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Elementos de conformação da autonomia técnica do advogado público

A compreensão adequada a respeito da autonomia técnica do advogado público é essencial para a consolidação de uma cultura de moralidade, isonomia e segurança jurídica na Administração Pública.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Atualizado às 13:29

(Imagem: Arte Migalhas)

Este breve ensaio tem por finalidade abordar quais garantias devem ser asseguradas aos advogados públicos como condição para a concretização da sua autonomia técnica. A advocacia pública é um instrumento fundamental para o funcionamento do Estado. Os advogados públicos atuam na consultoria e representação judicial e extrajudicial das pessoas jurídicas de direito público, elaborando pareceres, despachos, promoções e peças processuais, no intuito de promover o interesse público.

Diogo de Figueiredo assevera que a Advocacia Pública integra, ao lado da Magistratura e do Ministério Público, um "bloco de funções públicas autônomas, independentes e destacadas das estruturas dos três Poderes do Estado, denominadas funções essenciais à justiça".1 Figueiredo subdivide a advocacia pública em três categorias: (a) advocacia da sociedade, destinada à atuação do Ministério Público (CF, art. 127); (b) advocacia de Estado, relativa à representação judicial e consultoria jurídica das pessoas jurídicas de direito público; (c) e advocacia dos hipossuficientes, confiada à atuação da Defensoria Pública (CF, art. 134). Este artigo abordará a questão atinente à autonomia técnica que deve ser assegurada aos membros da intitulada Advocacia de Estado.

Sobreleva ressaltar que, apesar de gozar de estatura constitucional (art. 132 da CRFB/88), a advocacia pública é, ainda, uma carreira em fase de consolidação no Brasil. Um dos fatores que evidencia a necessidade de avanço das garantias da carreira é o silêncio da Carta Magna a respeito dos advogados públicos municipais na Seção dedicada à Advocacia Pública, não obstante haver, atualmente, 5.570 municípios no Brasil2.

Além disso, mesmo quando a Carta Magna se refere à Advocacia-Geral da União (art. 131 da CRFB/88) e aos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (art. 132 CRFB/88), ela é tímida quanto à previsão de garantias e princípios institucionais. O constituinte apenas descreve as atribuições principais de tais agentes públicos (atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo), fixa a forma de ingresso na carreira (concurso público de provas e títulos) e assegura estabilidade após três anos de efetivo exercício no cargo.

Nenhuma menção há, por exemplo, às garantias e prerrogativas da advocacia pública, ao contrário do que ocorre com as demais carreiras que integram as denominadas funções essenciais à justiça (vide os arts. 95, 127, §2º, 128, §5º, I, e 134, §1º, da CRFB/88).

Com efeito, a atuação do advogado público é indispensável para a conformação e afirmação do interesse público e dos direitos fundamentais. Conformação, porque o advogado público, ao agir de forma técnica e independente, sem pressões ou ingerências externas não republicanas, estabelece as balizas e parâmetros jurídicos dentro dos quais o gestor público pode agir, consignando em suas manifestações quais condutas são seguramente permitidas (zona de certeza positiva) e quais são explicitamente vedadas pelo ordenamento jurídico (zona de certeza negativa).

Ademais, a autonomia técnica é elemento de afirmação do interesse público. Ou seja, os advogados públicos investidos dessa garantia terão condições efetivas de sustentar o seu posicionamento técnico perante o administrador público, a sociedade e os órgãos de controle (Poder Judiciário e Tribunais de Contas), sem o temor de serem indevidamente penalizados por suas manifestações e opiniões.

Outrossim, a autonomia técnica possibilita o exercício da função sem que o poder de influência política e econômica das partes interessadas interfira na atuação do(a) advogado(a) público(a), forjando no seio dos órgãos públicos uma cultura de respeito à isonomia, à impessoalidade e à segurança jurídica, pois onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito (ubi eadem ratio, ibi eadem jus).

Dito isso, faz-se mister elencar, resumidamente, quais garantias são essenciais à concretização da autonomia técnica dos procuradores públicos.

a) Obrigatoriedade de criação de órgão autônomo de representação judicial e consultoria jurídica. Embora as Procuradorias sejam órgãos inseridos na estrutura do Poder Executivo, é recomendável que a Administração Pública institua órgão específico de representação judicial e consultoria jurídica, evitando-se a inserção dos advogados públicos na estrutura de órgãos estranhos à Advocacia Pública (Secretaria de Governo, Secretaria de Administração etc.). Não se quer afirmar, com isso, que os Procuradores Públicos não podem exercer as suas funções em tais órgãos, o que é, inclusive, trivial na rotina administrativa. Contudo, os advogados públicos devem atuar nos referidos órgãos por designação da Procuradoria-Geral, ainda que precedida de solicitação do Chefe do Poder Executivo.

b) Ausência de vinculação técnica e hierárquica a órgão não jurídico. Advogados Públicos, dada a natureza eminentemente técnica do seu mister, não podem estar submetidos técnica ou hierarquicamente a órgão não jurídico, sob pena de ter a sua atuação funcional dirigida por pessoa que sequer possui habilitação para o exercício do cargo. Logo, deve ser rechaçada a hipótese de submissão técnica ou hierárquica de tais agentes públicos a secretários estaduais, municipais e demais dirigentes de órgãos estranhos à estrutura da Advocacia Pública. Este, aliás, é o entendimento do TCE-RJ a respeito do tema (vide decisão proferida no processo TCE 225.221-8/17).

c) Independência técnica. A independência técnica consubstancia a possibilidade de "formar um juízo pessoal e próprio, por suas razões, convicções e conhecimentos acerca de determinada questão jurídica", conforme assevera Araújo Castro3. Ou seja, o advogado deve gozar de liberdade para construir a sua opinio iuris e a sua estratégia de atuação em processos administrativos e judiciais, sem que seja molestado para adotar tal ou qual posicionamento, em virtude de interesses pessoais, políticos ou econômicos das partes interessadas.

A independência técnica do advogado é garantida pela cláusula de inviolabilidade prevista no art. 133 da Carta Magna, que prescreve que o profissional da advocacia é "inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". No mesmo sentido, os arts. 18 e 31, §1º e 2º, do Estatuto da OAB garantem independência ao advogado no exercício da sua profissão, estatuindo, inclusive, que "nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão".

Cabe destacar, contudo, que a atuação do advogado público deverá ser voltada à promoção dos interesses da pessoa jurídica que representa. Não cabe ao procurador, por exemplo, adotar posicionamentos isolados ou heterodoxos, contrários ao interesse do ente público, por mera questão de convicção pessoal, pois o seu papel institucional é orientar tecnicamente o percurso de atuação dos agentes públicos, abstendo-se de substituir as escolhas legítimas do administrador pelas suas, em razão da legitimidade democrática que repousa sobre os atos tomados pelos mandatários do povo.

d) Exclusividade das atividades de representação judicial e consultoria jurídica por servidores de carreira, salvo nos casos do Procurador(a)-Geral ou o seu substituto. As atividades desenvolvidas pelo advogado público, repita-se, conformam o interesse público. Os procuradores públicos são corriqueiramente instados a se manifestar em processos administrativos e judiciais que envolvem interesses sensíveis de agentes políticos e organizações econômicas que gozam de certa influência junto ao Poder Público. Desse modo, uma das formas de se garantir uma atuação indene a pressões desta natureza é reservar a servidores efetivos, com estabilidade, a atividade de consultoria jurídica e representação judicial das pessoas jurídicas de direito público, sem prejuízo da possibilidade de o Chefe do Poder Executivo indicar os profissionais que irão ocupar os cargos de chefia (Procurador-Geral e o seu substituto), direção e assessoramento, em harmonia com o preceituado pelo art. 37, V, da CRFB/88.

Isto porque a fragilidade do vínculo jurídico que é própria dos cargos temporários ou demissíveis ad nutum pode limitar a autonomia técnica dos referidos profissionais de advocacia. Evidentemente, nem sempre a estabilidade do cargo reflete uma atuação técnica, proba e autônoma por parte do procurador púbico. Merece menção honrosa o fato de haver servidores temporários e comissionados que, mesmo diante da fragilidade do seu vínculo funcional, não dobram a sua ética profissional aos apelos não republicanos de determinados agentes políticos. Todavia, não se pode conceber que os órgãos de Advocacia de Estado sejam inteiramente desprovidos de servidores efetivos, como ocorre em diversos municípios brasileiros4.

e) Estabilidade qualificada aos advogados públicos. A estabilidade qualificada deverá se diferenciar da tradicional por vedar a aplicação de sanções disciplinares ao procurador público sem a prévia manifestação do colegiado responsável pela apuração de faltas funcionais no respectivo órgão de Advocacia Pública, que deverá ser composto por membros da carreira (Corregedoria, por exemplo). Aliás, é razoável sustentar que a estabilidade qualificada deve garantida a qualquer agente público que exerça funções de fiscalização e controle no seio da Administração Pública (auditores fiscais, fiscais ambientais, controladores internos etc.).

f) Autonomia administrativa. A autonomia administrativa é condição indispensável para a concretização da autonomia técnica. Deve-se garantir ao órgão de Advocacia Pública a possibilidade de definir a sua estrutura administrativa, conduzir concursos públicos, bem como proceder à avaliação funcional dos seus membros. Em importante precedente sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu que procuradores municipais devem ser avaliados por membros da própria carreira. Na ocasião, a Corte afirmou que a "advocacia pública municipal se enquadra, para todos os fins, na categoria da advocacia pública, equiparando-se às procuradorias estaduais e federais no que se refere às prerrogativas da classe".5

g) Garantia de remuneração compatível com as atribuições e responsabilidades do cargo. Uma das formas de se garantir dignidade aos servidores públicos é o estabelecimento de remuneração compatível com as responsabilidades do cargo. Obviamente, a fixação dos vencimentos dos servidores públicos depende de lei específica de cada ente federativo (art. 37, X, da CRFB/88). No entanto, a ausência de mecanismos assecuratórios de dignidade remuneratória reflete no baixo interesse na ocupação de cargos efetivos em determinados entes públicos; ou, por vezes, transforma tais cargos em meros "trampolins" para outras carreiras jurídicas, vulnerando, por via transversa, o próprio interesse público. Afinal, a baixa remuneração e a ausência de estrutura mínima de trabalho provocam um nível indesejável de rotatividade nessas carreiras, impedindo que órgão construa uma espécie de musculatura institucional, vez que os profissionais que ali atuam não conseguem estabelecer uma relação sólida de identidade com a carreira.

Ademais, a ausência de estrutura institucional ocasiona prejuízos ao bom desempenho das atribuições do advogado público, comprometendo o cumprimento de metas e resultados; não por incompetência ou desídia do membro da carreira, mas por ausência de recursos materiais e humanos que garantam uma atuação genuinamente técnica do advogado público. Na verdade, o alcance da excelência técnica está, em regra, diretamente relacionado com a estrutura de trabalho proporcionada pelos órgãos públicos aos seus servidores.

h) Inviolabilidade quanto aos atos praticados no exercício das suas funções. A inviolabilidade do advogado público pelos atos que pratica deve ser garantida, sobretudo, pelos órgãos de controle. Não raro, advogados públicos são demandados em ações judiciais pelo simples fato de terem opinado em processos administrativos. É preciso ressaltar que a responsabilização do advogado público deve ser amparada em elementos fáticos que revelem dolo ou erro grosseiro em sua atuação, pois o mesmo não possui poder decisório, e exerce atividade meramente opinativa no seio da Administração Pública. Nem mesmo quando o parecer jurídico é obrigatório (procedimentos licitatórios, p. ex.) deve-se dispensar a análise do elemento subjetivo para que haja a responsabilização do advogado público, pois o parecer obrigatório não substitui o ato administrativo, visto que o gestor público poderá, inclusive, decidir motivadamente de forma diversa da indicada no parecer.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal possui precedentes indicando que a responsabilidade do parecerista é proporcional ao seu efetivo poder de decisão na formação do ato administrativo, vez que o assessoramento jurídico possui caráter eminentemente técnico-opinativo. Assim, "a diversidade de interpretações possíveis diante de um mesmo quadro fundamenta a garantia constitucional da inviolabilidade do advogado"6. A título de reforço, o art. 28 da LINDB estabelece que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

Sobre o tema, ao julgar ação de improbidade administrativa movida em face de Procurador que lavrou parecer em procedimento licitatório, o TJERJ concluiu que a responsabilização do advogado público exige a demonstração do elemento subjetivo. Na ocasião, ao recorrer às lições de José Vicente Santos7, o TJERJ rejeitou a condenação do parecerista, pois não restou comprovado um erro evidente do profissional8; erro este que não deve ser confundido com desconhecimento ou incompetência.

Portanto, a garantia da inviolabilidade instrumentaliza a atuação técnica do advogado público, pois blinda o profissional de boa-fé de ser indevidamente responsabilizado quando não comprovada a existência de dolo ou erro grosseiro, afastando-se eventual aplicação de penalidade por meros erros formais ou equívocos interpretativos a respeito da norma jurídica aplicável ao caso.

Em suma, é possível concluir que a autonomia técnica do advogado público está intimamente relacionada à consecução do interesse público, sendo elemento indispensável à concretização dos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade. Por esta razão, seria importante o constituinte inserir no texto constitucional um rol mínimo de prerrogativas da carreira, reservando ao Congresso Nacional a competência de estabelecer, em lei nacional, os direitos, deveres, garantias e prerrogativas mínimas da advocacia pública, sem prejuízo da autonomia política e administrativa conferida aos entes federativos (art. 18 da CRFB/88) para regulamentar o tema, de acordo com as suas peculiaridades locais e regionais.

De toda forma, enquanto os avanços legislativos e estruturais não ocorrem, é preciso que se consolide na tradição jurídica uma cultura de respeito à atuação técnica dos advogados públicos, profissionais que, a despeito dos desafios que enfrentam, têm demonstrado cotidianamente o seu valor para a consolidação dos valores democráticos e dos direitos fundamentais no Brasil.

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1 Moreira Neto, Diogo de Figueiredo Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 16. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro. Forense, 2014.

2 IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Panorama das cidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Acesso em 20 out. 2021.

3 CASTRO, Adelmario Araújo. Os contornos da independência técnica do advogado público. Acesso em 24/10/2021, às 11h.

4 De acordo com o "1º diagnóstico da Advocacia Pública Municipal no Brasil", 65,6 % dos municípios brasileiros não contam com Procuradores efetivos em seu quadro de pessoal. MENDONÇA, Clarice Corrêa de; VIEIRA, Raphael Diógenes Serafim; PORTO, Nathália França Figuerêdo. 1º Diagnóstico da Advocacia Pública Municipal no Brasil. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum; Herkenhoff & Prates, 2018.

5 ARE 1.311.066. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 1º/10/2021. Publicação: 5/10/2021.

6 MS 35196 Agr. Relator(a): Luiz Fux. Primeira Turma, julgado em 12/11/2019, processo eletrônico Dje-022. Publicação em 05-02-2020.

7 MENDONÇA, José Vicente Santos de. A responsabilidade pessoal do parecerista público em quatro standards. Rev. Dir. Proc. Geral, Rio de Janeiro, v. 64. p. 166-182.  2009.

8 Apelação 0041312-18.2010.8.19.0028. Relator Des. Francisco de Assis Pessanha Filho. Décima Quarta Câmara Cível do TJERJ. Julgamento em 15/4/2020. Data de Publicação: 17/4/2020.

Isaque Vieira de Moraes

Isaque Vieira de Moraes

Procurador do Município de Paraíba do Sul-RJ e advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Direito Constitucional pela UCAM.

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