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O Direito Penal Simbólico e a nova qualificadora do crime de estelionato

O Direito Penal Simbólico e a ineficácia da nova qualificadora do crime de estelionato como forma de enfrentamento das novas fraudes eletrônicas.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Atualizado às 15:55

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução:

 Nos tempos atuais, passamos a nos deparar, cada vez mais, com notícias de golpes, termo popularmente adotado, praticados por intermédio de dispositivos eletrônicos, ou seja, aplicativos de conversa, redes sociais, ligações telefônicas e demais sistemas análogos. Com isso, em maio de 2021, foi publicada a lei 14.155, que, dentre outras modificações, acrescentou ao tipo penal do estelionato (artigo 171, § 2º-A, do Código Penal),a qualificadora para o delito praticado com fraude eletrônica (meio de execução). A medida visa dar resposta a sociedade, um claro exemplo do Direito Penal Simbólico, que busca atender ao clamor social com enrijecimento de leis, sem, todavia, atacar as verdadeiras causas do problema.

2. O Direito Penal Simbólico e a ineficácia da medida adotada para enfrentamento das novas fraudes:

De início, vale destacar, que o estelionato é um delito em que há uma grande participação da vítima, uma vez que esta é induzida ou mantida em erro pelo agente. Portanto, a obtenção da vantagem indevida deve-se ao fato de o agente conduzir o ofendido ao engano ou quando deixa que a vítima permaneça na situação de erro na qual se envolveu sozinha (Nucci, 2017, pg. 1068). Ademais, parte da doutrina, classifica o estelionato como sendo o "crime da ganância da vítima", pois, muita das vezes, a vítima entrega parte de seu patrimônio, feliz da vida, convencida de estar a fazer um negócio fantástico (Costa, 2011, pg. 664), como exemplo: pretendendo adquirir um aparelho telefônico com valor de mercado avaliado em R$3.000,00, a vítima acaba sendo induzida a realizar a compra por meio de uma falsa loja virtual, sob a promessa de adquirir o mesmo produto pelo valor de R$ 1.500,00.

No que toca aos chamados "novos golpes", os agentes passaram a se valer de meios eletrônicos para contatar as vítimas e, com isso, induzi-las a erro. Em grande parte dos casos, os estelionatários, valendo de alguma informação pessoal ou, até mesmo, de acesso aos dados dos aparelhos pessoais das vítimas, enviam mensagens para estas, que convencidas de estarem se relacionando com algum familiar ou pessoa próxima, acabam atendendo à solicitação do agente. Outras vezes, os executores acabam simulando negociações virtuais (oferta de produtos, leilões, lojas de fachada, etc.), sempre na promessa de oferecer alguma mercadoria com melhor preço.

Fato é que, independente da forma de aplicação das novas fraudes eletrônicas, os agentes acabam se valendo da estrutura das grandes corporações financeiras, ou seja, os bancos. As solicitações de vantagem econômica são concretizadas por meio de transferências bancárias, que estão a cada dia mais rápidas e práticas. Hoje, por exemplo, precisamos de poucos minutos (até mesmo segundos) para realizarmos um PIX, fazendo com que o valor enviado logo seja creditado na conta do estelionatário, que prontamente saca a quantia e nunca mais movimenta a conta.

Dentre outros pontos, precisamos destacar o momento de abertura das contas utilizadas. Atualmente, conseguimos abrir uma conta bancária sem precisarmos sair de casa, por meio do ambiente digital das instituições financeiras, a chamada internet banking. A ferramenta em questão, de fato representa uma maior comodidade aos clientes e, com isso, potencializa a capacidade das instituições de captar novas carteiras, o que aumenta o volume de seus negócios e, por consequência, de seus lucros. Todavia, toda a facilitação acaba por gerar uma queda nos protocolos de segurança das instituições e, com isso, uma oportunidade para execução das fraudes. Os agentes conseguem abrir suas respectivas contas bancárias sem precisar comparecer nas agências, fazendo a solicitação de abertura e entrega dos documentos de maneira remota.

Sendo assim, em grande parte das vezes, as contas são abertas com a apresentação de documentos falsos, o que é, independentemente de como foi feita a solicitação, dever da instituição evitar. Em outros casos, os agentes acabam por utilizar contas de "laranjas", ou seja, pessoas que emprestam seus endereços bancários para que outra pessoa receba o valor, sabendo ou não da origem do dinheiro. Por fim, quando as contas são abertas de forma adequada, sem apresentação de documentos falsos ou abertas em nome de "laranjas", deve ser cobrada das instituições financeiras uma efetiva colaboração com as autoridades responsáveis pela investigação do fato.

Provocadas pela insatisfação da sociedade, as autoridades, na figura do Poder Legislativo, resolveram combater a questão com o enrijecimento do tipo penal, passando a qualificar a conduta executada por meio de canais eletrônicos e análogos. O novo parágrafo 2º-A, adicionado ao tipo penal de estelionato, passou a prever como sanção ao cometimento do delito a fixação da pena de 4 a 8 anos de reclusão e multa. Com isso, institutos despenalizadores, como por exemplo, a Suspensão Condicional do Processo (artigo 89, da lei 9.099/95), deixaram de ser cabíveis ao caso concreto, e em relação a fixação de regime inicial, ficou muito mais fácil a estipulação de regime mais severo do que o anteriormente aplicado, o aberto. Uma simples circunstancia judicial desfavorável prevista no artigo 59, do Código Penal, poderá fazer com que o réu cumpra parte de sua pena em regime semiaberto ou até mesmo no fechado.

A pena em abstrato definida é extremamente desproporcional, sendo comparada, por exemplo, com o crime de roubo simples, cuja pena é de 4 a 10 anos. Embora ambos os delitos, estelionato e roubo, estejam previstos no capítulo de crimes contra o patrimônio e, por consequência, objetivam tutelar o mesmo bem jurídico, o patrimônio da vítima, o delito de roubo é classificado pela doutrina como sendo um crime complexo, ou seja, o tipo penal é composto da "junção" de dois outros delitos, sendo eles: furto e lesão corporal ou ameaça. Com isso, o artigo 157, do Código Penal, além de tutelar o patrimônio pessoal do ofendido, também tem como objetivo a defesa da integridade física e psicológica da vítima, tratando-se de um dos delitos mais graves e traumáticos para os ofendidos.

Além do mais, a nova medida adotada vai de encontro com a recente modificação trazida pelo Pacote Anticrime (lei 13.964/2019), que passou a prever que as ações penais nos delitos de estelionato são públicas e condicionadas à representação do ofendido. O objetivo do legislador é desafogar os órgãos investigativos, o próprio poder judiciário e, porque não, o sistema penitenciário, uma vez que em grande parte dos casos, as vítimas não têm interesse na persecução penal, seja em decorrência da pequena lesão sofrida ou por não acreditarem na responsabilização dos agentes, em decorrência da ineficácia da capacidade punitiva do Estado.

Como facilmente se percebe, não há coerência na política criminal adotada pelo legislador, pois atua sempre em conformidade com as pressões sociais, sem ao menos verificar a eficácia instrumental da medida como meio de prevenção do delito. Segundo Zaffaroni e Pierangeli (1999, pg. 132):"a Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos".

Em razão da falta de critério e estratégia do Poder Legislativo, bem como com a repercussão midiática que vem ganhando o problema, é que podemos afirmar que se trata de mais um exemplo do Direito Penal Simbólico, como foi a criação da Lei de Crimes Hediondos (lei 8.072/90), que atendeu a pressão social e não atacou as causas dos problemas (desigualdade social, falta de educação, de emprego, etc), mantendo o país com elevados índices de criminalidade. O conceito de Direito Penal Simbólico nas palavras de Roxin (2006, p. 47):

Este termo é usado para caracterizar dispositivos penais "que não geram, primariamente, efeitos protetivos concretos, mas que devem servir à manifestação de grupos políticos ou ideológicos através da declaração de determinados valores ou o repúdio a atitudes consideradas lesivas. Comumente, não se almeja mais do que acalmar os eleitores, dando-se, através de leis previsivelmente ineficazes, a impressão de que está fazendo algo para combater ações e situações indesejadas.

3. Considerações Finais

Evidente que a medida adotada para enfrentar a questão é mais simbólica do que eficaz, uma vez que a dificuldade e, consequentemente, a solução para o problema está nas formas de se evitar ou investigar os delitos, e não na falta de previsão legal. A legislação penal brasileira já possuía mecanismos para enfrentar a questão, como exemplos: a possibilidade de se aumentar a pena base em decorrência das circunstâncias e consequências da conduta, conforme artigo 59, do Código Penal, o instituto do concurso de crimes, previstos nos artigos 69, 70 e 71, do mesmo diploma, entre outros.

Assim sendo, as novas fraudes eletrônicas são consequências da nova forma de a sociedade se relacionar. Com o avanço tecnológico, as interações sociais mudaram, os mecanismos de comunicação são outros e, com isso, as formas de execução das fraudes também foram adaptadas. Ou acreditamos que o delito de estelionato será sempre o de vender bilhete premiado da loteria?

Em suma, o Poder Legislativo, claramente, jogou para a torcida. Deixou de enfrentar as causas do problema e apresentou uma medida rápida, simbólica e ineficaz. A solução para enfrentarmos o problema passa antes por outros ramos do direito, como exemplo, responsabilizar as instituições financeiras utilizadas como ferramentas pelos agentes, diante da evidente diminuição nos protocolos de segurança, bem como estabelecer formas de cooperação entre as instituições e as autoridades, e, por último, cobrar dos aplicativos ferramentas mais ágeis para denunciar contas falsas. Caso contrário, a medida adotada apenas contribuirá para agravar a situação carcerária, bem como para a expansão do Direito Penal, tornando-se, cada vez mais, moroso e ineficaz.

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BRASIL. Decreto lei 2.848/1940. Código Penal. Brasília, DF. Acesso em 10/07/2021.

BRASIL. Lei 14155, de 27 de maio de 2021. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tornar mais graves os crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato [...] (Código de Processo Penal), para definir a competência em modalidades de estelionato. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 27 maio 2021

COSTA JUNIOR, Paulo José da; Fernando José da Costa, Código Penal Comentado. 10 ed. rev. ampl. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2011.

EUGÊNIO Raúl Zaffaroni; José Henrique Pierangeli, Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão - teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

ROXIN, Claus. Estudo do Direito Penal. Tradução Luis Greco. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: RENOVAR, 2006, p47.

Vinícius Fochi

Vinícius Fochi

Advogado criminalista.

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