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Além do hype

A tecnologia blockchain e os NFTs vão revolucionar os direitos autorais na próxima década.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Atualizado às 14:32

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Este não é um artigo para explicar ao leitor o que é um NFT (token não-fungível). Desde que as vendas de artes digitais atingiram somas milionárias no primeiro semestre de 2021, a essa altura do campeonato, esse tipo de informação pode ser encontrado em basicamente qualquer plataforma.

No entanto, aqui vamos nos debruçar sobre um exercício imaginativo nas proporções que a tecnologia blockchain associada a ativos digitais "tokenizáveis" (não-fungíveis) pode dar a relações contratuais que, embora já tenham um pé no mundo digital, ainda estão longe de atingir seu verdadeiro potencial sob a égide dos smartcontracts.

Especialmente para influenciadores, artistas e demais interessados na certificação da propriedade intelectual, os tokens se apresentam como uma verdadeira revolução. Certamente esta década será marcada pela migração dos conteúdos das plataformas de streaming para a blockchain, garantindo melhores remunerações aos geradores de conteúdo na web.

É preciso muita cautela nesse momento inicial que estamos vivendo, porém com a compreensão e visão acerca das capacidades latentes dessas novas tecnologias. O caminho para a monetização de criadores autênticos nunca esteve tão claro.

Nos últimos anos, testemunhamos uma rápida digitalização de processos e substituição do papel pelas transações digitais. Durante a pandemia do Covid-19, esse movimento se acelerou atingindo entidades públicas e serviços que há pouco tempo atrás se resumiam a um protocolo, uma fila na repartição e uma certificação do "carimbaço" de fé-pública.

Até mesmo documentos tradicionais, como a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículos (CRLV), se viram rapidamente substituídos por criptografias em QR codes que tornaram obsoleta toda uma indústria gráfica de tintas especiais, máquinas e equipamentos.

Tal transformação muda um padrão centenário, que se consolidou desde o século XVII, quando se passa a admitir a fé-pública como um elemento difuso. Nesse cenário, o Estado se coloca como vítima abstrata quando há ofensa às relações sociais. Ou seja, a relação civil afetada por uma falsificação é uma consequência secundária, pois o bem maior tutelado pelo Direito é o próprio rejunte social da credibilidade.

A confiança que os seres humanos tem um no outro, que está na nossa natureza política e social (o aristotélico zoon politikon), se transveste de "fé-pública", digna da maior proteção das esferas do Direito, não apenas nos acordos civis, mas também no âmbito penal. 

Em ultima ratio, é a espada do Estado a garantidora das relações sociais, seja a emissão de um documento, a transferência de uma propriedade ou na execução de um contrato entre particulares.

No entanto, enquanto a natureza do ser humano é a vida em sociedade, a condição da tecnologia é ser disruptiva. Elas surgem para mudar paradigmas e padrões concebidos por gerações, mesmo aqueles que já até mesmo esquecemos a origem.

Os smartcontracts substituem o Estado por um código de programação. As garantias, os prazos, as formas de execução e o próprio objeto pode ser inserido em simples (ou nem tão simples) linhas de código, tornando a espada obsoleta.

Porém, apesar de deter o monopólio do uso da força, por vezes o objeto tutelado escapa pelos dedos. Poucas áreas podem ser exemplos tão claros da incapacidade do Estado quanto à da proteção da propriedade intelectual. Ao passo que inovações e patentes demoram anos para obter a proteção estatal (ainda que precária) da invenção, direitos de autor são violados por contrafeitos e piratas que se inovam e renovam nas mais diversas plataformas, mais rápido do que qualquer capacidade de combatê-las.

Embora os NFTs não sejam a solução mágica para todos os problemas dessa indústria, a tecnologia em blockchain apresentará uma verdadeira revolução na área. Tal como os serviços de streaming modificaram a forma que consumimos produtos digitais, novas plataformas prometem tokenizar o seu conteúdo, favorecendo a distribuição de royalties não somente ao criador, mas também para investidores e - por que não - aos próprios consumidores.

É o caso da startup Royal. Segundo seus fundadores, JD Ross (@justindross) e Justin Blau (@3LAU), a plataforma tornará possível que artistas compartilhem os direitos autorais diretamente com sua base de fãs e dividam os royalties advindos desse apoio e dedicação, colocando os diversos "middlemen" da indústria fonográfica de escanteio.

Na primeira rodada de investimentos, a empresa levantou U$16M em aportes, mas o feito mais impressionante foi o lançamento tokenizado de um álbum pelo DJ 3LAU (co-fundador da Royal), atingindo U$11M em menos de 24 horas, a maior venda de NFT da história (até aquela data, em fevereiro de 2021).

Os valores que as vendas de NFTs atingem, mais do que demonstrar o tamanho de uma mania ou febre da internet, dão a dimensão dessa enorme caixa de ferramentas e seus enormes potenciais.

A queridinha dos adolescentes, TikTok, não está alheia a esse movimento. Em agosto deste ano, anunciou uma parceria com a plataforma Audius, abrindo para seus 732 milhões de (potenciais) usuários uma porta escancarada para a blockchain.

Lançada em outubro de 2020, a Audius oferece um serviço de streaming gratuito ao usuário, remunerando artistas que se destacam na plataforma através da sua criptomoeda própria ($AUDIO), a qual representa também um token de governança compartilhada. Quanto mais tokens um artista (ou investidor) tiver, maior será seu poder de decisão sobre os rumos da plataforma.

É difícil imaginar que gigantes como Apple, Netflix, YouTube e Spotify fiquem de fora desse movimento. Com sua natureza inovadora, essas empresas devem aderir rapidamente a um formato onde suas mensalidades nos serviços de assinatura também não precisarão mais ser divididos com distribuidoras e produtoras, podendo remunerar a base de artistas e fãs.

E não somente na remuneração os geradores de conteúdo deverão sentir os impactos, mas também no seu empoderamento na própria relação contratual. Muitas vezes renegado a um mero termo de aceitação de uso e condições de monetização que se alteram sem aviso prévio, os smartcontracts tem o potencial de sanar a hipossuficiência do artista em relação a plataforma, bem como participar da sua administração e governança.

Atualmente, na execução dos seus termos, a relação entre as partes (plataforma x artista) ainda se vale da espada do Estado. Porém, nessa nova alvorada tecnológica, as cláusulas acordadas entre as partes são para sempre programadas na blockchain e seus efeitos são auto-executáveis pela programação feita.

Apesar de todo o hype, cumpre certas ressalvas e cuidados. Ao passo que as negociações de NFTs é facilitada, os smartcontracts devem deixar claro para as partes envolvidas a extensão e os limites dos direitos adquiridos na transação, principalmente a fim de  preservar a percepção de royalties ao detentor dos direitos autorais, sob o risco de se perpetuar as perdas bilionárias que a indústria sofre com a pirataria.

As ferramentas disponíveis ainda devem apresentar certa evolução para que esse formato tome o mainstream de grandes artistas, especialmente no que tange a composição das altas taxas para operações na blockchain (estou falando de você, Ethereum) e o uso sustentável de energia elétrica para processamento dessas informações. 

Noutro lado, as agências reguladoras, órgãos normativos e principalmente legislativos, devem também fazer sua parte e oferecer condições para que essa inovação aconteça. Não se intrometer já seria um bom começo.

Mesmo assim, o curto-prazo parece promissor! Será que os "Netflix" de hoje repetirão a história "Blockbuster" ou os gigantes poderão guinar para acompanhar essa revolução?

Daniel Koch

Daniel Koch

Perito Criminal especialista em Documentoscopia Forense; Bacharel em Direito, Mestre em Gestão de Políticas Públicas e especialista em Direito Público; Professor na Academia de Polícia Civil (SC).

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