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Uma análise fática e jurídica acerca do instituto da cessão creditícia

A cessão de crédito, uma modalidade de transmissão obrigacional muito utilizada entre pessoas jurídicas, possui regulamentação em capítulo próprio no Código Civil, com regras básicas para que referido negócio jurídico seja considerado válido e eficaz.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Atualizado às 14:57

(Imagem: Arte Migalhas)

A cessão creditícia é um negócio jurídico contratual no qual uma das partes transfere o seu direito em relação a um crédito para terceira pessoa - essa não envolvida na transação inicial.

Nas palavras de Flavio Tartuce:

A cessão de crédito pode ser conceituada como um negócio jurídico bilateral ou sinalagmático, gratuito ou oneroso, pelo qual o credor, sujeito ativo de uma obrigação, transfere a outrem, no todo ou em parte, a sua posição na relação obrigacional. Aquele que realiza a cessão a outrem é denominado cedente. A pessoa que recebe o direito do credor é o cessionário, enquanto o devedor é denominado cedido.1

Ensina Silvio Rodrigues que:

A cessão de crédito é o negócio jurídico, em geral de caráter oneroso, através do qual o sujeito ativo de uma obrigação a transfere a terceiro, estranho ao negócio original, independentemente da anuência do devedor. O alienante toma o nome de cedente, o adquirente o de cessionário, e o devedor, sujeito passivo da obrigação, o de cedido.2

Em outros termos, o CEDENTE transfere ao CESSIONÁRIO seus direitos sobre determinado crédito, independentemente da anuência do SACADO (devedor).

A cessão creditícia, então, é estabelecida entre as seguintes partes:

  • O CEDENTE, que é o credor originário da transação e aliena seu respectivo crédito para terceiro;
  • O CESSIONÁRIO, que é o terceiro que adquire o crédito do CEDENTE e, consequentemente, torna-se o novo credor da dívida inicial; e
  • O SACADO, que é o devedor, e após a cessão creditícia deve realizar o pagamento do débito ao novo credor (CESSIONÁRIO).

Assim podemos exemplificar: Maria realizou a compra de todos os eletrodomésticos de sua casa nova na loja ABCD, gastando um total de R$20.000,00, tendo parcelado esse valor em 10x sem juros. A loja ABCD, por precisar da quantia total de forma mais célere, não estando disposta a esperar 10 meses, procurou a empresa ANTECIPE AQUI para conseguir o valor da compra da Maria naquele mesmo dia. Então, a loja ABCD cedeu o seu direito creditório de R$20.000,00 para a empresa ANTECIPE AQUI, que tornou-se a nova credora de Maria. Em outras palavras, agora a loja ABCD possui o valor - quase - integral instantaneamente, enquanto a empresa ANTECIPE AQUI receberá da Maria o valor de R$20.000,00 diluído em 10 meses, assim como anteriormente pactuado por ela na loja ABCD quando foi adquirir seus eletrodomésticos.

Sendo assim, verifica-se que:

a)    A loja ABCD é a cedente;

b)    A empresa ANTECIPE AQUI é a cessionária; e

c)    Maria é a devedora, também chamada de sacado.

Por fim, diz-se que a loja ABCD recebeu da empresa ANTECIPA AQUI o valor quase integral, pois é típico das operações de cessão creditícia um deságio (desconto) na compra do crédito. Então, no caso do exemplo acima, a Loja ABCD vendeu R$20.000,00 para a empresa ANTECIPA AQUI, que lhe pagou apenas R$18.000,00, sendo que, no futuro, receberá integralmente os R$20.000,00 de Maria.

Tal negócio jurídico é tutelado nos atigos 286 e seguintes do Código Civil.

Em regra, qualquer crédito pode ser cedido, exceto as hipóteses constantes no Artigo 286, quais sejam: (i) oposição decorrente da natureza da obrigação (exemplo: créditos derivados de obrigações personalíssimas); (ii) existência de vedação legal (exemplo: crédito decorrente de direito alimentício); e (iii) existência de convenção proibitiva de cessão creditícia:

Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

Destaca-se que, nos termos do artigo 287 do Código Civil, a cessão, em regra, abrange todos os acessórios do crédito alienado - como, por exemplo, juros e multas -, salvo disposição contrária:

Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.

Também é importante ressaltar que a cessão, a despeito de ser válida, é ineficaz em relação a terceiros se não for celebrada mediante instrumento público ou instrumento particular contendo a "indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do outorgante e do outorgado, a data e o objetivo da outorga com a designação e a extensão dos poderes conferidos", nos termos dos Artigos 288 e 654 do Código Civil:

Art. 288. É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1° do art. 654.

Inclusive, para resguardo do cessionário, além de todas as solenidades supracitadas, de rigor que conste no instrumento que o cedente se responsabiliza pela solvência do devedor, na hipótese de inadimplemento deste, já que, nos termos do Artigo 296 do Código Civil, o cedente não responde, salvo estipulação em contrário.

Quanto a este ponto, também para precaução do cessionário, o legislador preocupou-se em impor a responsabilidade do cedente sobre a existência do crédito cedido, evitando-se que o cessionário do direito seja prejudicado em eventuais golpes envolvendo a cessão de crédito. Essa é a redação do artigo 295 do Código Civil:

Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.

A legislação civilista também se preocupou em dispor acerca da necessidade de notificação do sacado, bem como sobre a possibilidade de cobrança pelo cessionário, estando tais temas dispostos entre os artigos 290 e 293 do Código Civil.

Acerca da cobrança do sacado pelo cessionário, dispõe o artigo 293 que, independentemente do conhecimento do devedor acerca da cessão creditícia, poderá o cessionário exercer os atos conservatórios do direito cedido - como cobrar o débito diretamente do devedor ou até mesmo incluir seus dados nos cadastros de proteção ao crédito:

Art. 293. Independentemente do conhecimento da cessão pelo devedor, pode o cessionário exercer os atos conservatórios do direito cedido.

Destaca-se que a despeito do teor do Artigo 293 supracitado, o artigo 290 dispõe, de maneira adversa, que "A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada".

Justamente em razão do quanto disposto no artigo 290 que não há prejuízo algum se o sacado realizar o pagamento ao antigo credor (cedente do direito), já que, por não ter sido notificado previamente, para todos os fins estava cumprindo a obrigação de forma correta. Tal permissivo está exposto na primeira parte do artigo 292 do Código Civil:

Art. 292. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pública, prevalecerá a prioridade da notificação.

Entretanto, apesar do artigo 290 coexistir com o artigo 292, é válido citar que a legislação pátria é munida de uma "incoerência" ao dispor que o cessionário pode cobrar o débito do sacado independentemente de seu conhecimento acerca da cessão (artigo 293), ao mesmo tempo que determina a ineficácia da cessão de crédito não notificada ao devedor (artigo 290).

Assim, tem-se que os temas e artigos acima abordados são necessários para um entendimento geral acerca do instituto da cessão creditícia, amplamente (e diariamente) utilizado para transmissão de direitos e obrigações.

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1 Manual de Direito Civil. Volume único. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Método, 2012. p. 380.

2 Direito Civil. 27ª ed. ver. atual. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 291.

Bruna Faria Henriques

Bruna Faria Henriques

Advogada civilista. Conciliadora e mediadora certificada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Integrante da Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa.

Natália Zavatta Fonseca

Natália Zavatta Fonseca

Advogada formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, atuante na área Cível em contencioso estratégico e massificado

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