sede constitucional para que os Governos Estaduais aumentassem as alíquotas de contribuição, idade mínima de aposentaria e ainda acabassem com o direito à paridade; a LC 173, de 27 de maio de 2020, dentre outras vedações, proibiu, até 31 de dezembro de 2021, qualquer reajuste salarial, vedando ainda a contagem do tempo em que vigorar a calamidade como de período aquisitivo para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e todos os direitos remuneratórios equivalentes; já a "PEC emergencial" 186/2019 (EC 109, de 15 de março de 2021)4, uma das mais prejudiciais aos profissionais da segurança, implementou hipóteses constitucionais com sérios empecilhos (vedações) às readequações salariais e até mesmo às reestruturações de carreiras dos integrantes das corporações policiais.

Curiosamente, as alterações normativas acima referidas, assim como as veiculadas pela PEC/32, de forma desproporcional, pouco alcançam o Judiciário e o Legislativo, mas recaem sobremaneira em desfavor dos servidores do Poder Executivo, e mais ainda sobre os profissionais da Segurança Pública, aumentando o desequilíbrio das medidas e a temeridade de seus efeitos. Tais alterações, decerto, retiram ou deveriam retirar de cena qualquer argumento de combate a privilégios nas carreiras públicas, conforme tenta induzir o Governo e seus apoiadores.   

Esse modelo de atuação do Executivo Federal, ao que tudo indica tão somente enviesado por uma concepção fiscal e da iniciativa privada, também desconsidera recortes metodológicos imprescindíveis ao bom planejamento das políticas públicas de Estado, dentre os quais, as particularidades dos servidores dos três níveis da federação (União, Estados e Municípios) e dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Nesse mesmo prisma Lopes e Cardoso Jr. alertam que é importante diferenciar as características do funcionalismo municipal, estadual e federal, bem como diferenciar as suas características em cada um dos três poderes; a complexidade do tema desaconselha tratamentos uniformes, generalizantes ou aparentemente rápidos e fáceis sobre o assunto5.

Visto isso, e a fim de especificar o objeto do presente estudo, nos debruçaremos sobre as alterações e efeitos destrutivos da PEC/32, especialmente no que diz respeito aos servidores públicos e aos serviços essenciais de Segurança Pública, estabelecendo como paradigmas os pontos mais desarrazoados do texto original. Prosseguiremos com argumentos sólidos acerca da intempestividade e vícios da proposta, apresentaremos uma síntese e, em conclusão, chamaremos os parlamentares à responsabilidade.

 
André Santos Pereira

André Santos Pereira

Delegado da Polícia Civil-SP, Diretor de Relações Institucionais da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo-ADPESP e Diretor de Aposentados da Associação Nacional dos Delegados-ADPJ.

Gustavo Mesquita Galvão Bueno

Gustavo Mesquita Galvão Bueno

Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo - ADPESP e Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária - ADPJ.

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