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O médico, o monstro e a improbidade administrativa

Alcir Moreno da Cruz e Mauro Borges

Esta era a maldição da humanidade: o fato desses dois ramos incongruentes estarem unidos com tanta força, que - nas agonizantes entranhas da consciência - estes gêmeos opostos lutavam continuamente entre si. Então, como dissociá-los?"

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Atualizado às 13:55

(Imagem: Arte Migalhas)

O escritor inglês Robert Louis Stevenson, em 1885, no clássico "O Médico e o Monstro: O Estranho Caso do Dr. Jeckyll e Mr. Hyde", antecipou-se ao psicanalista Sigmund Freud ao retratar as dimensões da personalidade humana em sua constante luta de forças contrárias: a dualidade do bem e do mal que convivem em cada um de nós, a noção do ser humano enquanto uma criatura complexa.

Essa dualidade, como não poderia deixar de ser, também está presente nas ações dos agentes públicos. Tal distinção ou fronteira precisava ser melhor compreendida ou delimitada, ao menos na prática das peças acusatórias, tanto no que concerne aos Processos Administrativos Disciplinares - PADs quanto aos libelos acusatórios das ações de Improbidade Administrativa.

É invariavelmente uma tarefa árdua enfrentar de maneira crítica, sem paixões, a Lei de Improbidade Administrativa, especialmente neste momento de mudanças legislativas no seu texto.

A despeito do instinto de sobrevivência dos agentes políticos, o fato é que a norma nunca foi uma unanimidade na doutrina, mormente porque a sua aplicação prática, não raras vezes, resulta em restrição aos direitos fundamentais.

Dizem que a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem em que é administrado. Por isso o emprego indiscriminado do conceito de improbidade para inúmeras condutas de agentes públicos, ainda que censuráveis, deve ser repensado, pois muitas situações não possuem reflexos imediatos na LIA tampouco nos estatutos dos servidores públicos, vez que dissociadas do exercício funcional.

Esse ímpeto acusatório estatal não auxilia na correta aplicação do instituto, pelo contrário, banaliza o diploma legal, como vem sendo apontado pela doutrina1, dando ensejo a reações que acabam por culminar em restrições no exercício da pretensão punitiva estatal.

O instituto da Improbidade Administrativa deve ser empregado contra agente público desonesto, corrupto, desleal enquanto essas condutas configurem deturpação da função pública. O mero argumento da independência das instancias não deve abrigar situações em que não há repercussões no campo de abrangência da Lei de improbidade ou nos estatutos dos servidores.

Referimo-nos especificamente neste texto quanto à correta aplicação do art. 132, IV da Lei 8.112/90 e do art. 11 da lei 8.429/92 nas hipóteses de condutas ilícitas ou reprováveis de servidores fora da esfera de atuação funcional.

Um exemplo contextualizará melhor o tema central deste artigo: imagine um servidor público que em sua folga furte remédios de uma farmácia. Tal conduta, mesmo desonesta e ilegal, não merece ser classificada como ímproba, na sua acepção jurídica, apenas porque se trata de servidor público. Diferentemente da hipótese na qual a conduta ilícita ocorre na farmácia do hospital em que o servidor exerce suas funções. Isso não significa que o agente, pelo fato de estar fora do ambiente da repartição pública, esteja blindado de incorrer em atos de improbidade.

Vejamos outra hipótese. Dessa feita, policiais comparecem a um evento festivo com veículo destinado a missão oficial, ingressam sem pagar, declararam-se policiais, manuseiam armas de fogo, saem do evento e passam a desferir tiros a esmo com armas pertencentes à União. Nesse caso não há como descaracterizar o malferimento dos princípios informadores da administração pública, uma vez que o servidor arrastou para o espaço privado a sua condição de agente do Estado.

É certo que em determinadas funções, como da área de segurança pública, a sociedade acaba por exigir do servidor, no meio privado, uma conduta irretocável, quase monástica, indene de pecados. Em vista disso, não se mostra suficiente para qualificar a improbidade o simples argumento de que, enquanto agente público, é defeso ao cidadão o cometimento de atos ilícitos no círculo privado. Vindica-se um liame da conduta indesejada com a função pública exercida, de modo a justificar a ação de improbidade ou a abertura de PAD.

Se a quase balzaquiana LIA proporcionou avanços importantes no combate à corrupção, conceitos abertos e imprecisos como os contidos no seu art. 11 também colaboraram para elastecer esse guarda-chuva de abstração, ao considerar improbidade administrativa contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições. Imperioso mais uma vez se distinguir a esfera pública do domínio privado.

O problema ganha contornos mais perigosos quando se verifica que a Administração Pública, em sede de Processo Administrativo Disciplinar, pode demitir servidor por improbidade administrativa, a despeito do ajuizamento de ação de improbidade pelo MP, pois a lei 8.429/92 não derrogou a lei 8.112/90.

Isso é particularmente perturbador no caso específico da improbidade porque "a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição" de acordo com a Súmula Vinculante nº 5 do STF.

Por outro lado, ao apreciar o tema 899 da repercussão geral acerca da prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário, o plenário do Excelsior STF entendeu que os processos, no âmbito do TCU, por se tratarem de atividade eminentemente administrativa, não avaliam os elementos subjetivos da culpa ou do dolo: 

o TCU não perquire nem culpa, nem dolo decorrentes de ato de improbidade administrativa, mas, simplesmente realiza o julgamento das contas à partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento. Ainda que franqueada a oportunidade de manifestação da outra parte, trata-se de atividade eminentemente administrativa, sem as garantias do devido processo legal. 

Ocorre que os PADs são igualmente processos administrativos que apuram, eventualmente, a improbidade administrativa e mesmo assim perquirem, ao menos formalmente, a presença de dolo e de culpa.

O recentíssimo verbete sumular 650 do STJ, por seu turno, apesar de refletir uma posição majoritária na jurisprudência da Corte Superior, exacerba ainda mais a questão e representa, a nosso sentir, verdadeira automação do Direito Administrativo Sancionador, pois sepulta o exame de eventual consideração das circunstâncias agravantes e atenuantes (dosimetria) de modo a se garantir o princípio da individualização na aplicação das penalidades administrativas, pois estipula que a "autoridade administrativa não dispõe de discricionariedade para aplicar ao servidor pena diversa de demissão quando caraterizadas as hipóteses previstas no artigo 132 da lei 8.112/90". Solapa-se também a finalidade ressocializadora ou pedagógica consubstanciada no brocardo latino punitur et ne peccetur (pune-se para que não mais peque) bem como os princípios da razoabilidade/proporcionalidade e da igualdade material, além de valores como a dignidade da pessoa humana.

A Corte Superior ao menos vem consolidando o entendimento de que é viável a revisão da dosimetria das sanções aplicadas em ação de improbidade administrativa quando, da leitura do acórdão recorrido, verificar-se a desproporcionalidade entre os atos praticados e as sanções impostas. Assim, entendemos que, embora seja vedado ao Poder Judiciário imiscuir-se no mérito do ato administrativo, nestes casos de perda do cargo ou função pública fundamentadas na aludida Súmula 650, seria importante a realização de controle de juridicidade por juízes, sob pena de se abrigarem situações de flagrantes injustiças e perseguições.

É certo que o art. 92, inciso I, alínea "a", do CP, prescreve que a pena privativa de liberdade por tempo ainda que inferior a quatro anos acarreta a perda da função pública, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública. Contudo, trata-se de condenação transitada em julgado em sede de processo criminal, na qual tais circunstâncias foram apuradas em processo no qual se observa a dosimetria e a individualização da pena. Vejamos um caso: 

roubo por policial militar deve ser caracterizado como uma infração gravíssima para com a Administração, a uma, em razão da relação de subordinação do policial àquela, a duas, porque é inerente às funções do policial militar coibir o roubo e reprimir a prática de crimes. Assim, correta a decisão de afastar dos quadros da polícia pessoa envolvida no crime de roubo, por ferir dever inerente à função de policial militar, pago pelo Estado justamente para combater o crime e resguardar a população. (REsp 665.472/MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 08/02/2010). 

Um aspecto adicional que acarreta incerteza na correta caracterização da improbidade é a dispensa de comprovação de intenção específica de violar princípios da administração pública, sendo suficiente o dolo genérico para as condutas do art. 11 da LIA (Resp 1.229.779/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, Dje 5.9.2011; Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma; AgInt no REsp 1.585.551/RN, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma). A Egrégia Corte Superior considera despicienda a demonstração de intenção, finalidade específica ou motivo, bastando a vontade de o agente praticar a conduta ilícita.

Ocorre que inúmeras condutas consideradas em desacordo com a estrita legalidade administrativa são dotadas de boa-fé e visam o alcance de resultados satisfatórios. Não foi por outro motivo que a LINDB, no seu art. 22, impôs, na interpretação de normas sobre gestão pública, sem prejuízo dos direitos dos administrados, a consideração dos obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo.

A questão central enfrentada neste texto foi levada ao STJ por meio do REsp 1943663 RJ 2021/0177138-8, porém, não se obteve uma decisão de mérito na Decisão Monocrática do Ministro Benedito Gonçalves, que entendeu pela incidência da Súmula 7 em face da necessidade de reincursão no contexto fático-probatório. Ainda assim, em seu voto, o relator destacou trechos oportunos do Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

Compulsando os autos, constata-se que a ré não se aproveitou de sua função pública para praticar o ato ímprobo, tampouco que tenha exercido suas funções junto ao serviço de cadastramento do Programa Bolsa Família ou que tenha aliciado os servidores municipais responsáveis por tal operação, com o fim de auferir vantagem, ou maliciosamente ser inserida no programa.

No caso vertente, o Município (...) não fez qualquer conexão direta ou indireta da função exercida por (...), como agente comunitária de saúde, para a prática do ato a coimado como ímprobo. Apenas pretende impor as graves sanções previstas na LIA, tão somente por ser servidora municipal. 

A despeito de alguns pontos desafiadores, o texto base da "Nova Lei de Improbidade" (PL 2.505/21) ao menos procura dar um contorno mais rígido ao art. 11 da lei 8.429/92 e no que alude ao tema em debate estatui acertadamente que: 

"O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas" (Art. 11, § 3º).

Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos. (Art. 11, § 5º). destacamos. 

Tal relevância já vinha sendo apontada pela doutrina não apenas aos casos de cominação de sanções de perda do cargo ou função pública: 

Não se confunde improbidade com a mera ilegalidade, ou com uma conduta que não segue os ditames do direito positivo. Assim fosse, a quase totalidade das irregularidades administrativas implicariam violação ao princípio da legalidade. (...) É necessário que venha um nível de gravidade maior, que se revela no ferimento de certos princípios e deveres, que sobressaem pela importância frente a outros, como se aproveitar da função ou do patrimônio público para obter vantagem pessoal, ou favorecer alguém, ou desprestigiar valores soberanos da Administração Pública2 

Destarte, o Direito Administrativo Sancionador sofreu notável impulso nos últimos tempos com vistas à humanização do jus puniendi no âmbito administrativo.

É preciso deixar o alerta que processamentos simplificadores tendem a reduzir ou a negligenciar os múltiplos aspectos da dicotomia presente nas condutas ilícitas do agente na sua esfera pública e no campo privado. A despeito de esse indivíduo, assim como o Dr. Henry Jekyll, seja a mesma figura "quando, abandonando toda a moderação, se atirava para os braços da desonra, ou quando, trabalhando à luz do dia, promovia a ciência para aliviar a dor e o sofrimento".

______________

1 DIPP, Gilson. CARNEIRO, Rafael. Banalização do conceito de improbidade administrativa é prejudicial a todos

2 RIZZARDO, Arnaldo: Ação Civil Pública e Ação de Improbidade Administrativa, GZ Editora, 2009, p. 350

Alcir Moreno da Cruz

Alcir Moreno da Cruz

Advogado no Moreno & Borges Advocacia, graduado em Direito pela FND/UFRJ e Especialista em Direito Administrativo pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

Mauro Borges

Mauro Borges

Advogado no Moreno & Borges Advocacia, foi Auditor do TCU por 25 anos, graduado em Direito pela UNIRIO e Especialista em Direito Administrativo pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

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