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Deferido o processamento do pedido de parcelamento de dívidas com base na lei do superendividamento

O superendividamento tem animado o debate na comunidade acadêmica. Há muitos desafios a serem superados, razão pela qual entendemos que o recente processamento dos autos 5044036-50.2021.8.24.0038 é um importante marco nesse debate.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Atualizado às 08:41

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em recente decisão proferida nos autos 5044036-50.2021.8.24.0038, o Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Joinville, Estado de Santa Catarina, autorizou o pedido de processamento de ação judicial com pedido de aplicação do rito do art. 104 - A, da lei 8.078/90 (CDC). Conforme se tem noticiado, o art. 104 - A foi inserido por meio da edição da lei 14.181/21 e trouxe significativa modernização da denominada lei de proteção ao Consumidor. Basicamente, a lei que vem sendo denominada de lei do superendividamento, além do reforço às proteções e garantias já existentes, inova ao possibilitar uma espécie de recuperação do endividado.

É nesse sentido que entendemos que a lei moderniza o CDC porque promove e autoriza a recuperação com o saneamento do crédito da pessoa física endividada. Certamente a recuperação do crédito atende não apenas os interesses diretos do devedor e do credor, mais ainda, há sobrados argumentos para concluir que, ao permitir o saneamento das dívidas, a lei homenageia a finalidade social e a boa saúde das relações de consumo. Entendemos que a proteção das relações de consumo é importante para todos os envolvidos na cadeia e não apenas para o consumidor de bens e serviços. Afinal, o estímulo ao consumo em um ambiente de segurança das relações, especialmente pela proteção contra o mau fornecedor de bens e serviços, impacta positivamente no estímulo à circulação de bens e riquezas, geração de emprego e renda, impacto fiscal etc.

Há, certamente, inúmeros pontos a serem debatidos e homenageados e isso já vem sendo feito pela comunidade jurídica, cada qual com destaque para um ponto da lei, razão pela qual é possível perceber um claro interesse pelo tema. Dentre esses pontos de interesse, tem-se debatido quanto à possibilidade de o devedor ingressar com pedido judicial de revisão de dívidas, cuja causa jurídica esteja lastreada em superendividamento. Os pedidos de discussão e repactuação dos contratos, ao argumento de superendividamento, encontravam-se controvertidos ntes mesmo à edição da lei 14.181/21 com tendência favorável no STJ¹ e desfavorável em alguns Tribunais Estaduais. Da controvérsia e dos debates em ações em curso ou já exauridas, extrai-se o aproveitamento de algumas definições de contornos mais objetivos para a definição do que é superendividamento. 

Como resultado das controvérsias, portanto, entendemos ser possível extrair que o superendividamento é o resultado da incapacidade de gerir as despesas pessoais e familiares. Esse é um fenômeno que desperta, inclusive, interesse do Banco Central do Brasil². Desperta interesse porque tem impacto direto na textura econômica e social do país, daí a necessidade de identificação do que o Banco Central classifica como "Indicadores de Endividamento de Risco"³, cuja definição técnica também serve de parâmetro para os julgados em antecipação à edição da Lei Federal.

Os indicadores objetivos de endividamento de risco, segundo o BC, o tomador de crédito deve se enquadrar em ao menos um dos quatro critérios:

  1. inadimplemento superior a 90 dias no pagamento de empréstimos;
  2. comprometimento da renda mensal com o pagamento das dívidas acima de 50%;
  3. uso simultâneo de cheque especial, crédito pessoal e crédito rotativo; e renda mensal disponível abaixo da linha da pobreza.

Os motivos para que uma pessoa seja classificada como pertencente ao estágio avançado de endividamento deve ser enfocado por vários prismas. Essas causas podem ser de ordem imprevisível - tal como a perda do emprego - a razões de índole psicológica - como a falta de reflexão mais apurada no momento da tomada de decisão. Ao lado das soluções são usualmente citados programas de educação financeira e consumo consciente, com a adição de medidas para a ampliação das políticas de renegociação de dívidas.

Sejam quais forem as origens ou as soluções, fato é que muitas das situações que envolvem o superendividamento vão ao Poder Judiciário em busca de socorro, especialmente enquanto não havia legislação específica para o problema no Brasil. A Corte da Cidadania, STJ, já se debruçou sobre várias questões importantes nesse tema, como a possibilidade de comprometimento da renda de subsistência por dívidas e a situação de vulnerabilidade dos consumidores idosos.

Nos autos 5044036-50.2021.8.24.0038 mencionado no início deste texto, o Requerente apresentou decomposição detalhada dos débitos contraídos mediante contratação de crédito rotativo de cartão de crédito; contratação de crédito direto ao consumidor (CDC) e crédito na modalidade consignada. Na ocasião, evidenciou que essas obrigações foram contratadas de boa-fé, mas com somatório de algumas circunstâncias, as obrigações passaram a consumir substancialmente os rendimentos da parte Requerente, ocasionando estrangulamento orçamentário representativo de risco de cessação dos pagamentos de obrigações tidas por mais essenciais.  

Vale mencionar que as alterações no Código de Defesa do Consumidor por meio da lei 14.181/21, estão subdivididas em dois eixos principais: do que podemos denominar de direitos substantivo (art. 54 - A e ss, do CDC) e disposições adjetivas que entendemos serem de natureza procedimental (art. 104 - A e ss, do CDC). Foi com fundamento na parte procedimental que o Juízo onde foi distribuída a ação mencionada neste texto, proferiu a seguinte decisão:

Conclui-se, por óbvio, que a relação entabulada entre os ora litigantes é de consumo, tendo em vista que a parte suscitada se enquadra na definição legal acima exposta, enquanto a parte autora se encaixa na definição de consumidora, consoante dispõe o art. 2°, caput, do Código de Defesa do Consumidor. Dito isso, cabe registrar que, sendo as dívidas em tela originárias de relação de consumo e não relativas a contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural, possível se faz a aplicação do art. 104-A do CDC.

Na parte dispositiva da decisão, o Juízo determinou a intimação das credoras com as advertências do §2º, do art. 104 - A, do CDC. Isso significa que, especificamente nos autos mencionados, acertadamente o Juízo concluiu pela aplicação da determinação imperativa da norma, ou seja, ao que tudo indica, a parte Requerente apresentou elementos suficientes para caracterização e acomodação objetiva aos requisitos da parte procedimental (art. 104 - A). De acordo com a determinação da norma, as Acionadas deverão comparecer ao ato que, necessariamente, terá índole consensual e, somente em caso de resistência ou desídia de uma ou algumas credoras, o Juízo poderá impor o plano apresentado pelo devedor.

É por essa razão que entendemos que a recente decisão judicial será significativa para consolidação do que entendemos ser uma nova e importante fase para o denominado direito consumerista. A juventude da norma representa desafios para a comunidade forense como um todo, entretanto, o processamento da mencionada ação poderá indicar quais serão os desafios práticos para o que entendemos ser um importante avanço para proteção do crédito e, de igual forma, da cadeia de consumo.

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1- Precedentes específicos da Terceira e da Quarta Turma do STJ. 5. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (STJ - REsp: 1584501 SP 2015/0252870-2, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 06/10/2016, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/10/2016).

2- Endividamento de Risco no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 26/10/2021.

3- USO DO CRÉDITO - O QUE DIZ O CONSUMIDOR. Disponível aqui. Acesso em 26/10/2021.

Ivan Rezende de Oliveira

Ivan Rezende de Oliveira

Advogado e sócio no Escritório WHM Advogados. Tem experiência na área de Direito empresarial, com ênfase em Direito Processual Civil e Direito Civil e empresarial. Atua na proteção dos direitos dos consumidores e em matérias de responsabilidade civil. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC com projeto de pesquisa voltado para teorias da justiça e possui diversas publicações em revistas, periódicos e capítulos de livro.

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