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O direito à desconexão ameaçado pela cobrança de metas por whatsapp

Thassya Prado e Leticia Leite

No Brasil será necessária a criação de uma lei ou as relações do trabalho serão, de fato, transformadas? O empregador entenderá a necessidade e a importância da desconexão do trabalho ou a saúde mental do funcionário continuará sendo negligenciada? É tempo de mudança.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Atualizado às 09:03

(Imagem: Arte Migalhas)

O título do artigo não está errado. O whatsapp pode ser uma grande ferramenta no mundo corporativo. Entretanto, a sua utilização sem regras poderá ocasionar a violação do direito à desconexão, que é o direito do trabalhador de usufruir dos descansos sem ter, desta forma, qualquer contato com o trabalho, ou seja, direito de se desconectar, totalmente, dos seus serviços.

No Tribunal Superior do Trabalho já é possível constatar diversas decisões condenando empresas em danos morais por dano existencial, resultado da violação do direito à desconexão. Inclusive, essa matéria já foi tema de destaque nas notícias do Tribunal1:

"Até que ponto as novas ferramentas de comunicação podem ser usadas para contatar um empregado? O trabalhador pode ser acionado pela empresa habitualmente fora do horário de trabalho? Cobranças via mensagem, ligações ou e-mails não podem atrapalhar o período de folga do servidor. Essa conexão mental sem descanso pode gerar transtornos mentais e prejudicar relações sociais do indivíduo. O direito de desconexão garante que o empregado não fique sobrecarregado e possa executar outras tarefas fora do seu horário de expediente."

A organização/empregador deve estabelecer quais são os limites, seja por meio de treinamentos corporativos, políticas internas e, até mesmo, disposição no regulamento interno. Inclusive, importante salientar a lei francesa instituída em 2017 com o objetivo de proporcionar aos funcionários de uma empresa o direito à desconexão do trabalho, evitando, assim, o esgotamento profissional e o dano existencial. A lei foi apelidada de "direito de se desconectar" e determina que empresas com mais de cinquenta funcionários serão obrigadas a elaborar uma carta de boa conduta estabelecendo quais são os horários fora da jornada de trabalho, quando será proibido enviar ou responder e-mails e mensagens profissionais.

O direito à desconexão está diretamente relacionado com a Síndrome de Burnout. A Síndrome do Esgotamento Profissional é definida como um estado físico e mental de profunda extenuação e exposição significativa a situações de alta demanda emocional no ambiente de trabalho. É um tipo de estresse que se dá no contexto do trabalho, podendo ser caracterizado por três dimensões: esgotamento, aumento de distância mental do emprego e redução da eficácia profissional - refere-se, especificamente, a fenômenos no contexto ocupacional.

A falta de regulamentação e bom senso no uso das tecnologias, principalmente, aplicativos de mensagens instantâneas resulta em uma subordinação contínua e uma disponibilidade diuturna, criando uma "escravidão psicológica"2. Na França houve a regulamentação do uso de dispositivos e aplicativos para preservar a saúde humana frente aos novos cenários, evitando o trabalho sem qualquer freio, ou seja, mitigando direitos sociais constitucionalmente assegurados.

O judiciário brasileiro já tem discutido a temática. Inclusive, importante destacar o entendimento do I. Ministro Alexandre Agra Belmonte no processo TST-RR-10377-55.2017.5.03.0186 que acaba, de uma vez, com a desculpa de que não havia a necessidade de resposta, veja-se:

"Se não era para responder, por que mandou o WhatsApp? Mandou a mensagem para qual finalidade? Se não era para responder, deixasse para o dia seguinte. Para que mandar mensagem fora do horário de trabalho? Isso invade a privacidade, a vida privada da pessoa, que tem outras coisas para fazer e vai ficar se preocupando com situações de trabalho fora do seu horário".

O I. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão, ao julgar um processo sobre danos morais em razão de cobranças por mensagem de celular, afirmou que há evidente "repercussão negativa na esfera moral da trabalhadora, causando-lhe intranquilidade, pressão psicológica, angústia, preocupação, atingindo inclusive sua saúde, decorrente da conduta abusiva da ré ao realizar a cobrança de metas por mensagens de celular fora do horário de trabalho, impedindo, inclusive, o alcance a que se destina o intervalo interjornadas enquanto medida de higiene, saúde e segurança do trabalho pois o descanso ficava comprometido, uma vez que a obreira não se desligava do trabalho". (AIRR - 10800-98.2013.5.17.0013, Relator Ministro: Cláudio Mascarenhas Brandão, 12/08/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/08/2015).

Por outro lado, importante destacar que não há automaticamente direitos tão somente por fazer parte de grupo de whatsapp. No entanto, é de suma importância que o Empregador regulamente a utilização e tenha cautela ao conteúdo enviado nos grupos, para não gerar horas extras, dano existencial ou, até mesmo, assédio moral.

"O pessoal é o ativo mais valioso de uma empresa3", não há dúvida de que a constatação de José Miguel Aguilera Avalos é de grande importância para a Gestão de Pessoas. Nas relações do trabalho é necessário ter bom senso. É válido o envio deliberado de mensagens fora do horário de trabalho? Se as mensagens forem recorrentes fora do horário e demandarem tempo do empregado, ele deverá ser remunerado com o pagamento de horas extras. De relevo ressaltar o cuidado no envio de mensagens, conforme afirma o I. Min. Maurício Godinho Delgado, a saber:

"(...) Há legislação de outros países que pune severamente a comunicação fora do horário de trabalho; no caso, da França. Então, parece-me que por conta dos princípios constitucionais, princípio da privacidade, a pessoa precisa desconectar-se. Sabemos que é difícil desconectar-se, de maneira geral. O WhatsApp está ligado sempre. (...). Não é difícil para a empresa estabelecer uma regra de remessa durante o horário padrão do expediente, mesmo que aquele indivíduo trabalhe num horário um pouco diferente, de dia, uma regra civilizada. Então, estou convicto (...) de que, de fato, fere a privacidade porque, obviamente, nenhum empregado é doido em ignorar uma mensagem do seu empregador, só se ele for absolutamente desconectado do mundo real. Então, como aqui está dito que é uma prática... Se fosse algo eventual, mas está dito que é uma prática. Acho que é suficiente essa afirmação." (acórdão processo TST-RR-10377-55.2017.5.03.0186, página 06).

"As empresas são, atualmente, o ramo de atividades com maior poder de influência nas grandes transformações que ocorrem em nossa sociedade"4. No Brasil será necessária a criação de uma lei ou as relações do trabalho serão, de fato, transformadas? O empregador entenderá a necessidade e a importância da desconexão do trabalho ou a saúde mental do funcionário continuará sendo negligenciada? É tempo de mudança. Que a dignidade da pessoa humana prevaleça, ainda mais em um mundo pós pandêmico! Lutemos por isso!

______

1 Disponível aqui.

2 MELO, Sandro Nahmias. RODRIGUES, Karen Rosendo de Almeida Leite. Direito à desconexão do trabalho: com análise crítica da reforma trabalhista: (Lei n. 13.467/2017). São Paulo: LTr, 2018.

3 AVALOS, José Miguel Aguilera Avalos. Auditoria e gestão de riscos; Instituto Chiavenato (org.). São Paulo: Saraiva, 2009.

4 CARVALHOSA, Modesto. Código de Conduta: evolução, essência e elaboração (prefácio). Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.

Thassya Prado

Thassya Prado

Advogada Trabalhista Empresarial, especializada em Direito do Trabalho e Compliance. Certificada em Compliance Anticorrupção - CPC-A. Professora de Cursos Práticos e Pós-Graduação na área trabalhista. Idealizadora do @entendaseudireito

Leticia Leite

Leticia Leite

Advogada trabalhista. Autora de artigos e livros jurídicos. Mestranda em Direito do Trabalho e Seguridade Social pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF).

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