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MITOdologia de pesquisa: o negacionista no banco dos réus

A ciência não está assentada apenas sobre o compromisso do experimentalismo. É uma atividade regulada por questões metodológicas, normas jurídicas e princípios éticos globais. Ignorá-los, portanto, representa um sério risco à sociedade.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Atualizado às 15:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 1979, Tom Beauchamp e James Childress publicaram a obra Principles of Biomedical Ethics (Princípios de Ética Biomédica), um texto que se tornou clássico da literatura bioética e foi responsável por apresentar reflexões acerca da relação entre o profissional e o paciente, os conflitos entre as exigências morais e o interesse pessoal dos pacientes, a centralidade dos julgamentos sobre a qualidade de vida, os conflitos nos estudos clínicos, o consentimento informado e, de forma peculiar, o tema das diretrizes que deveriam conduzir as políticas públicas. À época, Beauchamp e Childress estavam ligados à Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos de Pesquisa Biomédica e Comportamental, primeiro órgão público nacional a estabelecer a política de Bioética nos Estados Unidos e que, em 1978, produziu o Belmont Report (Relatório Belmont).    

O Relatório Belmont, reconhecimento internacionalmente como uma reação aos escândalos causados pelos experimentos médicos desde o início da Segunda Guerra Mundial, lançou luzes diante da crescente preocupação pública com o controle da pesquisa em seres humanos. Alguns fatos, obviamente, não apenas mobilizaram a opinião pública como também alertaram para a necessidade de um maior controle estatal no modo como as pesquisas estavam sendo conduzidas. Entre esses episódios fatais estão, por exemplo, aquele ocorrido no Hospital Israelita de Doenças Crônicas de Nova York, em 1963, no qual foram injetadas células cancerosas vivas em idosos doentes e, a partir de 1932, mas apenas descoberto e denunciado quarenta anos depois pelo New York Times, o caso Tuskegge, no qual 400 negros com sífilis foram recrutados pelo Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos (SPS) para que os pesquisadores avaliassem a história natural da doença, isto é, o percurso da patologia sem a intervenção medicamentosa.

Os vários escândalos que a Comissão do Relatório expôs foi suficiente para mostrar aos pesquisadores que a atividade científica deveria nortear seus experimentos a partir de princípios éticos básicos e globais, isto é, um enfoque que privilegiasse o respeito às pessoas (princípio da autonomia), a ponderação entre os benefícios e as vantagens (princípio da beneficência) e, não menos importante, a obrigação de não infligir dano intencionalmente (princípio da não-maleficência). É a partir da referida Declaração que, em 1979, os professores Beauchamp e Chidress construirão sua obra e, como principialistas notórios, argumentarão sobre a necessidade de submetermos a experiência com seres humanos à princípios medianos que possam ser compartilhados tanto pelo senso comum como pela reflexão filosófica. Neste sentido, os autores acrescentarão aos princípios do Relatório Belmont o princípio da justiça pois, como questionam, "seria a desigualdade no acesso um problema moral sério?". É por isso que "os procedimentos de seleção também devem salvar o maior número de vidas possível como os recursos disponíveis. Portanto, a 'utilidade médica' indica o uso eficaz e eficiente dos recursos médicos escassos" (Beuachamp, Childress, 2002, p.417).

A partir de então, a envergadura das reflexões bioéticas sobre a atividade de pesquisa envolvendo seres humanos caminhou e consolidou-se internacionalmente. Fazer ciência, portanto, deixou de ser apenas uma condução aleatória determinada pelas formalizações do próprio método e isso, consequentemente, mostrou que o cuidado com os pacientes e sujeitos da pesquisa deveria envolver a análise de riscos e benefícios. Assim, o enfrentamento dos dilemas morais biomédicos, de um modo geral, viu-se obrigado a considerar a ponderação dos agentes envolvidos e, por conseguinte, o respeito à diretrizes globais de assistência, à privacidade, à responsabilidade pública e às obrigações morais tanto dos profissionais da saúde como da sociedade em lidar com a satisfação dos doentes. O fato é que tudo isso, particularmente diante dos últimos escândalos amplamente noticiados no Brasil, parece ter sido ignorado pela atitude violenta e criminosa dos negacionistas. Mais uma vez, obscurantismo e irracionalidade, agora como uma espécie de acoplamento orgânico, reproduzem-se no interior do ambiente hospitalar propagando suas técnicas, selecionando exauridos corpos e impondo o covarde discurso de suas debilidades.

Embora as denúncias contra a operadora de saúde de São Paulo ainda estejam na fase de diligências, o que por si já deve ser considerado assombroso, a mitodologia negacionista parece ter chegado ao seu ápice: pacientes não informados das drogas que lhe eram administradas, familiares parcialmente orientados, prontuários adulterados, médicos coagidos, informações às agências reguladoras omitidas e, pasmem, informações fraudulentas nos próprios Atestados de Óbito. Não era suficiente negar a pandemia, atacar a ciência e prescrever drogas sem eficácia clínica comprovada. Era necessário ir além - exercitar todas as faces da necropolítica, isto é, o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. É claro que tudo isso só poderia ocorrer, assim como na literatura de Victor Frankenstein, do seguinte modo: "Se eu não posso provocar compaixão e amor, então, eu vou provocar o terror". 

Negacionistas, portanto, têm sua própria mitodologia de pesquisa: não confiam em dados ou modelos de projeção matemática; não estabelecem diferenças entre grupo controle e grupo experimental; negligenciam o consentimento dos pacientes na participação de suas pesquisas; selecionam apenas os dados que confirmam suas próprias convicções; evitam tornar os resultados de seus experimentos passíveis de testabilidade; aguardam a interferência de forças misteriosas e da providência divina durante os protocolos de suas intervenções; apostam em argumentos violentos e arbitrários como forma de convencimento e aceitação dos resultados; não exigem qualificação técnica entre seus membros; fomentam a opinião pública a rebelar-se contra a insuficiência dos resultados que não forneçam certezas absolutas e definitivas; empoderam-se no uso de medicamentos off label; a priori traçam estratégias complementares à pesquisa para diluir-se no anonimato caso seja demonstrado a falsidade de suas afirmações. Os negacionistas, assim, preferem optar pela má-fé ao condicionar-se a uma verdade desconfortável. Aliás, o negacionismo, como escreveu Luciana Rathsam no título de um brilhante ensaio, é a própria "virulência da ignorância".

Deste modo, não há nenhuma insanidade entre as atitudes criminosas praticadas pelos negacionistas em seus pacientes: suas atitudes não são culposas ou sem previsibilidade dos resultados, mas, ao contrário, confundem-se com a própria expressão de seu caráter. Deveríamos esperar que uma maçã, ao cair da macieira, transforme-se em laranja? Não! Assim como a probabilidade do exemplo anterior é nula, também não devemos esperar que negacionistas promovam outro círculo de virtudes que não aquelas das máscaras produzidas que já conhecemos. A densidade da podridão moral dos negacionistas exala, como sentimos, o odor de uma sociedade calcada e cultivada sobre o misticismo ou, então, naquilo que Carl Sagan denunciou, em O Mundo Assombrado pelos Demônios, como sendo "explicações pseudocientíficas e místicas".

A frase "Iremos iniciar o protocolo de hidroxicloroquina + azitromicina. Por favor, não informar o paciente ou familiar sobre a medicação nem sobre o programa" revela, por si mesma, as ferramentas da mitodologia que acabamos de enunciar. Ela é a prova escancarada de que negacionistas, mais cedo ou mais tarde, são capazes das maiores violências e atrocidades. Não há qualquer dúvida, portanto, de que estamos diante de casos mais abrangentes e diluídos daqueles encontrados pelo Relatório Belmont nos Estados Unidos. Aqui, resta-nos a literatura acadêmica como exercício racional e responsável diante do obscurantismo negacionosta. Em "Bioética em tempos de pandemia: Testes Clínicos com Cloroquina para tratamento de COVID-19", os professores Alcino Eduardo Bonella (UFU), Marcelo de Araújo (UERF) e Darlei Dall'Agnol (UFSC) discutem, por exemplo, a necessidade de que durante a pandemia "não se afrouxem os padrões científicos e normativos nas pesquisas sobre possíveis medicamentos, em especial a Cloroquina". Assim, apontam os autores de que não "parece moralmente adequado tratar pessoas sem o embasamento de pesquisas científicas, desenvolvidas de modo eticamente aceitável, ou usar medicamentos off label em caráter experimental, sem o devido acompanhamento médico" (p.3). A rápida testagem clínica realizada pelo negacionistas, entretanto, tem agravado a crise ao relaxar o rigor ético e substitui-lo pelo aproveitamento moral e científico diante da vulnerabilidade dos pacientes.

Há, portanto, uma literatura científica abundante quando consideramos a intersecção da pesquisa científica com questões de natureza ética. Aliás, é típico do modo de fazer ciência contemporâneo, exceto aos negacionistas, a não negligência de valores que tratem, por exemplo, os seres humanos sempre como fim em si mesmos. Por isso, seria até concebível dizer que a pandemia possa ser "usada politicamente não para derrotar o vírus, mas para tentar derrubar o presidente", mas jamais seria justificável dizer que a racionalidade científica deva violar a si mesma para politicamente sustentar um discurso negacionista. Não se quer, neste caso, mitigar a responsabilidade da ciência frente aos possíveis equívocos ou aos seus resultados insatisfatórios. Ocorre que ela, a ciência, não é dotada de má-fé e nem está obcecada a transpor suas crenças sobre as evidências. Talvez aqui, neste particular, seja possível visualizar o que os negacionistas esperam da ciência: ausência de parcialidade e desobrigação com a verdade.

O ataque fortuito à ciência, às pesquisadoras e pesquisadores e, por fim, a escusa ao método científico como um conjunto de regras básicas para conduzir os procedimentos científicos deveria significar, no contexto deste século, os elementos mais vis e abjetos que a racionalidade humana pôde experimentar. A mitodologia de pesquisa dos negacionistas recorda-nos, portanto, que as experiências médicas dos nazistas nunca foram totalmente extirpadas de nossas sociedades. Elas podem, a todo momento, insuflar-se de vida e, num instante, propagar-se culturalmente. Resta-nos, por consequência, denunciá-los e leva-los ao "banco dos réus" - da História e do Tribunal Penal Internacional.  

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Beauchamp, Tom L.; Childress, James F. Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Loyola, 2002.

Bonella, Alcino E.; Araújo, Marcelo de.; Dall'Agnol, Darlei. Bioética em tempos de pandemia: Testes clínicos com cloroquina para tratamento de COVID-19. In: Veritas - Revista de Filosofia da PUCRS, v.65, n.2, 2020, p.1-12.

 

Léo Peruzzo Júnior

Léo Peruzzo Júnior

Pós-Doutor em Filosofia (Università Ca´ Foscari, Venezia); Doutor em Filosofia (UFSC); Graduado e Mestre em Filosofia (PUCPR); Professor do PPGF-PUCPR, FAE e FAVI.

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