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A paridade de armas entre "o advogado da sociedade" e "super advogados"

Quando a história distingue, cabe ao direito assegurar a isonomia entre o parquet e a Defensoria Pública, garantindo a ambos as mesmas prerrogativas institucionais.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Atualizado às 11:28

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Não devia ser assim. Contudo, a competitividade entre o ministério Público e a Defensoria Pública em ocasiões específicas é clara. Não se pode dizer, por óbvio, reduzir o cotidiano no qual as duas instituições se relacionam a uma animosidade eventual. A atuação conjunta de ambos proporciona bons frutos à sociedade e ao Estado Democrático de Direito. Mas, como acontece com todas as relações em que há muita proximidade, pode ocorrer um desejo mal disfarçado, uma disputa por uma supremacia que, na verdade, inexiste.

Inexiste pois, as duas instituições estão alocadas no mesmo capítulo do texto Constituição. O que demonstra, para dizer o mínimo, paridade e equivalência.

Inobstante isso, dezenas de ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas pelo Procurador Geral da República em face das Leis Complementares que regem as Defensorias Estaduais com um fundamento principal: a possibilidade de requisição aos órgãos públicos desequilibra a relação processual, "notadamente na produção de provas, ao conferirem poderes exacerbados a apenas uma das partes, o que ofende o princípio da isonomia, do qual decorre o preceito da paridade de armas".

O STF, no julgamento da ADIn 230/RJ se pronunciou no sentido de ser "inconstitucional a requisição por defensores públicos a autoridade pública, a seus agentes e a entidade particular de certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências, necessários ao exercício de suas atribuições: exacerbação das prerrogativas asseguradas aos demais advogados".1 O entendimento de que "advogado requer, quem requisita é quem exerce a função judicante ou a condição de advogado da sociedade, que é o papel do ministério Público, este, entretanto, com os limites legalmente estabelecidos" está expressamente consignado no acórdão da ADIn 230.

De acordo com a definição dada por de Plácido e Silva "a requisição é a exigência legal ou a ordem emanada da autoridade para que se cumpra, para que se faça ou para que se preste o que é exigido, ordenado ou pedido"2. Sobre a acepção de autoridade, o vocábulo "designa a própria pessoa que tem em suas mãos a soma desses poderes ou exerce uma função pública, (...) assinala a competência funcional (...)".3 Com uma simples interpretação sistemática, fica claro que, na medida em que o concurso público é exigência para as duas carreiras, que têm suas atribuições delineadas na Constituição, amoldam-se como autoridades. Dessa forma, a ressalva feita pelo Supremo no julgamento da ADIn é infundada.

A história do Direito autoriza a tese de que o ministério Público possui maior tradição que a Defensoria Pública.

No Egito antigo, o magigai era funcionário real, responsável por denunciar os infratores, integrando a instrução, zelando pelos interesses do soberano e dos cidadãos. Na Grécia, por outro lado, quem acusava eram as vítimas e seus familiares, incumbia ao thesmotetis zelar pela aplicação adequada da lei. Os éforos de Esparta, a seu turno, cumulavam a função de juiz e acusador, equilibrando o poder real e senatorial.4

Ainda que existam múltiplas possibilidades para explicar como se originou o órgão ministerial, e' plausível que a Instituição tenha surgido atrelada à individualizac¸a~o da função judicante, que transitou da figura exclusiva do soberano para ser conduzida por agentes especializados, os magistrados. Com essa separação e especialização do ofício, tornou-se imperiosa a fiscalização para tutelar os interesses do monarca ou, em alguns casos excepcionais, o próprio interesse social.5

As Ordenações Afonsinas, de 1447, faziam referência, no Título VIII do Livro I, a um agente cuja atividade funcional era basicamente a de assegurar o acesso a` justiça, dispondo sobre ele do seguinte modo: "[e] veja, e procure bem todos os feitos da justiça, e das viúvas, e dos órfãos, e miseráveis pessoas que aa Nossa Corte vierem".6 Percebe-se aqui, fazendo uso de uma analogia com as atribuições atuais da Defensoria, que quem fazia as vezes de agente ministerial, nessa época, cumulava as funções de custus vulnerabilis também.

O mesmo aconteceu quando a lei 2.040/1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, conferiu aos Promotores Públicos a função de velar pelo registro e proteção dos filhos libertos dos escravos.7

A Constituição Republicana de 1891 dispunha, na seção "Do Poder Judiciário", sobre a escolha do Procurador-Geral da República dentre Ministros do STF (art. 58, § 2º), sistema adotado até 1934, e, em seu art. 81, § 1º, conferia atribuição a tal agente para a propositura de revisão criminal em favor do réu.8 Outra vez, a adição de uma atribuição que, na atualidade é típica dos defensores e advogados.

Analisando a questão sob o prisma histórico, é como se a Defensoria Pública, corporificada na atuação e nas prerrogativas de seus membros, estivesse chegando agora e "quisesse sentar na janelinha". O próprio fenômeno das ondas de acesso à justiça é relativamente recente. Fato é que a historicidade recente da Defensoria Pública não é justificativa para o crescente esvaziamento de suas atribuições institucionais.

Trazendo alguns elementos do conceito de justiça formulado por Eduardo Bittar em sua obra Introdução ao Estudo do Direito9, percebe-se que a contribuição histórica do parquet para a administração da justiça foi assimétrica e desproporcional, ante o acúmulo de funções sem muitos critérios definidos.

Considerando que ela permeia um dos objetivos da República e tomando como norte seus fundamentos, pode-se conceituar justiça como um fenômeno histórico-social e portanto, mutável. Histórico, porque além de uma perspectiva temporal, contextualiza-se com determinados modos de produção que se alteram periodicamente. O nosso modo de produção atual é capitalista. O que organiza a exploração no modo de produção capitalista é o vínculo contratual, precipuamente. Essa relação de equivalência estabelece a forma e a subjetividade jurídica. As pessoas, dentro do capitalismo, comportam-se como se fossem todas iguais (perante a lei, para os fins do Direito). Presume-se ainda a liberdade, defendendo-se a propriedade privada. O capitalismo torna os desiguais iguais não com o advento da igualdade material, mas sim, no momento do contrato.10

O Direito é justo, desse modo, na medida em que permite que os indivíduos, enquanto sujeitos de direito que o são, formalizem contratos, realizem por meio deles aquisições. A justiça é garantir a segurança jurídica e garantir que os contratos sejam cumpridos.11

Comparando a Constituição brasileira com a portuguesa fica clara a opção ideológica. A Constituição do Brasil ficou distante dessa veia revolucionária que estava explícita na Constituição de Portugal. Com efeito, enquanto aquela claramente apontava para a transformação do modo de produção do Estado português, esta - embora isso significasse um expressivo avanço - limitou-se a apontar para a transformação do modelo de Estado (Estado Democrático de Direito), restringindo-se, no plano econômico, a estabelecer as bases (núcleo político) de um Estado Social (Welfare State). Em síntese, a Constituição brasileira não contém, ao contrário do que continha, na sua origem, a portuguesa, uma função normativo-revolucionária; mesmo assim ela incorpora um conjunto de objetivos que devem pautar e marcar toda a ação política do Estado, em todos os seus ambientes - executivo, legislativo e judiciário. Ou seja: o caráter compromissório do constitucionalismo vem expresso em sua opção finalística, a qual deve ser obtida pela persecução dos objetivos que indicam os fins da ação estatal, delimitando formal e substancialmente as decisões políticas. Além do mais, o estabelecimento de um conteúdo finalístico na Constituição de 1988 funciona como um critério da atividade hermenêutica de desvelamento do conteúdo constitucional, pelo qual todo e qualquer interprete deverá observar, navegando nas águas cristalinas da opção constituinte.12

O advento do Estado Democrático de Direito, traz o "jurídico" como cerne precípuo do Estado, enfatizando sua natureza fundamental para o direito de acesso à Justiça, que "implica a garantia de uma proteção eficaz e temporalmente adequada.13

Refletindo sobre as implicações de uma nova ordem social, Lenio Streck argumenta que uma Constituição nova exige novos modos de análise: no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma, uma nova teoria hermenêutica. Em 1988, o Brasil recebeu uma nova Constituição, rica em direitos fundamentais, com a agregação de um vasto catálogo de direitos sociais. A pergunta que se colocava era: de que modo podemos olhar o novo com os olhos do novo? Afinal, nossa tradição jurídica estava assentada em um modelo liberal-individualista (que opera com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado germânico e francês), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões. Do mesmo modo, não havia uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico.14

Realizadas as considerações teóricas e históricas pertinentes, passa-se ao texto constitucional propriamente dito.

Segundo o artigo 127 da CF "o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado".  A seu turno, o artigo 133 dispõe: "o advogado é indispensável à administração da justiça". Por fim, logo em seguida o artigo 134 assevera que "a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado".

Tem-se aqui, uma situação interessante. Tanto Ministério Público quanto Defensoria Público são considerados essenciais a função jurisdicional do Estado, expressão sinônima de Poder Judiciário.  Logo, poder-se-ia, distingui-los somente em atribuições específicas e não no seu núcleo, enquanto função essencial.

Em que pese a Suprema Corte alegue ser inadmissível o caráter de super advogados aos Defensores Públicos, a verdade é que se trata de uma espécie qualificada, sui generis, de advogado. Advogado público, remunerado pelo Estado (salaried staff model direto), que inclusive está dispensado de mandato na sua atuação.

Com isso, revelam-se três situações possíveis.

Admite-se a especialização advocatícia da Defensoria Pública, autorizando o exercício da requisição para a realização das incumbências a seu cargo, nos termos do texto constitucional, emendando-se a constituição, se preciso, para que conste de modo expresso essa possibilidade.

 Amplia-se a possibilidade de requisição aos advogados particulares, com emenda à constituição para que não reste dúvidas. A prerrogativa de requisição seria expressa e alcançaria todas as classes: promotores, defensores e advogados. Em que pese os advogados privados não se adequarem ao conceito de autoridade e não estarem investidos de cargo público, essa hipótese me parece mais adequada, uma vez que colocaria todos os atores processuais em posições equidistantes.

Outro cenário. Veda-se a requisição aos advogados e defensores, colocando em risco a duração razoável do processo, o contraditório e a ampla defesa efetivos e, permite-se que apenas o ministério Público possa fazer uso dessa diligência.

E para o princípio da paridade de armas, faz-se vista grossa. Nada como fingir que ele existe.

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1- ADI 230/RJ. Disponível aqui. Acesso em 08 out. 2021.

2- SILVA, De Plácido e.Vocabulário jurídico. atualizadores Nagib Slaibi Filho e Priscila Pereira Vasques Gomes. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 1219.

3- Idem. p. 177.

4- Garcia, Emerson. Ministe'rio Pu'blico: organização, atribuições e regime jurídico. 6. ed. Sa~o Paulo: Saraiva, 2017.p. 69

5- Idem. p. 70.

6- Idem. p. 94

7- Idem. p. 96

8- Idem. p. 98, grifo nosso.

9- Justiça é uma forma de mediação de relações sociais que qualifica a interação humana, oferecendo contrapeso à aparição de poder nas interações humanas, compensando-a por critérios racionais e históricos (medida, proporção, simetria, valor), de forma a gerar a responsabilização da ação social por meio de instituições, baseada em parâmetros normativos. In: Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.p.603

 

10- Alysson Mascaro. Palestra Direito é Justiça. Disponível aqui. Acesso em: 8 out. 2021.

11- Idem.

12- STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Dos princípios fundamentais. In: CANOTILHO, J. J. Gomes. Comentários a constituição do Brasil. - 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 151

13- FERREIRA, 2007, p.448 apud CANOTILHO, 2003, p.499. FERREIRA, Francisco Martins. Acesso à justiça e processo judicial na perspectiva do estado democrático de direito e à luz dos princípios constitucionais do processo. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.2, n.3, 3º quadrimestre de 2007. Disponível aqui. Acesso em: 08 out. 2021.

14- Verdade e consenso. 6. ed. rev. e ampl. - São Paulo: Saraiva, 2017. p. 78-79

Marina Vanelli

Marina Vanelli

Voluntária na Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina e especialista em Direito Público pela Universidade do Vale do Itajaí.

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