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Hóspedes indesejados

Crianças afogadas, muros erguidos apressadamente, exércitos nas fronteiras. Uma análise sobre os principais problemas da atual Convenção de Refugiados e sobre uma devida reformulação nos parâmetros atuais.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Atualizado às 18:00

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O fluxo de refugiados, mesmo que só possa ser propriamente aplicado após a formação dos Estados nacionais, é um tema notável desde a antiguidade. Em torno de 29 A.C., o escritor latino Virgílio escreveu a "Eneida", poema épico retratando um viajante errante que viria a ser o "ancestral de todos os romanos", Eneias. O forasteiro, escapando da violenta Guerra de Tróia, atravessou as dificuldades do Mar Mediterrâneo para alcançar melhores condições de vida na região da península itálica. Porém, mesmo que bem recebido pelo rei local, os cidadãos da região voltaram-se contra o desconhecido em uma sangrenta guerra, envolvendo desconfiança e desacato contra o desbravador.

Fazendo um contraponto com acontecimentos mais recentes, em maio de 2021 a atenção midiática voltou-se para um abraço entre uma voluntária e um refugiado senegalês em Ceuta, cidade autônoma espanhola no Norte da África. O refugiado desabava em lágrimas após chegar ao território através do Mar Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, autoridades espanholas repreendiam o restante dos refugiados para levá-los de volta ao Marrocos, país que faz fronteira com a remanescência espanhola no continente africano.

Duas diferentes histórias mas que confirmam a perpetuação de um ideal hostil frente aos refugiados por alguns indivíduos ao longo da história humana. A discussão  se intensifica ainda mais tendo em vista os efeitos colaterais da atual pandemia do COVID-19. O alastramento da doença está afetando e irá deteriorar ainda mais a subsistência e nutrição de diversos indivíduos em todo o globo. Por isso, novas crises migratórias trazem preocupações e, a partir disso, incitam discussões dos atuais problemas sobre a temática. Nessa linha, novos desenhos institucionais devem ser estabelecidos de modo a redirecionar as atuais complicações fronteiriças.

A atual conjuntura da proteção internacional ao refugiado é amparada pelo Estatuto dos Refugiados de 1951 e está nas mãos do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o ACNUR. Esse documento foi ratificado e implementado por diferentes Estados ao redor do globo. O arcabouço jurídico brasileiro não é diferente e a concepção do termo refúgio no país é definida pela lei 9.474/97, reproduzindo o que foi acordado na convenção internacional.

Desse modo, a concepção de refugiado presente no estatuto do refugiado e no artigo 1º da lei brasileira identifica esse indivíduo como um produto de algum tipo de perseguição, como a política, ou de uma grave e generalizada violação de direitos humanos. Entretanto, mesmo que se prove de extrema importância um documento que assegure a proteção dos refugiados, dois problemas centrais devem ser esclarecidos. 

Primeiramente, o estatuto deve ser mais específico e incluso quanto aos indivíduos que se qualificam para a concessão de refúgio. Isso se dá já que é nítido que o conceito de refugiado antes exposto, encontra-se ultrapassado. A concepção de refugiado está diretamente ligada ao contexto de sua criação com os fluxos migratórios decorrentes da Segunda Grande Guerra e suas consequentes adversidades. Por isso, com as constantes mudanças advindas da globalização, se faz necessário o reconhecimento de diferentes fontes de vulnerabilidade que, inevitavelmente, obrigam pessoas a sair de seus países de origem, como é o caso dos refugiados ambientais ou socioeconômicos.

Sob esse ponto de vista, é necessário expor o quadro dos milhares de haitianos que se dirigiram a diferentes Estados, incluindo o Brasil, após um terremoto atingir o país em 2011. Como consequência, o acidente natural deteriorou ainda mais as antigas instabilidades políticas e socioeconômicas que o Haiti já enfrentava, o que faz com que indivíduos busquem refúgio em outros países até os dias de hoje.

De acordo com informações da ACNUR em conjunto com Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE)1, o ano de 2019 foi o maior em termos de solicitação de refúgio no Brasil. Nesse sentido, o Haiti aparece em segundo lugar em pedidos com 20,1% das solicitações totais, atrás apenas da Venezuela. Tais números confirmam o fluxo contínuo de indivíduos escapando das condições degradantes do país, mesmo quase uma década após o terremoto.

Nesse caso específico, o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) não identificou na lei de refúgio brasileira base legal para proteger os haitianos. Então, a partir da resolução 8/2006 do Conselho Nacional de Imigração, tais indivíduos receberam uma solução excepcional e provisória: a emissão de vistos temporários. Atualmente, com a portaria interministerial 13/2020, a concessão desses vistos aos haitianos foi estendida até o fim de 2021, mantendo uma mínima proteção humanitária a essas pessoas. Entretanto, mesmo que a atribuição de vistos temporários tenha sido importante, ela não recepciona a garantia de certos direitos econômicos e sociais aos haitianos no país além de não garantir o princípio da não devolução, o qual será tratado mais a frente.

Alexander Betts aborda em seu artigo "Survival Migrant: A new protection framework"2 o conceito de "survival migrant" ou "migrante por sobrevivência"3. Tal noção tem como objetivo alargar a atual concepção do refugiado, abrigando pessoas que se encontram em um zona de penumbra, ou seja, fora do escopo de proteção humanitária atual, e muitas vezes são devolvidas aos seus países de origem. Desse modo, segundo Betts, ao contrário do que está exposto nas convenções e nos arcabouços jurídicos domésticos, o estatuto não deveria englobar apenas indivíduos com um constante temor de perseguição e sim todas as situações em que o indivíduo é forçado a deixar seu país de origem por ter sua existência ameaçada. Isso se dá tendo em vista que o indivíduo perseguido sofre uma ameaça real à sua sobrevivência, mas nos casos em que alguma pessoa tem sua existência ameaçada, ela não necessariamente está sendo perseguida.

Como possível solução, além de uma devida alteração conceitual proposta por Betts, é necessário adotar uma Convenção que liste os direitos fundamentais necessários para um cotidiano minimamente decente. A partir disso, a convenção permitiria o direito à proteção humanitária àqueles que não podem exercer tais direitos listados em determinado país, sendo forçados a sair daquele espaço.

Quanto aos refugiados climáticos, é importante o estabelecimento de regras específicas e extraordinárias. É clara a possibilidade de proteção por parte da comunidade internacional de outras formas que não o asilo. Porém, em casos extremos como o de ilhas que irão comprovadamente desaparecer em alguns anos, os Estados devem sim, por obrigação moral e, caso haja a alteração do Estatuto, mediante o exposto em legislação internacional, prover assistência aos habitantes dessas regiões através de assentamento dos mesmos em seus territórios mediante acordos.

Por isso, também é significativo que o conceito não se torne sobre inclusivo. Em casos em que, mesmo que afrontas a certos direitos, não há o impedimento que cidadãos vivam suas vidas decentemente, de acordo com os direitos humanos básicos elencados como emenda ao atual estatuto ou em uma nova convenção. O debate sobre uma possível sobre inclusão acaba gerando um debate sobre quem estaria apto para solicitar asilo. Por exemplo, Penelope Matthew4 argumenta que a violação à extinta política de filho único chinesa representa um tipo de opinião política e, consequentemente, uma justificativa para solicitação de refúgio. Por outro lado, Luara Ferracioli[5], compara a situação desses casais chineses com a de indivíduos sem acesso à devida nutrição ou aqueles jurados de morte por sua opção sexual, argumentando que a liberdade de escolher quantos filhos você quer criar é importante mas não fundamental ao ponto de impedir que esses casais vivam um cotidiano decente na China.

Além disso, é necessário um maior apontamento das responsabilidades dos Estados frente aos refugiados, principalmente aqueles mais desenvolvidos. De modo a analisar tal questão, é impossível a desassociação da principal obrigação daqueles Estados que ratificaram o estatuto dos refugiados, o princípio da não devolução.

Tal princípio estipula que um refugiado não deve ser retornado ao país em que seus direitos humanos básicos não são garantidos. A normativa, porém, não é complementada por medidas indicando que os indivíduos vulneráveis serão membros ativos dos Estados em que se encontram. Então, o instrumento deixa de lado a garantia de que os indivíduos tenham seus direitos humanos básicos mantidos e protegidos em longo prazo, o que apenas pode ser construído através de um devido elo entre o refugiado e o país de asilo.

Desse modo, o princípio que mais recebe atenção e respeito quando falamos do tema de refugiado na verdade não se importa com aquilo que moralmente os Estados deveriam se preocupar. Obviamente, o princípio tem o seu valor, muitas vezes garantindo o status de cidadão permanente para muitos imigrantes, mas ele, na maioria das vezes, acaba por gerar um ciclo eterno de deslocamentos por campos de refugiados, locais onde muitos dos direitos humanos básicos são desrespeitados e onde essas pessoas não recebem as ferramentas necessárias para progredir socioeconomicamente em suas vidas.

Resumindo, determinados países, inclusive os assinantes da Convenção de Refugiados e de outros dispositivos internacionais referentes à proteção de direitos humanos, negam responsabilidades pelos refugiados que não chegaram diretamente em suas fronteiras ou se apresentaram diretamente às autoridades competentes. Dessa forma, é possível identificar mecanismos que afastam ou negam as responsabilidades frente à crise migratória. Isso é identificado por diversos países que introduzem medidas extraterritoriais para controle do fluxo migratório desde a saída do migrante de seu país até que ele chegue no local, como é o caso da Espanha. Sendo assim, os campos de refugiados ficam cada vez mais lotados e situados em países que, pela ausência de condições financeiras, não conseguem manter a qualidade esperada para esses acampamentos.

Por fim, ambas as mudanças apontadas focam em um sentido apenas o de evitar arbitrariedades dos Estados em relação à figura do refugiado, normalmente encarado com hostilidade e fadado ao esquecimento. Nos mantermos distantes, com políticas de construção de muros ao invés de construção de pontes, apenas alimenta um ódio e uma desconfiança mútua, armazenando bombas para uma explosão futura.

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1 SILVA, G. J; CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T; MACEDO, M. Refúgio em Números, 5ª Ed. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Comitê Nacional para os Refugiados. Brasília, DF: OBMigra, 2020, p-11.

2 BETTS, Alexander. Survival Migration: A New Framework, p. 361-382

3 Tradução livre da expressão original na língua inglesa "survival migrants" realizada por: SILVEIRA, Mariana     Almeida; NEPOMUCENO, Raísa; MATTOS, Weslley; MIRANDA, Carla. Migração por sobrevivência: soluções brasileiras.

4 MATHEW, Penelope, "Conformity or Persecution: China's One Child Policy and Refugee Status," University of New South Wales Law Journal 23 (2000), pp.103-134.

5 FERRACIOLI, Luara. "The Appeal and Danger of a New Refugee Convention." Social Theory and Practice, vol. 40, nº. 1, 2014, JSTOR, www.jstor.org/stable/24332266. Acesso em 22 Junho 2021, pp. 123-144.

Daniel Araújo Porto

Daniel Araújo Porto

Aluno de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.

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