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Impropriedade da cognição exauriente como fundamento para ampliação do objeto do incidente de impugnação ou habilitação de crédito

A recuperação judicial é uma ferramenta jurídica cada vez mais utilizada pelas empresas em situação de crise.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Atualizado às 10:38

(Imagem: Arte Migalhas)

INTRODUÇÃO

A lei 11.101/05 1, responsável por discorrer sobre a recuperação judicial e falências, disciplina que, uma vez publicada a lista de credores consolidada pelo Administrador Judicial, nomeado nos autos da ação de recuperação judicial, se encerra a fase administrativa de habilitação ou divergência de crédito.

Assim, o credor que tiver alguma objeção a mencionada lista creditícia, deverá, por meio do judiciário e em consonância com o todo disciplinado na legislação recuperacional, apresentar o incidente de habilitação ou impugnação de crédito. Portanto, o mencionado incidente é o meio pelo qual o credor, devidamente assistido por um advogado, apresenta pedido certo em relação a lista de credores elaborada pelo Administrador Judicial.

Contudo, a ordenamento jurídico encontra-se polarizado sobre a amplitude de seu objeto, sendo este exatamente o assunto ao qual o presente artigo se debruça.

Uma parte da doutrina sustenta a irrestrita dilação probatória como justificativa a propositura da ação incidental para discutir lide referente a qualquer aspecto pertinente ao crédito. Em oposição, encontram-se aqueles que sustentam a dilação de provas diminuta do incidente de impugnação de crédito, como justificativa à limitação de seu objeto.

Assim, propondo-se a refletir sobre a temática, conclui-se, ao final do presente artigo, que a ampliação do objeto da via incidental, pautado na cognição exauriente não seria a medida a rigor, devido aos inúmeros prejuízos que isto acarretaria ao credor e a própria Recuperanda, que, em se encontrando em momento de reestruturação financeira, não poderia aguardar o desenrolar de incidentes propostos com a finalidade diversa da legal para apurar o seu passivo e analisar a viabilidade do Plano de Recuperação Judicial.

1. INCIDENTE DE HABILITAÇÃO OU IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO: MOMENTO DE PROPOSITURA E ASPECTOS LEGAIS

A recuperação judicial de empresas é a ferramenta jurídica adotada pelo sistema brasileiro com o objetivo de auxiliar a empresa na superação da situação de crise econômico-financeira, permitindo a manutenção de sua fonte produtora e da atividade empresarial saudável.

Assim, a empresa que se encontra em crise, mas, em condições de superar esse momento de dificuldade, ingressa em juízo com o pedido de recuperação judicial, o qual será norteado pela lei 11.101/2005.

Fabio Ulhoa Coelho 2, em livro de sua autoria, ao discorrer sobre a temática ressalta justamente sobre esse aspecto peculiar da ação recuperacional de proporcionar a empresa uma reorganização financeira, por meio de atos judiciais.

A recuperação judicial é um processo peculiar, em que o objetivo buscado - a reorganização da empresa explorada pela sociedade empresária devedora, em benefício desta, de seus credores e empregados e da economia (local, regional ou nacional) - pressupõe a prática de atos judiciais não somente pelo juiz, Ministério Público e partes, como também de alguns órgãos específicos previstos em lei. Em vista da complexidade dos interesses envolvidos e dos fundamentos técnicos da recuperação de qualquer empresa em crise, fazem-se necessárias a constituição e a operacionalização de instâncias deliberativas e fiscais para que a empresa explorada pela sociedade devedora consiga remodelar-se e sobreviver. (COELHO, 2012, p. 494).

Conforme disciplinado na obra Comentários à lei de Recuperação de Empresas e Falência 3, preenchidos os requisitos legais, o Juiz procederá com seu deferimento, inaugurando a fase instrutória do procedimento. No despacho que analisa eventual deferimento do pleito, dentre outros fatores, haverá a nomeação do Administrador Judicial e a determinação de expedição de edital, no qual, de acordo com o artigo 52, da referida lei, a empresa, agora Recuperanda, deverá listar individualmente todos os seus credores e valores a eles devidos.

Assim, após a publicação do edital supracitado, o credor que não concordar com valor e/ou classificação atribuído ao seu crédito, ou então, na ausência de crédito na relação da Recuperanda, deverá apresentar, diretamente ao Administrador Judicial, divergência contra o crédito relacionado ou habilitação de crédito, conforme parágrafo 1º, do art. 7º, da lei de Recuperações e Falências.

Encerrado o prazo legal de 45 dias, o Administrador Judicial apresenta em Juízo sua relação de credores, documento que reflete as alterações realizadas na lista apresentada pela recuperanda, quando da instrução do feito, em razão do julgamento das divergências e habilitações de crédito.

Considerando as informações colhidas nos procedimentos de verificação de crédito e as habilitações feitas, o administrador judicial tem um prazo de 45 dias, contado do fim do prazo para habilitações (artigo 7º, § 2º, da lei 11.101/05) para publicar um edital contendo a relação de credores do empresário ou sociedade empresária. Essa publicação será feita preferencialmente na imprensa oficial e, se o devedor ou a massa falida comportar, em jornal ou revista de circulação regional ou nacional, bem como em quaisquer outros periódicos que circulem em todo o país, sob a epígrafe "recuperação judicial de", "recuperação extrajudicial de" ou "falência de" (artigo 191). (MAMEDE, 2019, p.133).

Nesse momento, após a publicação do edital previsto no artigo 7º, §2º, da lei recuperacional, inaugura-se a fase judicial e o credor que discordar do valor arrolado ou aquele que não tiver seu crédito listado e deixou de apresentar sua habilitação ou divergência na fase administrativa, poderá fazê-las diretamente ao Juízo, por meio da propositura do incidente de habilitação ou impugnação de crédito, nos termos do artigo 8º do mesmo códex.

Conforme disciplina o supramencionado artigo, o Comitê, qualquer credor, o devedor ou seus sócios ou o Ministério Público podem apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado.

Tal impugnação dar-se-á através do incidente de habilitação ou impugnação de crédito e, realizando interpretação do postulado mencionado, ele será a via jurídica adequada para a análise do crédito, de sua natureza e titularidade. Por isso, inclusive, sua petição inicial, além de atender o disposto no Código de Processo Civil, possui requisitos específicos elencados no artigo 9°, essenciais a apuração da verdade real do crédito.

O incidente deve ser distribuído por dependência aos autos do pedido de recuperação judicial da empresa recuperanda, evidenciando sua natureza de ação incidental de modo que os demais atos jurídicos advindos do reconhecimento da existência do crédito incluído na lista creditícia, tal como eventual descumprimento no pagamento do valor arrolado, deverão ser comunicados nos autos principais da recuperação judicial da Recuperanda 4.

Isto porque, conforme anteriormente salientado o objetivo da propositura do pedido de recuperação judicial é a preservação da função social da empresa, de modo que eventual descumprimento no pagamento de credores arrolados na lista creditícia, demonstraria comprometimento da atividade econômica empresarial e, consequentemente, a possibilidade de decretação de falência.

Neste contexto, cabe a Administração Judicial, na condição de auxiliar do Juiz, exercer sua atividade de modo estruturado, célere e transparente, possibilitando aos credores acesso imediato as informações do processo, bem como facilitando, ao máximo, a eles e a terceiros interessados o acompanhamento de todas as suas etapas.

O acima exposto é disciplinado no artigo 22 da lei 11.101/2005, o qual, inclusive, elenca as obrigações assumidas pelo Administrador, quando nomeado, e dentre elas, encontra-se o dever de informação, segundo o qual, deve o Administrador Judicial fornecer aos credores todas as informações que eles solicitem.

Assim, em havendo um incidente de habilitação ou impugnação de crédito, deverá o Administrador Judicial conduzi-lo nos estritos termos legais e de acordo com o acima alegado.

Pois bem. Conforme o exposto, o credor que discorda do valor arrolado ou aquele que não tiver seu crédito listado no edital previsto no artigo 52, § 1°, da lei recuperacional, poderá pleitear seu direito na fase judicial, por meio da propositura do incidente de Habilitação ou Impugnação de crédito.

Logo, preenchidos todos os requisitos legais, a petição inicial será recebida e a ação deverá seguir, sob o véu da lei recuperacional, em busca da verdade real do crédito.

O princípio da verdade real do crédito é de eximia importância e deve nortear todos os incidentes, pois pautados nele o Juízo realizará a fidedigna apuração do crédito devido a cada credor que recorreu a via incidental, ou seja, estamos diante de algo curial para a reestruturação da empresa.

Isto porque, conforme ressaltado por Geraldo Fonseca de Barros Neto 5, em sua obra Aspectos Processuais da Recuperação Judicial , a empresa que recorre ao instrumento jurídico da recuperação judicial deverá conhecer detalhadamente o passivo do devedor, não só pelo fato dos credores participarem da relação processual, mas também, porque o Plano de Recuperação Judicial deve ser viável. Assim, a verificação dos créditos encontra-se posição de destaque no procedimento do pleito recuperacional, pois proporcionará a apuração do real do passivo, bem como a análise da viabilidade ou não do plano elaborado. 

Logo, pautando-se no preconizado na lei 11.101/2005 e no mencionado postulado, após o processamento da ação incidental, o Juiz proferirá a sentença, na qual determinará a inclusão, majoração, minoração ou exclusão de valores creditícios dos incidentes que tiverem conjunto probatório hábil a comprovar o pleiteado na exordial. Em caso de fragilidade probatória, deverá o magistrado especificar os aspectos controvertidos, determinando as provas a serem produzidas, inclusive, designando audiência, caso seja necessário 6.

Após a manifestação do administrador judicial - ou, mesmo quando transcorrido in albis o prazo para manifestar-se -, os autos serão conclusos ao juiz (artigo 15 da lei 11.101/05), que (1) determinará a inclusão no quadro geral de credores das habilitações de créditos não impugnadas, no valor e na classificação constante da relação de pretensos credores; (2) julgará as impugnações que entender suficientemente esclarecidas pelas alegações e provas apresentadas pelas partes, mencionando, de cada crédito, o valor e a classificação; (3) fixará, em cada uma das restantes impugnações, os aspectos controvertidos e decidirá as questões processuais pendentes; e (4) determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário. Caso não haja impugnações, o juiz homologará, como quadro geral de credores, a relação dos pretensos credores constante do edital publicado pelo administrador judicial, sendo dispensada nova publicação (artigo 14). (MAMEDE, 2019, p.136).

Percebe-se, portanto, que a sentença proferida em sede de incidente de impugnação ou habilitação de crédito possui natureza declaratória, vez que se limita a reconhecer existência de um direito que o autor já possuía, tornando-se o meio executivo adequado para tornar real o que a ele foi reconhecido 7.

2. A DILAÇÃO PROBATÓRIA NO INCIDENTE DE HABILITAÇÃO E IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO COMO JUSTIFICATIVA PARA AMPLIAÇÃO DE SEU OBJETO

Pautando-se no discutido até o momento, infere-se que o incidente de habilitação ou impugnação de crédito é a via jurídica adequada àquele que pretende alterar, excluir ou inserir na lista de credores valor devido pela Recuperanda.

Assim, por meio dele haverá especificamente o reconhecimento do crédito, a apuração de sua liquidez, legitimidade e exigibilidade. Por isso, o artigo 9° da lei recuperacional é cristalino ao exigir que sua petição inicial seja instruída com os documentos comprobatórios do crédito e a indicação das demais provas a serem produzidas, sendo este o aspecto central do presente artigo.

Pois bem.

Muito se discute sobre a dilação probatória do incidente de habilitação ou impugnação de crédito como maneira de ampliar ou restringir seu objeto, razão pela qual a temática encontra-se polarizada. Há posição defendendo ser plenamente possível a ampla dilação probatória, enquanto a outra sustenta pela sua cognição restrita e estreita.

Analisando a prática forense esta oposição fica ainda mais nítida, pois o que dela se extrai é que, em muitos casos, o mencionado incidente tem sido utilizado como um atalho a parte que tenha realizado negócio com a empresa e encontra-se na condição de um eventual pretenso credor. Assim, nesta posição, o interessado, por meio de sua propositura, pretende apurar eventual existência de crédito, pleiteando inclusive a obtenção de documentos aptos a consubstanciar o alegado.

Arthur Fonseca Cesarini 8, em artigo sobre a temática, defende a corrente a favor da cognição exauriente, afirmando que os artigos 8 e 13 da lei recuperacional não são taxativos, razão pela qual incorreto sustentar a limitação do incidente à análise de liquidez, legitimidade e exigibilidade do crédito. Continua sua argumentação aduzindo que esse tipo processual possui caráter amplo e deve se debruçar sobre toda e qualquer matéria relacionada ao crédito discutido.

Conforme cotejado alhures, devemos ter em mente que o artigo 8º c/c 13 não possui um caráter taxativo, ou seja, não se limita tão somente a análise de legitimidade, importância, classificação ou ausência, mas sim possuem um caráter ampliativo de toda e qualquer matéria relacionada ao crédito a ser discutido. (CESARINI, 2019)

Gladson Mamede 9, grande doutrinador da área, já citado ao longo do presente artigo, sustenta a mesma vertente, aduzindo ser restritivo demais limitar a habilitação ou impugnação de crédito à análise de seu reconhecimento, da apuração de sua liquidez, legitimidade e exigibilidade. Ressalta que esse assunto pode ser permeado pelos mais diversos fatores judiciais, tais como inexistência do crédito, defeito de representação, prescrição do direito, ausência de requisito formal, dentre outros. Assim, seria um tanto temerário não poder invocá-las no bojo do incidente.

Analisando a fundo a temática e interpretando as obras de Marcelo Barbosa Sacramone e Fábio Ulhoa Coelho é possível concluir que ambos autores se opõem ao posicionamento explanado, vez que que ambos deixam claro que a cognição exauriente será assegurada. Contudo, ela será deverá se ater aos liames legais.

Pormenorizando o alegado, Marcelo Barbosa Sacramone ao discorrer sobre os incidentes de habilitação e impugnação de crédito deixa claro que o interessado poderá impugnar a existência, o valor e a natureza do próprio crédito, bem como a existência, o valor e a natureza de créditos de outros titulares constantes da lista e que a análise deles não ficaria adstrita às questões cognoscíveis de plano, pois o conhecimento do crédito na habilitação/impugnação será exauriente, inclusive com a possibilidade de produção probatória, se necessário 10.

Fábio Ulhoa Coelho, corrobora o exposto, aduzindo que nos incidentes, em que desnecessária a dilação probatória, haverá o julgamento. Em relação aos demais, o Juiz deverá fixar os aspectos controvertidos, decidir as questões processuais pendentes e determinar as provas a serem produzidas, as quais, quando concluídas, serão remetidas ao Juiz para julgamento do incidente, acolhendo ou rejeitando o pleito formulado 11.

Ora, obvio e ululante, portanto, que a temática se desenvolve em torno da utilização da cognição exauriente como justificativa para ampliação do objeto a que se destina o incidente de habilitação ou impugnação de crédito e da ampla interpretação da lei recuperacional.

Com o devido respeito aos posicionamentos opostos, totalmente incabível que nesse momento processual, seja possível por meio de uma ação incidental se debruçar sobre lide atinente a toda e qualquer matéria relacionada ao crédito discutido. Isto porque essa ferramenta jurídica possui características muito peculiares e se destina a um aspecto central da recuperação judicial de uma empresa, qual seja a necessidade de conhecimento detalhado sobre o passivo do devedor. Afinal, sem esta apuração, sequer será possível analisar a viabilidade do Plano de Recuperação Judicial. Logo, não seria adequado ampliar a interpretação do ordenamento jurídico e nem correto justificá-lo através da ampla dilação probatória. 

Insta salientar, que inexiste cerceamento da produção de provas, uma vez a cognição será aplicada. Contudo, restrita a apuração da liquidez do crédito, legitimidade e exigibilidade, todos impostos pela legislação recuperacional.

3. IMPROPRIEDADE DA COGNIÇÃO EXAURIENTE COMO FUNDAMENTO PARA AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO INCIDENTE DE IMPUGNAÇÃO OU HABILITAÇÃO DE CRÉDITO

Diante de todo o exposto, verifica-se que o ordenamento jurídico se encontra polarizado sobre o objeto a que se destina o incidente de habilitação e impugnação de crédito, utilizando inadequadamente a amplitude da cognição como justificativa para propositura de lide diversa da pretendida.

Embora exista tendência dos aplicadores do direito em sustentarem a ampla dilação probatória dos incidentes de impugnação ou habilitação de crédito, tal posicionamento seria inadequado.

Isto porque, o incidente de impugnação ou habilitação de crédito não é a via apropriada para a constituição de um direito, tal incidente tem objeto limitado e não se presta, por regra, a averiguar a existência de um crédito, mas tão somente a apurar sua liquidez (quantum devido), legitimidade, concursalidade e exigibilidade, exclusivamente nos termos da legislação recuperacional, tanto que o artigo 8° do mencionado texto legislativo afirma justamente isso.  

Aliás, se tal possibilidade existisse, o artigo 9º da lei recuperacional não seria categórico ao determinar que a impugnação ou habilitação deverá ser instruída com os documentos comprobatórios do crédito pretendido. Tal requisito demonstra claramente que aquele que recorre a essa ação já deve ter certeza da existência do crédito, devendo a lide se desenvolver em torno da liquidez, legitimidade, concursalidade e exigibilidade. Assim, consequentemente, como dedução lógica, extrai-se a impropriedade desse instituto jurídico em se ater às demandas sobre pretensos credores e eventual existência do crédito.

Curial ainda destacar que diversificar o objeto do mencionado incidente, pautando-o na ampla dilação probatória igualmente esbarra na natureza da sentença. Isto porque, conforme anteriormente explanado, a sentença proferida nos autos de um incidente de impugnação ou habilitação de crédito é de natureza declaratória.

Fredie Didier Jr 12, em artigo que debate a eficácia imediata das decisões declaratórias e constitutivas, faz interessantes considerações sobre essa temática, sendo que as atinentes aquelas se enquadram perfeitamente ao caso discutido. Segundo ele, as sentenças declaratórias se destinam a obter uma certificação, uma certeza jurídica.

A decisão meramente declaratória pressupõe uma situação de incerteza e tem por objetivo eliminá-la, por meio de uma certificação. Daí se dizer que o bem da vida que ela confere àquele que provocou a jurisdição é a certeza jurídica acerca da existência, inexistência ou modo de ser de uma determinada situação jurídica [...] (DIDIER, 2016)

Assim, realizando um paralelo entre o exposto e o enfrentamento a que esse artigo se debruça, temos mais um fator que evidencia a impropriedade da cognição exauriente como fundamento para ampliação do objeto do incidente, devido à natureza da sentença proferida. Afinal, adotar a possibilidade de se discutir qualquer fator referente ao crédito, em alguns casos, iria pressupor a alteração de sua natureza. Logo, considerando o raciocínio traçado e, em havendo outras vias jurídicas adequadas, inconcebível sustentar a cognição exauriente como forma de discutir qualquer lide referente a eventual direito creditício.

Ressalta-se que a ampla dilação probatória será sim garantida. Todavia, restrita aquilo que o ordenamento jurídico destina ao incidente de impugnação ou habilitação de crédito.

O princípio da verdade real do crédito deve sempre nortear o processamento dos incidentes. Contudo, ele não pode ser utilizado descaracterizando-os, tornando-os um processo de conhecimento qualquer, trazendo morosidade a um procedimento célere e distorcendo a sua real finalidade. Isto porque, em sendo a recuperação judicial a medida adequada para reestruturação de uma empresa em crise, necessário primar pela celeridade, pois a correta aferição do crédito, possibilitará a real constatação do passivo a ser adimplido por meio do Plano de Recuperação Judicial.

Neste sentido, inclusive, não há que se falar em infração à princípios constitucionais, tal como o do contraditório e ampla defesa, por dois motivos.

Primeiro, porque o Judiciário não estaria impedindo a parte responsável por formular um pedido, que extrapole os limites do incidente, de ter sua demanda apreciada, há apenas o redirecionamento desse pleito ao instrumento jurídico adequado. Segundo, pois, ao Magistrado continua sendo possível a promoção da ampla instrução probatória em busca de um provimento jurisdicional justo. Contudo, ele estaria restrito aos liames impostos pelo ordenamento jurídico aos incidentes de impugnação ou habilitação de crédito.

O Desembargador Fortes Barbosa, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em decisão veiculada no próprio site da Corte e abaixo transcrita, proferida em 11 de maio de 2020, inclusive, sustentou a aplicação da cognição restrita dos incidentes.

Recuperação Judicial - Habilitação de crédito retadatária - Decreto de extinção sem apreciação de mérito - Gratuidade processual requerida em segunda instância - Deferimento para processamento deste recurso, diante da presunção prevista no artigo 99, §3º do CPC/2015 - Afirmada atuação como representante comercial, a partir de ajuste verbal - Apresentação de mensagens eletrônicas e planilha - Ausência de uma base documental mínima, não se prestando o ajuizamento de uma habilitação para que seja obtida uma condenação apta a dotar um crédito de certeza e liquidez - Inviabilidade de ser promovido um arbitramento da remuneração do recorrente, dados os limites de cognição e a finalidade deste incidente - Deficiência grave do pleito formulado - Inadequação - Falta de interesse de agir - Extinção confirmada - Recurso desprovido.

(TJSP;  Agravo de Instrumento 2035185-70.2020.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 11/05/2020; Data de Registro: 11/05/2020)

Analisando minuciosamente o julgado acima, verifica-se que ele corrobora o todo sustentando até o presente momento, vez que ressalta que a dilação probatória em sede de verificação de crédito é absolutamente diminuta, eis que a legislação pátria exige que as obrigações do devedor para inclusão no concurso de créditos sejam certas e líquidas, não sendo a via incidental a sede adequada para o acertamento de relação obrigacional não devidamente documentada.

Aliás, utilizar os incidentes com a finalidade de apurar eventual existência de direito creditório, confrontaria com inclusive com a celeridade exigida para o procedimento recuperacional e a plena execução do Plano de Recuperação Judicial.

Conclui-se, portanto, que o incidente de impugnação ou habilitação de crédito não é palco para promover a constituição de um crédito, mas tão somente sua verificação através da análise de créditos existentes (títulos judiciais ou extrajudiciais) sob a luz do direito recuperacional.

Por todo o exposto, infere-se que essa é mais uma temática polarizada no universo da recuperação judicial e considerando a especificidade da matéria e a pouca idade da lei recuperacional, certamente, muito será debatido sobre.

Porém, a prática forense vem demonstrando que o afrouxamento do quanto preconizado no ordenamento jurídico vem trazendo enorme insegurança. Assim, preferível e mais cauteloso a aplicação de uma interpretação restritiva da lei 11.1101/2005, a fim de que de que ela seja devidamente cumprida, promovendo a empresa superação da situação de crise econômico-financeira, bem como a manutenção de sua fonte produtora e da atividade empresarial saudável.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, verifica-se que o ordenamento jurídico se encontra polarizado entre aqueles que defendem a ampla dilação probatória como justificativa para ampliação do objeto a que se destina o incidente de impugnação ou habilitação de crédito e aqueles que sustentam a cognição restrita como maneira de se fazer cumprir o quanto previsto na lei em relação ao objeto dos mencionados incidentes.

Todavia, a interpretação restritiva da lei 11.101/2005 e a dilação probatória diminuta se sobrepõem, não apenas por conferirem maior legalidade à temática, mas também para que o credor possa ter seu crédito analisado de maneira célere e, por conseguinte, para que seja possível a elaboração do Quadro Geral de Credores, apuração do passivo e o cumprimento e viabilidade do Plano de Recuperação Judicial. 

Ora, portanto, o incidente de habilitação ou impugnação de crédito não é a via adequada para suscitar qualquer lide atinente a eventual direito creditório da parte, pois, conforme exaustivamente trabalhado ao longo do presente artigo, tais incidentes têm objeto limitado e não se prestam, por regra, a averiguar a existência de um crédito, mas tão somente a apurar sua liquidez (quantum devido), legitimidade, concursalidade e exigibilidade, exclusivamente nos termos da legislação recuperacional.

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1 BRASIL. Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Disponível aqui. Acesso em: Acesso em 02 de junho de 2020
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 3, 2012, Saraiva.
3 SOUZA JR. Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: lei 11.101/2005. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
BARROS NETO, Geraldo Fonseca de. Aspectos processuais da recuperação judicial. São Paulo: Conceito, 2013, p. 171.
BARROS NETO, Geraldo Fonseca de. Aspectos processuais da recuperação judicial. São Paulo: Conceito, 2013, p. 165.
6 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2019. v. 4.
BASILIO, Ana Tereza; FERRAZ, Álvaro. Estão Sujeitos À Recuperação Judicial Os Créditos "Existentes" (Originados) Até A Data Do Requerimento De Recuperação Judicial. Revista de Direito Recuperacional e Empresa, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 13, 2019, p. 10.
8
 Cesarini, Arthur Fonseca. Da Cognição Exauriente em Incidentes de Impugnação de Crédito. Disponível aqui.
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2019. v. 4, p. 105/106.
10
 SACRAMONE, Marcelo Barbosa - Comentários à lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pp. 92/95.
11 
COELHO, Fábio Ulhoa Curso de Direito Comercial, vol. 3, 2012, Saraiva, p. 248/249.
12 
DIDIER, Freddie. Decisões declaratórias e constitutivas não tem eficácia imediata. 27 de outubro de 2016.

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NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito empresarial. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

Giovanna Luiza Estevam Valente

Giovanna Luiza Estevam Valente

Advogada na área de recuperação judicial e falências. Especialista em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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