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Herança digital: breve estudo entre Angola e Brasil sobre patrimônio virtual transmissível mortis causa

Naiara Aparecida Lima Vilela e Abílio Osvaldo Sanyenenge Jr.

Angola e Brasil possuem em seu cotidiano debates parecidos. O cotejo entre privacidade e a transmissão do patrimônio digital aos herdeiros em razão mortis causa ganha destaque uma vez que envolve tangibilidade econômica e afetiva.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Atualizado às 12:08

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Com as inovações tecnológicas e a crescente adesão por parte da sociedade de mecanismos digitais, muitos indivíduos constituíram uma vida paralela à real denominada "vida digital".

De computadores e smartphones a tablets e um universo de dispositivos eletrônicos inteligentes com acesso à internet, várias são as ferramentas à mão das pessoas que permitem a criação de um vasto volume de dados cibernéticos. Esses elementos constituem aquilo que pode ser designado por ativos digitais.

Muitos desses ativos encontram-se armazenados nos próprios dispositivos eletrônicos, enquanto outros estão armazenamentos em nuvem. Aliás, a herança digital é considerada por diversos autores como a única de existência dispersa em vários dispositivos eletrônicos, quer seja em armazenamento local (computadores, telemóveis, pendrives, discos externos), quer seja em armazenamento em nuvem (em servidor da internet, ADrive, Drive, Dropbox, Apple iCloud, Google Drive, entre outros). Para além, atualmente depara-se com uma transição da passagem de ativos físicos para o formato digital e posteriormente de armazenamento local/físico para armazenamento em nuvem. Todo esse acervo virtual forma a herança digital quando construído por uma pessoa ao longo de sua vida em contas digitais como as de e-mail, licenças de software, contas de redes sociais, contas de gestão financeira, contas de alojamento na web, contas de lojas online, entre outros.

Nessa esteira, Cahn & Beyer (2013) dividem a herança digital em 4 formas: dados pessoais (e-mail, WhatsApp e armazenamento de dados), dados de redes sociais (Facebook e Instagram), dados de contas financeiras (aplicativo online de conta bancária) e dados de contas empresariais (site empresarial e site de vendas). Contudo, a possibilidade de transmissão da herança digital esbarra-se na problemática de que os ativos digitais possuem contrato de privacidade com seu usuário. Como se sabe, dentre os direitos de personalidade, "consagra-se a prerrogativa do ser humano de ver assegurada sua privacidade, de resto tantas vezes violada, subalternizada sobretudo em um tempo de massificação e globalização da informação, em que sobrelevam os meios imediatos de comunicação entre pessoas e povos." (GODOY, 2005).

A herança digital quando em atrito com o direito à privacidade mostra-se quase sempre insuscetível de transmissão, uma vez que, apesar de haver patrimônio consubstancial de uma pessoa em matéria intangível, os ativos digitais revestem-se de feição negativa a fim de não ocorrer a violação sobre o prisma da privacidade e feição positiva a fim de resguardá-la de toda e qualquer intenção de romper com esse direito que se liga à dignidade da pessoa humana. Outrossim, embora existente o rito de transmissão de herança no Código Civil brasileiro, no seu artigo 21 "[...] assentou inviolável a vida privada, sem aludir, separadamente, à intimidade, impondo ao juiz a adoção de providências que façam cessar a respectiva vulneração." (GODOY, 2005).

No ordenamento jurídico angolano, o direito à privacidade e a reserva de intimidade e vida privada constitucionalmente consagrados, encontram-se, a grosso modo, densificados em matéria de tratamento de dados na lei 22/11, de 17 de Junho (Lei de Proteção de Dados Pessoais), em que se exige que qualquer operação sobre os dados com ou sem meios automatizados tais como recolha, registo, organização, consulta, conservação, entre outros, só podem ser efetuados, a princípio, com o consentimento inequívoco, expresso e escrito do seu titular. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira também informa que necessário se faz a autorização do titular das informações de tutela pessoal, porém nem essa norma nem o Marco Civil da Internet brasileira se debruçam expressamente sobre a questão da herança digital.

Percebe-se, assim, que na ausência de disposição de última vontade do titular das contas, não se deve descurar se o usuário falecido desejaria mesmo que o conteúdo dos seus e-mails e demais acervos digitais fossem acessado pelos seus herdeiros e/ou familiares. Nesse caso, parece que a regra é a do não acesso aos dados digitais relacionados à privacidade e à intimidade da pessoa, de tal modo que não seria correto considerar os bens virtuais a título de herança. No entanto, existem casos levados aos tribunais em que os parentes das pessoas falecidas desejam ter acesso aos arquivos ou contas do de cujus, como também almejam que sejam excluídas essas contas. As soluções jurisprudenciais divergem entre casos semelhantes¹.

Segundo Barreto e Neto (2016), em relação aos bens insuscetíveis de valoração monetária "[...] há neles, indiscutivelmente, enorme interesse dos herdeiros. Os cadernos, fotografias, cartas, diários, quando físicos, imediatamente são acessados pelos familiares do de cujus. Porém, o simples fato de terem valor sentimental não gera direito sucessório.". Sendo assim, destaca-se o mandamento de que se não houver valor econômico presente, a sucessão de ativos digitais não poderá acontecer. Outrossim, se aceito a política de privacidade das redes sociais por parte do de cujos, intransferível será aos herdeiros suas contas pessoais em razão do direito de intimidade e vida privada. Os prestadores de serviço digitais (e-mail, redes sociais, blogs) adotam políticas ou termos de uso que, para proteger os dados e a privacidade dos usuários, limitam significativamente o acesso ao seu conteúdo em caso de morte ou incapacidade (CONNOR, 2010).

Trata-se, assim, de uma questão bastante difícil, já que nesse caso as leis vigentes adquirem menor prioridade do que os termos de serviços que os usuários concordam quando se inscrevem em redes sociais e outros serviços virtuais, em razão do fundamento da autonomia privada e no respeito ao contrato, apesar de ser um contrato de (por) adesão, cujos termos podem ser sujeitos ao controle em sede do regime jurídico aplicável às cláusulas contratuais gerais. Por outro lado, na visão de Bellamy e outros (2013), os consumidores na maioria das vezes não compram um produto digital (e-book, músicas), o que adquirem na verdade são apenas o direito de uso ou estão alugando aquele produto, caso em que a sua transmissão, inter vivos ou mortis causa, é ainda mais difícil.

Assim como a privacidade é resguardada no Direito brasileiro e angolano, a herança também se faz presente. Na Constituição Federal de 1988 do Brasil, a herança é um direito fundamental. Dessa forma, não se pode segregar o acervo digital totalmente em prol do direito à privacidade na transmissibilidade pós morte. Para o Código Civil angolano, artigo 2024º, a sucessão dá-se pelo chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de um indivíduo falecido e a consequente devolução dos bens a que esta pertenciam. Porém, o artigo 2025º do mesmo Código determina que não constitui objeto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular em razão da sua natureza, por força da lei, bem como os direitos que se podem extinguir à morte do seu titular por vontade deste. Vislumbra-se, assim, três fontes ou causas de inereditabilidade (intransmissibilidade por morte) que pode ser natural, por exemplo os direitos de personalidade; legal, como o direito de usufruto; ou negocial, exemplo o direito de servidão predial (SILVA, 2001).

Contudo, para o material virtual com valor economicamente considerável, Costa Filho (2016) leciona que deve ser considerado na sucessão patrimonial e o seu valor pode influenciar na determinação da parte legítima destinada aos herdeiros e da parte disponível para ser legada. Existem bens digitais raros, arquivos armazenados virtualmente com potencial valiosos para efeitos de propriedade intelectual e até sites ou contas que podem servir como fonte de renda após a morte de seu titular que, ainda que não sejam mencionadas em testamento, não devem ser ignorados pela partilha. Caso contrário, haveria prejuízo aos direitos dos herdeiros.

Considerando que esses ativos possam ser transmitidos, a forma apresentada pelo ordenamento jurídico brasileiro estende o conceito de bens móveis às energias que apresentem valor econômico, e, como destaca Carlos Alberto Rohrmann (2005), "é inegável que os arquivos digitais de computador são 'energia armazenada' [...]". Sendo assim, para fim de transmissibilidade dos ativos digitais, esses seriam considerados como forma de conjunto de bens móveis.²

Isto posto, para a efetiva resolução da contenda, parte-se da necessária regulamentação nos países que ainda não o fizeram, haja vista que esse torto não diz respeito apenas a um mero conflito individual de interesses. Cada dia mais a tecnologia faz parte da vida em sociedade e é nela que grande parte de bens será deixada, como em contas empresariais e bancárias.

No território de Angola, não se verifica litígio até o presente momento que justifique a iniciativa de normatização, o que não significa que esse tema deixa de ser relevante. Países de língua irmã devem intercambiar conhecimento e experiências a fim de uma sociedade próspera, livre, justa e solidária. A respeito do Brasil, existe um Projeto de Lei que altera o Código Civil para a seguinte redação: "Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de qualidade patrimonial contas ou arquivos digitais do autor da herança" (CÂMARA DOS DEPUTADOS, Projeto de Lei 3050/2020). Para o autor desse Projeto de Lei, "É preciso que a lei civil trate do tema, como medida de prevenção e pacificação de conflitos sociais e compete ao Poder Público, e nós enquanto legisladores viabilizar formas de melhor aplicabilidade da herança digital." (CÂMARA DOS DEPUTADOS, Projeto de Lei 3050/2020).

Neste ínterim, Virgínio (2015) argumenta que "os bens virtuais merecem ser incluídos no conceito de herança, uma vez que integram o patrimônio do indivíduo, quanto aos arquivos que possuam valor econômico, [...], tendo em vista o princípio da patrimonialidade que norteia o direito das sucessões". Disto se extrai que os bens sem valor econômico, como fotos pessoais, escritos caseiros e vídeos particulares são excluídos da concepção de espólio. Contudo, a transmissão de ativos digitais com valor sentimental podem ser passível de transmissão se isto resultar de disposição de última vontade do de cujus. Caso contrário, os herdeiros não poderão ter acesso ao seu conteúdo, restando apenas o direito de requerer a exclusão desse acervo, caso esteja disponível ao público, ou a transformação em memorial como muitas redes sociais já o fazem, como exemplo a empresa Google e Facebook que, inclusive, possibilitam a determinação enquanto vivo de quem será o responsável pelo perfil depois de seu falecimento.

Desse modo, até o presente momento, não se vislumbra óbice nos ordenamentos jurídicos angolano e brasileiro de transmissão mortis causa dos bens virtuais de valor patrimonial, encontrando-se raiz nos seus princípios fundamentais e instrumentos hermenêuticos através da interpretação extensiva e da analogia, já que, num entendimento contrário, a sociedade ficaria desprotegida em face de uma nova realidade. Em consideração, o Direito Digital utiliza-se normas pré-existentes para contemplar as mudanças tecnológicas a partir desses instrumentos de interpretação. Assim, por hora, os arquivos digitais sem valor econômico, como fotos e vídeos de valor exclusivamente afetivo, não fazem parte do patrimônio e por isso, podem ser excluídos da partilha, entretanto, os herdeiros podem ter acesso ao seu conteúdo em certas situações, como em disposição de última vontade - através de uma espécie de testamento virtual - ou através de decisão judicial. Contudo, com o crescente debate, nota-se que necessário se faz a normatização para que eventuais conflitos já possuam resposta e para que quando contemplado positivamente o tema seja precursor de uma nova forma de herança.

Confira aqui o artigo na íntegra.

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1- Um exemplo de negativa de transmissibilidade pós morte de conta de rede social para família consiste em: AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA - EXCLUSÃO DE PERFIL DA FILHA DA AUTORA DE REDE SOCIAL FACEBOOK APÓS SUA MORTE - QUESTÃO DISCIPLINADA PELOS TERMOS DE USO DA PLATAFORMA, AOS QUAIS A USUÁRIA ADERIU EM VIDA - TERMOS DE SERVIÇO QUE NÃO PADECEM DE QUALQUER ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE NOS PONTOS ANALISADOS - POSSIBILIDADE DO USUÁRIO OPTAR PELO APAGAMENTO DOS DADOS OU POR TRANSFORMAR O PERFIL EM 'MEMORIAL', TRANSMITINDO OU NÃO A SUA GESTÃO A TERCEIROS - INVIABILIDADE, CONTUDO, DE MANUTENÇÃO DO ACESSO REGULAR PELOS FAMILIARES ATRAVÉS DE USUÁRIO E SENHA DA TITULAR FALECIDA, POIS A HIPÓTESE É VEDADA PELA PLATAFORMA - DIREITO PERSONALÍSSIMO DO USUÁRIO, NÃO SE TRANSMITINDO POR HERANÇA NO CASO DOS AUTOS, EIS QUE AUSENTE QUALQUER CONTEÚDO PATRIMONIAL DELE ORIUNDO - AUSÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA DA APELADA A ENSEJAR RESPONSABILIZAÇÃO OU DANO MORAL INDENIZÁVEL - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA - RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - AC: 11196886620198260100 SP 1119688-66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento: 09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação 11/03/2021)

2- O documento eletrônico, seja uma sequência de bits representativa de um texto acadêmico ou de uma ordem de compra de milhões de reais, é considerado um bem móvel. O novo Código, em conformidade com a lei especial, dispõe, no artigo 83, inciso I, que as energias que tenham valor econômico são bens móveis para os efeitos legais. O critério de valor aplica-se também a bens gratuitos, mas cuja proteção pode ser aferida economicamente. (FERREIRA, 2004)

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AUGUSTO, N. C.; OLIVEIRA, R. N. M. de. A possibilidade jurídica de transmissão de bens digitais "causa mortis" em relação aos direitos personalíssimos do "de cujus". In: Congresso Internacional de Direito e contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede. 2015, Santa Maria. Anais, Santa Maria, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 29 de Ago. 2021.

BARRETO, Alessandro Gonçalves; NETO, José Anchiêta Nery. Herança digital. Direito e TI, v. 1, p. 1, 2016.

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978.

BRASIL, TJ-SP - AC: 11196886620198260100 SP 1119688-66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento: 09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação 11/03/2021. Disponível aqui. Acesso em 29 set. 2021.

CAHN, N.; BEYER, G. W. Digital Planning: The Future of Elder Law. Naela, v. 9, n. 1, 2013.

CÂMARA DOS DEPUTADOS, Projeto de Lei 3050/2020, Deputado Gilberto Abramo. Disponível aqui. Acesso em: 06 out. 2021.

CONNOR, John, Digital Life after Death: The Issue of Planning for a Person's Digital Assets after Death (December 1, 2010). Texas Tech Law School Research Paper No. 2011-02, Disponível aqui. Acesso em 12 set. 2021.

FERREIRA. Paulo Roberto Gaiger. O notário e a contratação eletrônica. XXIV Congresso Internacional do Notariado Latino: 2004. Disponível aqui . Acesso em: 05 out. 2021.

GODOY, Claudio Luiz Bueno de. O direito à privacidade nas relações familiares. In: MARTINS FILHO, Ives Gandra; MONTEIRO JUNIOR, Antônio Jorge. Direito à privacidade. São Paulo: Centro de Extensão Universitária, 2005.

MACIEL, Cristiano; PEREIRA, Vinicius Carvalho. Digital Legacy and Interaction: Post-Mortem Issues. Springer Internacional Publishing Switzerland, 2013.

ROHRMANN, Carlos Alberto. Curso de direito virtual; Belo Horizonte: editora del Rey, 2005.

SILVA, Carlos Alberto B. Burity. Teoria Geral do Direito Civil. Colecção da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Luanda, 2003.

SILVA, Jorge Pereira da. Deveres do Estado de Protecção de Direitos Fundamentais. UCE, 2015.

SILVA, Manuel António Dias da. Direito das Sucessões (Sumários Desenvolvidos). Colecção da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, 2001.

TI RIO, Sindicato das Empresas de Informática do Estado do Rio de Janeiro. Brasileiro calcula patrimônio digital em R$235 mil, diz estudo. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 05 de out. 2021.

VIRGÍNIO, M. A. D. A Sucessão do Acervo Digital. Disponível aqui. Acesso em: 03 set. 2021.

Naiara Aparecida Lima Vilela

Naiara Aparecida Lima Vilela

Advogada especialista em Direito Constitucional, Digital e Compliance. Autora do livro O Comércio de Dados Pessoais e a (Des)Proteção da Privacidade.

Abílio Osvaldo Sanyenenge Jr.

Abílio Osvaldo Sanyenenge Jr.

Advogado, graduado e mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, Angola.

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