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Comentários sobre os projetos de lei para a alteração da lei da Ação Civil Pública

Os avanços propostos no projeto de lei 1.641/21 são relevantes e aguardados pela sociedade como um importante reforço à defesa dos direitos transindividuais, claro, mudanças que deverão ser implementadas com o longo e qualificado debate, a fim de que o sistema processual coletivo brasileiro se torne ainda mais efetivo.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Atualizado às 08:26

(Imagem: Arte Migalhas)

O microssistema da tutela coletiva no Brasil é regido, principalmente, pela lei da Ação Civil Pública (lei 7.347, de 24 de julho de 1985) e pela parte processual do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), legislação que, embora moderna e que trouxe importantes avanços na defesa dos direitos coletivos (sentido estrito), difusos e individuais homogêneos, muito se discute sobre a necessidade de reforma desse sistema. Claro, outras leis compõem esse microssistema (e.g., lei da Ação Popular, Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente), porém, aqui focamos nas propostas de alteração da lei da Ação Civil Pública.

Esse debate de aprimoramento do regramento dos processos coletivos no Brasil já é pauta há mais de uma década, o que se verifica não apenas pelas alterações da lei da Ação Civil Pública, mas também pelo Anteprojeto do que seria o Código Brasileiro de Processos Coletivos, apresentado em 2002 e retomado em 2009 como projeto de lei 5.139/2009, que pretendia, entre outros objetivos, a ampliação da legitimidade ativa para as ações coletivas, flexibilização dos procedimentos e dar maior eficácia à tutela jurisdicional. Projeto que não vingou.

Através da Portaria CNJ 152, de 30 de setembro de 2019, o ministro Dias Toffoli, com o intuito de promover o aprimoramento da legislação afeita à defesa de direitos difusos e coletivos, instituiu o grupo de trabalho perante o Conselho Nacional de Justiça que culminou na apresentação, em 2 de novembro de 2020, do Projeto de lei 4.778/20, para a criação de uma nova lei da Ação Civil Pública.

No entender do deputado Luiz Paulo Teixeira Ferreira, preocupado com o que seria, no seu entender, um retrocesso legislativo sobre o tema relegado ao microssistema do processo coletivo no país, antecipou-se ao grupo de trabalho do CNJ e apresentou o Projeto de lei 4441/20, em 2 de setembro de 2020, também não livre de críticas pela comunidade jurídica que via a oportunidade de uma verdadeira modernização do marco legal da tutela coletiva e, reunindo o Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBPD da melhor doutrina especializada, apresentou o Projeto de lei 1.641, de 29 de abril de 2021, chamado de Projeto de lei Ada Pellegrini Grinover.

O assunto é delicado. Uma leitura do projeto de lei 4.778/20 (projeto CNJ) transparece a tentativa de aprimorar a lei 7.347/85, eis que, avança em conceber prioridade como caso paradigma no processamento e afetação em incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (artigo 3º), possibilidade de ampliação de prazo para defesa (art. 12, "caput"), previsão de citação e notificação da agência reguladora cujo objeto da ação se refira à área por ela regulada (art. 12, §§1º e 2°), possibilidade de celebração de negócio jurídico processual, assim como já previsto no artigos 190 e seguintes do Código de Processo Civil (art. 13), impossibilidade da sentença se basear apenas nos fatos apurados em inquérito civil (art. 20), uso subsidiário de prova por amostragem ou estatística (artigo 23), eficácia da sentença e tutela provisória erga omnes e em todo território nacional (art. 27)1, preferência para as sentenças sejam líquidas (artigo 30) e remessa necessária independentemente do resultado (artigo 32).

Contudo, alguns dispositivos do projeto tem sido alvo de críticas, a exemplo das considerações do professor Antonio Gidi2, bem como dos professores Hugo Nigro Mazzilli e Kazuo Watanabe, em webinar realizada pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo3 e da Professora Patrícia Miranda Pizzol, no evento com o tema "A judicialização das Relações de Consumo", realizado pela Lawcademy em parceria com o escritório Morais Andrade, Leandrin, Molina4 em especial quanto à exigência de autorização em assembleia e capacidade econômica para ingresso de ação coletiva pelas associações, burocratizando e criando obstáculos à defesa dos direitos (art. 4º, III), exigência de desistência da ação individual para se valer do resultado da ação coletiva (art. 9º, parágrafo único), vedação de concessão de tutela antecipada em ação proposta por Associação antes da verificação judicial de sua representatividade (art. 10, §4º), a competência do foro da capital do Estado ou varas especializadas (art. 14) a formação da coisa julgada mesmo quando a Ação for julgada improcedente por falta de provas (art. 26, §1º) a não interrupção de prescrição da ação civil pública para a propositura das ações individuais (art. 26, §4º) e mudança das regras de sucumbência (art. 35).

Já o projeto de lei 4.441/20 buscou solucionar algumas das questões acima apontadas, trazendo, e.g. regras adequadas de competência, possibilitando o controle de competência de ofício pelos juízes e escolha pela competência adequada do foro que puder conduzir o processo com maior efetividade (art. 7º), a interrupção da prescrição das ações individuais quando proposta a ação civil pública (art. 15), suspensão dos processos individuais, não exigindo a desistência dessas demandas, tão somente a suspensão (art. 16, §º), bem como inovando no regramento detalhado do inquérito civil (arts. 26)e no sistema de reparação fluída (art. 43) e criação de fundos e sistema de controle (art. 45 e seguintes).

Não livre de discordâncias da comunidade jurídica, o PL 4.441/20 mantém a exigência de capacidade financeira das associações (art. 6, §2º, II). Impõe ainda este projeto a coisa julgada mesmo em casos de improcedência por insuficiência de provas e torna dificultosa a propositura de nova demanda contra os mesmos eventos danosos (art. 25, §1º).

Já o projeto "Ada Pellegrini Grinover" apresentado como substitutivo ao PL 4.441/20, traz consideráveis avanços à atual lei vigente, mantendo os benefícios obtidos na construção legislativa que surgiu após 1985 (em especial com o avanço promovido pelo Código de Defesa do Consumidor e pela própria Constituição Federal), bem como se aproveitando da construção jurisprudencial a respeito do processo coletivo e suas garantias. Sem a pretensão de destrinchar todos os aspectos envolvidos, alguns pontos merecem destaque para melhor confrontar o projeto de lei 1.641/21 à lei vigente e aos outros projetos de lei em tramitação.

O texto do PL 1.641/21 inicia com uma importante descrição dos princípios que devem reger o processo coletivo brasileiro e a definição do que irá considerar como direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Já no artigo 4º, ao contrário do atual artigo 1º, parágrafo único, da lei 7.347/85, há a ampliação do rol de direitos a servirem de objeto à ação civil pública, prevendo no inciso II, do artigo 4º, do Projeto do IBDP, que esse instrumento processual servirá para a "prevenção ou a reparação de qualquer outro direito difuso, coletivo ou individual homogêneo de qualquer natureza".

Em seu artigo 7º, quando trata dos legitimados das associações para a propositura da ação civil pública, define que a atuação prescinde de prévia autorização estatutária e, mesmo quando esclarece os critérios para a adequação da representação desses entes (credibilidade, histórico, conduta, pertinência, tempo de representatividade e finalidade institucional) relativiza os requisitos em caso de manifesto interesse social, qualificando e aperfeiçoando a defesa dos direitos transindividuais por estas entidades, cuja participação ainda é acanhada.

As regras de fixação de competência estão previstas nos artigos 8º a 10, definindo como competente o foro do local do dano, ou, quando o dano ocorrer em várias comarcas, o foro com melhor estrutura, capital do Estado quando esta for atingida, ou Distrito Federal, quando houver extensão a mais de um Estado ou houver dimensão nacional. Assim como no artigo 7°, §2º, do projeto 4441/20, também há previsão da competência adequada do foro com maior estrutura, contudo, quando houver conflito de competência, ao contrário do PL 4441/20 que possibilitava a análise da competência adequada em qualquer circunstância.

Com relação à interrupção da prescrição, o artigo 18 não apenas define que a ação civil pública interrompe a prescrição para pretensões coletivas e individuais relacionados aos mesmos fatos, mas também apresenta detalhes de como a prescrição será computada e casos de imprescritibilidade.

Mantém o PL 1641/21, em seu artigo 32, o efeito de coisa julgada erga omnes, ultra partes e em todo território nacional, e, muito embora mantenha a previsão de coisa julgada em caso de improcedência por falta de prova, há uma facilitação em nova propositura de ação com fundamento em prova não considerada em demanda anterior e que possa reverter a improcedência, ou seja, não se exige a demonstração de impossibilidade de produção da prova, conforme preveem os PL 4.441/20 e 4.778/20. Com a redação do projeto do IBDP, a prova poderia até mesmo já ter sido produzida e constar nos autos julgados improcedentes, contudo, se não considerada e puder reverter a improcedência, permitirá a repropositura da ação pelo legitimado.

Vale destacar, ainda sobre a coisa julgada na ação civil pública, que em caso de decisão favorável à coletividade, o processo individual, antes suspenso, converte-se automaticamente em processo de liquidação e execução (art. 32, §5º).

Um ponto de destaque ao PL 1.641/21 é o estímulo dado à autocomposição, como se verifica nos artigos 14,II, 15, 22,§4°, bem como no capítulo "Da Autocomposição Coletiva" que, nos artigos 37 a 43, apresentam os princípios que devem nortear as partes e o julgador, assim como os mecanismos para o melhor atendimento dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, todos passíveis de se atingir uma solução consensual, e, quando tratar-se de direitos indisponíveis, obrigatória a homologação pelo juiz e intervenção do Ministério Público.

Por fim, destacamos as previsões do capítulo VI do PL 1.641/21 intitulado "Da conversão da Ação Individual em Ação Coletiva", que nada mais representa do que a tentativa de reviver artigo vetado do novo Código de Processo Civil, que pretendia a conversão de ações individuais em coletivas quando houvesse relevância social e dificuldade de formação de litisconsórcio5.

Vale dizer que o veto considerou o risco de falta de critérios e exigiria regramento próprio para garantia da eficácia plena, ou seja, não se afastou a importância e interesse no dispositivo, indicando que a lei de Ação Civil Pública é o instrumento adequado para tais previsões.

Os avanços propostos no projeto de lei 1.641/21 são relevantes e aguardados pela sociedade como um importante reforço à defesa dos direitos transindividuais, claro, mudanças que deverão ser implementadas com o longo e qualificado debate, a fim de que o sistema processual coletivo brasileiro se torne ainda mais efetivo, acessível e continue sendo referência para outros ordenamentos.

_____________

1 O que não chega a ser um avanço, eis que o artigo 16, da lei 7.347/85 (com redação dada pela lei 9.494/97) foi declarado inconstitucional pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RE 1101937/SP, reconhecendo os efeitos da sentença em território nacional.

2 GIDI, Antonio, O Projeto CNJ de Lei de Ação Civil Pública. Avanços, inutilidades, imprecisões e retrocessos: a decadência das ações coletivas no Brasil, em https://civilprocedurereview.com/br/editions/o-projeto-cnj-de-lei-de-acao-civil-publica-avancos-inutilidades-imprecisoes-e-retrocessos-a-decadencia-das-acoes-letivas-no-brasil1-antonio-gidi , acesso do dia 20/10/2021.

3 Webinar - Debates dos projetos de lei sobre ação civil pública, Dia I, em https://www.youtube.com/watch?v=qwp3y3X6It4&t=7140s, acesso do dia 20/10/2021.

4 Temas Relevantes de Direito do Consumidor para Gestores Jurídico, Encontro 2 - A judicialização das Relações de Consumo, em https://www.youtube.com/watch?v=JdobN7fLQ3w, acesso do dia 20/10/2021.

5 Segue o texto dos artigos vetados no Novo Código de Processo Civil:

Art. 333. Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que:

I - tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim entendidos aqueles definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade;

II - tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo.

§ 1º Além do Ministério Público e da Defensoria Pública, podem requerer a conversão os legitimados referidos no art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, e no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).

§ 2º A conversão não pode implicar a formação de processo coletivo para a tutela de direitos individuais homogêneos.

§ 3o Não se admite a conversão, ainda, se:

I - já iniciada, no processo individual, a audiência de instrução e julgamento; ou

II - houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto; ou

III - o juízo não tiver competência para o processo coletivo que seria formado.

§ 4º Determinada a conversão, o juiz intimará o autor do requerimento para que, no prazo fixado, adite ou emende a petição inicial, para adaptá-la à tutela coletiva.

§ 5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação do réu para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias.

§ 6º O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do legitimado para condução do processo coletivo.

§ 7º O autor originário não é responsável por nenhuma despesa processual decorrente da conversão do processo individual em coletivo."

§ 8º Após a conversão, observar-se-ão as regras do processo coletivo.

§ 9º A conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de natureza estritamente individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-se-á em autos apartados.

§ 10. O Ministério Público deverá ser ouvido sobre o requerimento previsto no caput, salvo quando ele próprio o houver formulado."

"Art. 1.015 (...)

XII - conversão da ação individual em ação coletiva;"  

 

José Luís Dias Ribeiro da Rocha Frota

José Luís Dias Ribeiro da Rocha Frota

Membro da Comissão de Direito Marítimo e Portuário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP). Pós-graduado em Direito Processual Civil e pós-graduando em Direito Marítimo e Portuário. Advogado da banca do Morais Andrade Leandrin Molina Advogados.

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