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A democracia e os direitos humanos nas práticas educativas da escola pública do Brasil

O presente artigo ressalta o valor das práticas educativas, como forma de assegurar a efetividade democrática, ao fazer o direito aproximar-se do povo, sobretudo, dos educandos de escola pública.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Atualizado às 13:56

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Floresta (1889) é uma das mulheres que iniciam o trajeto de publicação de crônicas em jornais brasileiros, além de ser empreendedora do primeiro colégio feminino, no qual a mulher estuda ciência, desafiando a ideologia de seu tempo, para a qual converge o entendimento de que só cabe a ela aprender "prendas domésticas" - pelo simples fato de não ter "capacidade" aos estudos científicos. Isso só faz ressaltar o valor da Literatura Brasileira (LB) como um dos meios de fomentar a criticidade necessária de que o direito precisa para se humanizar.

Entendendo que a norma padrão é a exigida nos lugares mais formais da sociedade, inclusive é o meio pelo qual se manifestam linguisticamente os gêneros jurídicos, cuja compreensão humana é imprescindível, considerando que todo brasileiro se subjuga ao ordenamento pátrio - em virtude de se inserir em um Estado Democrático de Direito - como o é o Brasil, as aulas de LP e LB não podem se eximir dessa abordagem crítica. Assim, o aluno visualiza que a lógica dominante sempre predomina, de forma excludente e preconceituosa, seja por meio do léxico, da LB, da gramática normativa, do direito, das estratificações sociais, dentre outras formas por meio das quais seja possível manifestar a realidade dos signos ideológicos, de que trata Bakhtin (2011).

Em que pese isso, os estudos bakhtinianos revelam que o homem não se faz prisioneiro da época na qual vive, podendo dela se emancipar, como o faz Floresta (1989). Esse lugar de "contrapoder" da LB, nos termos de Barthes (2013), desvela o interesse primaz do presente trabalho, como forma de desenvolver uma consciência crítica, no educando, que faça dele um questionador do próprio direito, em seu manto de "equidade que se faz injusta", mesmo na contemporaneidade. Segundo Bahia (2020), a igualdade material se difere da formal, que remonta aos anos da Revolução Francesa, nivelando as pessoas às mesmas condições, sem considerar as peculiaridades de inserção social de cada uma delas, promovendo mais injustiça do que equidade social.

A "democracia brasileira" apresenta uma peculiaridade, efetiva direito, mas fragiliza a educação pública, fazendo com que os gêneros jurídicos estejam, cada vez mais distantes do aluno, porque a LB se faz primeiro apartada, dada a falta de acesso a livros desse público. Sem a criticidade que fomenta a LB, o direito jaz em sua inefetividade e, por conseguinte, a justiça não amplia a sua magnitude social. Por isso, urge que as aulas de LP e LB sejam espaços de discussão sobre as relações que podem ser intermediadas pela discussão entre direito, LP, LB, demais manifestações artísticas, ideologia e linguagem, relacionando cada um desses tópicos à forma como a concepção de justiça é gestada, em um dado contexto histórico.

Nesse percurso, importa compreender o passado com a finalidade de entender melhor a contemporaneidade e, dessa maneira, combater toda forma de injustiça, que se apresenta por meio de uma "igualdade mitológica", como enuncia Grau (2012). Nesse sentido, impera sinalizar que a equidade, de que trata a CRFB/88, é material, de modo a criar condições para que os negros, por exemplo, concorram, com alguma "igualdade", quando da aprovação ou não em um exame nacional. Por isso, as cotas devem ser entendidas como uma política afirmativa, de cunho social reparativo, através das quais se viabiliza uma isonomia minimamente "justa".

De igual modo, deve ser analisada a Lei Maria da Penha, ao oferecer tutela a mulher em se tratando de violência doméstica, buscando corrigir os efeitos nefastos de um patriarcalismo que vigora durante séculos da história do Brasil. Nessa linha, homens e mulheres, apesar de terem uma igualdade tutelada pela CRFB/88, não têm como se inserir, de igual modo, na sociedade brasileira; uma vez que são marcados por trajetos distintos, fazendo viger, na imagem feminina, os reflexos patriarcais da história, reiterados pelos frequentes casos de violência doméstica contra mulher, que obriga o direito a exercer uma maior tutela a ela, ainda que de forma tardia.

Mesmo em pleno século XXI, a gramática não deixa o "espelho" histórico de suas linhas patriarcais e, nesses moldes, propaga uma norma padrão que, em se tratando da concordância nominal, chancela o masculino como o gênero que deve prevalecer quando do surgimento dele ao lado de um substantivo feminino, concomitantemente, por exemplo. A história finca a realidade de seus signos ideológicos na língua, bem como também na LB e, assim, propala a ideia de "inferioridade" feminina, indígena, negra, dentre outros povos que são vítimas das bases pelas quais se erige um discurso opressor. O superior, aquele que domina, é o prevalecente e é por meio dele que o idioma oficial do Brasil é LP, aquele proferido pelo "colonizador", "acima dos homens". Por essa lógica, não é com espanto que se observa a impossibilidade de que uma das línguas africanas ou indígenas fosse a considerada oficial pelo Brasil, uma vez que seus locutores são vistos como "não humanos", como "coisas" pelos europeus. 

Ao visualizar o panorama devastador da educação pública do Brasil, evidencia-se a coerência da análise de Grau (2012), quando afirma a "mitologia da igualdade material" da CRFB/88. Toda política afirmativa não está reduzida ao ad infinitum e, por isso, ela precisa existir ladeada à efetiva melhoria do ensino público do país, fato que não tem ocorrido no Brasil. Nota-se um desmonte do sistema da educação básica, organizado com a finalidade de não ser exitoso para uma classe específica, como observa Ferraro (2008), ao demonstrar que continua sendo o mesmo público excluído pelo passado brasileiro, negros, índios, mulheres, homoafetivos, dentre outros, a despeito de se viver em uma democracia contemporânea em que todos são "iguais".

Sem políticas públicas que lhe confiram efetiva inserção social, o negro tem sua liberdade decretada, em 1888, passando a viver à margem da sociedade de outro modo, dadas às inéditas conotações "industriais" do Brasil, que exigem novas formas de manutenção da ideologia opressora, fazendo o país demonstrar-se ao mundo como "avançado" em seu atraso social e racista. Como afirma Moisés (2009), a liberdade dos negros não significa paridade de direitos entre eles e os brancos. Tanto assim, a ciência se queda racista, com vistas a legitimar a "inferioridade negra", deixando o "legado" escravagista para o Brasil "independente", que não deixa de se espelhar em sua época "colonial", tornando "legítimo" o racismo.

Gama (2021), no auge de um Brasil escravocrata, proclama o fim da escravidão, por meio de seus versos - na condição de ex-escravo. Enquanto isso, o direito legitima a escravidão no Brasil, vide a Constituição de 1824, em nítida demonstração de que a lei pode ser injusta. Desse modo, desenvolve-se a consciência crítica do educando para que ele seja capaz de não apenas conhecer o direito, mas também de questioná-lo, como o faz Nísia Floresta (1889), mesmo estando em pleno patriarcado do século XIX. Esse mister torna-se imprescindível, caso se considere que, em uma democracia, a voz que deve viger é a do povo.

Diante dessa narrativa, é sem espanto, embora com muita insatisfação, que se notam a pobreza e o cárcere contemporâneos na cor da negritude, marcada pela escravidão de que são vítimas seus antepassados. Em outras palavras, tudo é organizado com esse fim desumano e atroz, de onde não se pode evocar surpresa frente ao enunciado retrotranscrito. É preciso possibilitar ao aluno essa reflexão, promovendo um contexto para que ele perceba o quanto a LB humaniza o direito, antecedendo-o, tantas vezes, no curso da história do Brasil.

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BAHIA, F. Constitucional Prática. 14. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.

BARTHES, R. Aula. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013. 

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BRASIL. [Constituição (1824)].  Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Império do Brasil, [2003]. 25 de março de 1824. Disponível aqui. Acesso em: 15 jan. 2019.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. In: SARAIVA. Vade Mecum Saraiva. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 1-137.

BRASIL. Lei 11.340. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, 7 de agosto de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 13 nov. 2021.

FERRARO, A. R. Direito à Educação no Brasil e dívida educacional: e se o povo cobrasse? Educação e Pesquisa. São Paulo: USP. v. 34, nº. 2. p.273-289, maio/ago.2008. DOI. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2021.

FLORESTA, N. Direitos das mulheres e injustiça dos homens São Paulo: Editora Cortez, 1989.

GAMA, L. G. Literafro. Minas Gerais: UFMG, 11 de maio de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 01 ago. 2021.

GRAU, E. R. A ordem econômica na constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2012.

MOISÉS, M. História da Literatura Brasileira: realismo e simbolismo. 9. ed., v.2. São Paulo: Cultrix, 2009.

Alexandra Gomes dos Santos Matos

Alexandra Gomes dos Santos Matos

Mestra e graduada em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Teve dissertação de mestrado aprovada com Distinção e Louvor, além de ser advogada, inscrita na OAB, na seção da Bahia. É professora efetiva de Língua Portuguesa, de Literatura Brasileira e de Direito Constitucional, na condição de Servidora Pública da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, bem como de docente do Colégio Santo Antônio de Jesus, além de ser membro do Grupo de Pesquisa Múltiplas Linguagens da UNEB, campus V. É bacharela em Direito, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia, em Direito Educacional pela Faculdade Futura, assim como é pós-graduanda em Educação e Direitos Humanos IES.

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