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A compensação penal como forma de reparação de penas abusivas

É necessário encarar a questão de maneira realista, compreendendo que, ao menos em um curto prazo, este cenário degradante de cumprimento de penas não aparenta estar próximo do fim, de modo que, além das medidas preventivas, é imprescindível que haja medidas compensatórias.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Atualizado às 16:52

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

As mazelas que assolam o sistema penitenciário brasileiro, já há algum tempo, vêm sendo objeto de debate não só no meio acadêmico, mas também pelos Tribunais Superiores1 e pela jurisprudência estrangeira2. Com efeito, entidades internacionais de Direitos Humanos igualmente já se debruçaram sobre o assunto, destacando-se aqui a edição da resolução de 22 de novembro de 20183 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). 

A referida resolução trata da situação do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC), no Rio de Janeiro, no qual foram identificados problemas como superlotação, considerável número de mortes recentes4 e precárias condições de detenção5. Diante deste quadro6, entendeu-se que a situação dos custodiados seria "incompatível com as condições mínimas de tratamento dos presos, previstas no direito interno do Estado brasileiro". Assim, a CIDH considerou a possibilidade de que aqueles lá custodiados estariam suportando "um sofrimento jurídico muito maior que o inerente à mera privação de liberdade", de modo que seria justo reduzir o seu tempo de encarceramento como meio de compensação.  

Para aferição desta justa redução, considerou-se especificamente o aspecto da superlotação - de aproximadamente 200% - para chegar à conclusão de que a "inflicção antijurídica" da pena seria, in casu, dobrada, de forma que o tempo de pena deveria ser contado à "razão de dois dias de pena lícita por dia de efetiva privação de liberdade em condições degradantes"7

Pois bem. Recentemente, o STJ julgou o RHC 136.9618, no qual, considerando os termos da supramencionada resolução, se pleiteava que a pena cumprida por uma pessoa no IPPSC fosse computada em dobro. 

Apoiando-se na "eficácia vinculante e direta" da resolução ao Estado brasileiro e com base nos princípios hermenêuticos que impõem a interpretação das sentenças da CIDH da maneira "mais favorável possível àquele que vê seus direitos violados", o recurso foi provido.  

Tratou-se, aqui, da intitulada compensação penal por pena abusiva, já trabalhada pela doutrina9 e pela jurisprudência nacional10 e estrangeira11

Diante disso, indaga-se: malgrado a resolução da CIDH trate apenas do IPPSC e a decisão do STJ não possua caráter vinculante, a extensão desse fundamento a outros casos seria juridicamente viável, ainda que sem previsão legal expressa?  

Para se chegar a uma resposta assertiva, o primeiro passo é identificar os fundamentos utilizados pela CIDH na resolução. Como visto, adotou-se como premissa fundante as condições degradantes vividas pelas pessoas custodiadas no IPPSC, objetivamente representadas pela superlotação carcerária e demais males que quase automaticamente dela decorrem. 

Tais condições impõem um sofrimento antijurídico que extrapola as restrições legalmente inerentes à pena, sendo certo que a necessidade de compensação no cômputo da pena se deu justamente por conta deste excesso.  

No ponto, exalta-se o entendimento de Zaffaroni e Roig quando defendem que a pena seja mensurada de maneira qualitativa, ou seja, "considerando as variações de qualidade sofridas pela privação de liberdade ou pela pena durante o seu curso"12 -, de modo que "ao traduzir-se [a pena] em um castigo mais gravoso, deve ser objeto de redução compensatória"13

Prosseguindo, o segundo passo é verificar se este sofrimento antijurídico excessivo está presente em outros casos. No ponto, cita-se o parecer elaborado por Juarez Tavares, acostado à ADPF 34714, que trabalha a diferenciação entre pena ficta e pena real.  

A pena ficta constituiria um valor numérico, representado por uma valoração abstrata e discricionária do Poder Legislativo. Sucede que esta pena é idealizada sob a premissa de que seu cumprimento observará as disposições legais e constitucionais pertinentes, o que, tendo em vista a situação degradante do sistema penitenciário nacional, sabidamente não ocorre em diversas unidades prisionais. 

A partir de um confronto empírico, então, surge o conceito de pena real, que abrange todas as mazelas do sistema carcerário eventualmente suportadas pela pessoa privada de liberdade - superlotação, estrutura precária etc. Tavares conclui que o reconhecimento da pena real implica "um necessário redimensionamento do valor nominal da pena, ou seja, uma redução proporcional desse valor, de forma a equiparar a aflição ficta à aflição real." 

Ilustrando com um exemplo: uma pena de doze anos cumprida em um estabelecimento adequado impõe um determinado sofrimento ao apenado, considerado justo pela lei. Este mesmo tempo de pena cumprido em um estabelecimento superlotado, sem condições mínimas de saúde e higiene, imporá um sofrimento muito maior, restringindo direitos em excesso.  

Quanto à forma de mensurar esta diferença entre pena ficta e real, ou seja, de fazer esta aferição qualitativa da pena, entende-se que o critério da superlotação é o ponto de partida mais adequado, pois trata-se de aspecto eminentemente objetivo, além de ter sido um dos principais norteadores da decisão da CIDH15.  

A partir de tais critérios e considerando os atuais números16 do sistema carcerário brasileiro, nos parece que a ratio da decisão da CIDH, confirmada pelo STJ, pode, em tese, ser replicada a outros casos, especialmente ponderando que se deve interpretar a decisão da Corte de maneira a ampliar a concretização de direitos humanos. 

Salienta-se, por oportuno, que a análise em apreço deverá ser feita pelo Juízo da Execução Penal, atentando-se às especificidades do caso concreto17

De todo modo, malgrado se acredite que esta proposta esteja devidamente amparada em disposições legais e constitucionais, e, portanto, seja imediatamente aplicável, entende-se que a solução mais adequada cabe ao Poder Legislativo, com a devida e urgente instituição de lei sobre o tema. 

Por fim, pontua-se que esta proposta de reparação da violação de direitos evidentemente não almeja o descarte das políticas que intentam melhorar o sistema carcerário e prevenir que tais violações ocorram. Todavia, é necessário encarar a questão de maneira realista, compreendendo que, ao menos em um curto prazo, este cenário degradante de cumprimento de penas não aparenta estar próximo do fim, de modo que, além das medidas preventivas, é imprescindível que haja medidas compensatórias. 

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1  O STF, nos autos da ADPF 347/DF, reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. Outros casos de interesse no âmbito da Suprema Corte: RE 592.581/RS; RE 841.526/RS; RE 641320/RS; RE 580.252/MS. 

2 Casos citados na resolução da CIDH de 22 de novembro de 2018: Supreme Court of the United States, No. 09-1233, Edmund G. Brown Jr., Governor of California, et al., Appellants Vs. Marciano Plata et al. On Appeal from the United States District Courts for the Eastern District and the Northern; Cfr. Emergenza Carceri. Radici remote e recenti soluzioni normative, Atti del Convegno Teramo, 6 março 2014, a cura di Rosita Del Coco, Luca Marafioti e Nicoa Pisani, Torino, 2014. 

3 Semelhante resolução foi publicada em relação ao Complexo Penitenciário de Curado, em Pernambuco

4 Cinquenta e seis óbitos entre 2016 e o 1º trimestre de 2018. 

5 Segundo Diagnóstico Técnico apresentado pelo próprio Estado e mencionado nos pontos 48 e 49 da Resolução, verificou-se que "o IPPSC não dispõe de uma ala separada para pessoas idosas e LGBTI, e que nem todos os presos possuem colchões. Tampouco há suficiente distribuição de uniformes, calçados, roupa de cama e toalhas para o grande número de internos da unidade carcerária." Registrou-se, ainda, "que são insuficientes a incidência do sol e a ventilação cruzada nas celas", "que não há água quente disponível na unidade carcerária" e que não há "um plano de prevenção e combate de incêndios no Instituto". Por fim, nos pontos 51 e 52, identificou-se efetivo funcional aquém do necessário para atendimento das demandas das mais de três mil pessoas custodiadas no IPPSC (apenas nove inspetores por turno), bem como a "necessidade de adequação das instalações elétricas, hidráulicas e sanitárias" e "o risco de incêndio em virtude do cabeamento elétrico exposto", além de outros problemas estruturais. 

6 Concluiu-se que o cenário descrito acarretava as seguintes consequências: "i. atenção médica ínfima, com uma médica a cargo de mais de três mil presos, quando a OMS/OPAS considera que, no mínimo, deve haver 2,5 médicos por 1.000 habitantes para prestar os mais elementares serviços em matéria de saúde à população livre; ii. mortalidade superior à da população livre; iii. carência de informação acerca das causas de morte; iv. falta de espaços dignos para o descanso noturno, com superlotação em dormitórios, verificada in situ; v. insegurança física por falta de previsão de incêndios, em particular com colchões não resistentes ao fogo, verificada in situ; vi. insegurança pessoal e física decorrente da desproporção de pessoal em relação ao número de presos." 

7 Fez-se uma ressalva, contudo, aos acusados de crimes contra a vida, contra a integridade física ou crimes sexuais, que seriam analisados após uma perícia criminológica, nos termos estabelecidos na resolução. 

8 A tese firmada foi objeto do informativo de jurisprudência 701 do STJ.  

9 Sobre o tema, menciona-se o artigo "Compensação Penal por Penas ou Prisões Abusivas", de autoria do ilustre Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Rodrigo Duque Estrada Roig, bem como faz-se menção às obras nele referenciadas, especialmente as do ilustre professor Eugênio Raúl Zaffaroni. 

10 Referencia-se, aqui, o voto do excelentíssimo ministro Luís Roberto Barroso, proferido nos autos do RE 580.252/MS. 

11 Ver nota número 03. 

12 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Compensação Penal por penas ou Prisões Abusivas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 132/2017 | p. 331- 381 | Jun/2017. Pág. 2. 

13 Tradução livre. Trecho original: "al traducirse en un castigo más gravoso, debe ser objeto de reducción compensatoria, e incluso, de cancelación punitiva, ante supuestos de intensa desproporcionalidad y doble punición." Eugenio Raúl. et al. La medida cualitativa de prisión en el processo de ejecución de la pena. Programa de transferencia de resultados de la investigación. Buenos Aires: FD UBA, 2013. Pág. 5. 

14 Disponível aqui. Acesso em 20/8/2021. 

15 Como aspectos complementares, o quantitativo de funcionários suficiente para o número de custodiados, o abastecimento da unidade com itens básicos de higiene, fornecimento de vestimentas e alimentação adequada, atendimento médico especializado, condições de trabalho e estudo, dentre outros, poderão ser considerados nesta análise. 

16 Segundo levantamento feito pelo DEPEN entre janeiro e junho de 2020, a população privada de liberdade no Brasil era de 678.506 pessoas, havendo apenas 446.738 vagas disponíveis. Clique aqui.  Acesso em 31/7/2021. 

17 A título de exemplo, menciona-se o voto do Excelentíssimo Ministro Luís Roberto Barroso nos autos do RE nº 580.252, que sugeriu o estabelecimento do patamar máximo à proporção de um dia de remição para cada três dias de cumprimento de pena em condições degradantes e como patamar mínimo a proporção de um dia para cada sete, em analogia, respectivamente, aos patamares de remição previstos para trabalho/estudo e leitura, respectivamente. 

Matheus Borges Kauss Vellasco

Matheus Borges Kauss Vellasco

Advogado, graduado pela PUC-Rio. Especializado em Direito Penal Econômico e Teoria do Delito pela Universidade Castilla-La Mancha, Espanha. Mestrando em Direito Penal na UERJ. Sócio do Escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados.

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