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Entre avanços e preconceitos: as restrições à publicidade de produtos de cannabis

As proibições irrestritas para os produtos de Cannabis que se encontram em vigor não estão em linha com o microssistema regulatório da Anvisa.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Atualizado às 08:26

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Os desafios da regulação dos produtos de Cannabis não são exclusividade de um único país do mundo. Reguladores se rodeiam de arranjos normativos que esbarram no preconceito social e na dificuldade de encontrar uma equação ideal para o tema. No Brasil, a última norma editada sobre produtos de Cannabis - e seu uso para fins medicinais - foi a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 327/19, aprovada pela Anvisa em 9 de dezembro de 2019.

Com a RDC, foi criada a categoria regulatória de "Produtos de Cannabis" como uma tipologia oficial da agência, para atender a um vácuo quanto ao enquadramento de tais produtos. Historicamente, houve um aumento da demanda por tais produtos e a Anvisa optou por regular a comercialização sob uma nova categoria, de caráter temporário, para que as empresas continuem o desenvolvimento de pesquisas para o potencial registro de tais produtos como medicamentos. Os produtos de Cannabis que não se adequarem à categoria de medicamentos no prazo estipulado na RDC terão a autorização sanitária cancelada.

Dentre os desafios da regulação, destaca-se a questão da publicidade. Os arts. 9 e 12 vedam a utilização de "nomes comerciais" e proíbem "qualquer publicidade" dos produtos de Cannabis. De acordo com as informações públicas, não há no processo uma justificativa para tais proibições, havendo somente ofício da Coordenação-Geral de Polícia de Repressão a Drogas e Facções Criminosas, em que se mencionou ser necessária a vedação à publicidade, mas sem justificá-la.

A validade jurídica de tais vedações é questionável. A Constituição prevê que a publicidade de medicamentos e terapias "estará sujeita a restrições legais" (art. 220, §4º). Produtos de cannabis estariam enquadrados na rubrica "terapias", para fins de aplicação do art. 220. A Constituição não autoriza a proibição completa e irrestrita dos esforços de uma empresa para diferenciação de seus medicamentos e terapias, apenas os condiciona a eventuais restrições impostas pela lei, que devem estar voltadas para a proteção da saúde do consumidor, nos termos do inciso II.

O art. 220, incisos II e §4º, é disciplinado pela lei 9.294/96, que, no que se refere a medicamentos e terapias "de qualquer tipo ou espécie", estabelece que sua propaganda (i) deverá conter advertência sobre os malefícios do seu uso (art. 3º, §2º); (ii) poderá ser feita em publicações especializadas e deverá ser direcionada a profissionais e instituições de saúde (art. 7º); e (iii) não poderá enganar o consumidor, gerando percepção falsa sobre seus efeitos e riscos (art. 7º, §2º e 5º).

Não há, nessa linha, uma proibição completa e irrestrita da propaganda na Lei 9.294/1996, mas a previsão de regras objetivando a proteção do consumidor. A lei 6.360/76 possui dispositivos tratando dos esforços de uma empresa de diferenciação de seus produtos sujeitos à vigilância sanitária, mas também não institui uma proibição geral e irrestrita.

A nível infralegal, as normas regulamentadoras também não instituem proibições - nem poderiam fazê-lo -, mas buscam parametrizar a prática publicitária das empresas. A portaria 344/98 (Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial), aplicável aos produtos de Cannabis, e a RDC 96/08, que regula as práticas para divulgação de medicamentos são aplicáveis para o caso. Ambas impõem condicionantes (propaganda só poderá ser feita em revista ou publicação tecno-científica, por exemplo) e proibições específicas, delimitadas (como a restrição de pessoas fazendo uso do medicamento).

Mesmo quando há uma proibição na regulação da Anvisa de uso de nome ou propaganda, a norma permite algum tipo de esforço de diferenciação do produto por parte da empresa. Por exemplo, os medicamentos genéricos não podem ter nomes comerciais, só podem ser identificados pelo nome do seu princípio ativo (Lei 6.360/1976, art.3º, XXI1). Contudo, é permitida a sua publicidade de uma forma geral (Lei 9.294, art. 7º, §4º2). Também é permitido que empresas comercializem os exatos mesmos produtos, do ponto de vista técnico, na categoria regulatória de medicamentos similares, para os quais se permite o uso de nome comercial e marca, bem como publicidade específica sobre o produto3.

As proibições irrestritas para os produtos de Cannabis que se encontram em vigor não estão em linha com o microssistema regulatório da Anvisa. Curiosamente, a RDC nem sequer permite a propaganda especializada voltada para médicos - apesar de confiar ao médico a decisão pela prescrição do produto de Cannabis (e, consequentemente, a análise e constatação da "ausência de alternativas terapêuticas", exigida pelo art. 48 da RDC 327/19, como requisito para a prescrição). A RDC parece ignorar que a publicidade voltada para os médicos prescritores, fornecendo-lhes informações sobre os produtos, suas composições e efeitos no organismo, reverte-se numa escolha mais embasada do produto adequado à necessidade do paciente.

A jurisprudência nacional4 converge no sentido de que qualquer restrição a direitos constitucionalmente garantidos, como o direito à propaganda, deve ser proporcional e justificada. Não há, no processo administrativo que levou à edição da RDC 327/2019, motivação para as proibições publicitárias, o que é passível de críticas por si só. Nem mesmo há relatório de análise de impacto regulatório que embase a decisão.

O Poder Judiciário já corrigiu excessos da Anvisa no tema propaganda de medicamentos. O TRF-1, inclusive, decidiu no sentido de que a RDC 96/085 teria extrapolado os limites da lei 9.294/96 ao estabelecer proibições específicas não admitidas pela lei. Na verdade, o Eg. TRF-1 há muito tem uma visão crítica da regulação da Anvisa sobre a propaganda de medicamentos, tendo anulado alguns autos de infração lavrados com base na norma anterior à RDC 96/2008 (RDC 102/2000)6.

Em outro exemplo, em 2011, o Eg. TRF1 julgou ação proposta pelo Sindusfarma, na qual questionou o ato da Anvisa que proibira o uso de marcas por vacinas7. A justificativa da Agência foi no sentido de que a restrição tinha como objetivo permitir o acesso amplo, irrestrito e com custo mínimo às vacinas e evitar a exploração econômica, a formação de cartel ou mesmo o aumento de preços. Na ocasião, por diversos fundamentos, incluindo o benefício que a identificação de produtos por marcas traria para os consumidores, o Eg. TRF1 confirmou a sentença favorável que entendera ilegal a proibição. 

A vedação ao uso de nome comercial e a proibição à publicidade de produtos de Cannabis, de maneira ampla e irrestrita, por meio de norma infralegal não parece se adequar ao ordenamento constitucional brasileiro. A RDC 327/19 negligencia o efeito benéfico que o nome comercial e a publicidade podem trazer para os consumidores, em termos do acesso do médico à informação, por exemplo.

Do ponto de vista estritamente jurídico, a fórmula proibitiva da RDC também contraria o cenário regulatório da própria Agência no que tange o tema da publicidade. Pela lente do Judiciário, os precedentes quanto à regulação da publicidade de medicamentos e afins levam à potencial conclusão que os arts. 9 e 12 seriam questionáveis. É preciso ir além do preconceito, a fim de avaliar se tal proibição de fato se adequa ao que parece ser o objeto da norma: facilitar o acesso aos medicamentos, garantindo ampla informação aos médicos e aos consumidores-usuários.

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1 XXI - Medicamento Genérico - medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que pretende ser com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI;  

2 Art. 7° A propaganda de medicamentos e terapias de qualquer tipo ou espécie poderá ser feita em publicações especializadas dirigidas direta e especificamente a profissionais e instituições de saúde. § 4o  É permitida a propaganda de medicamentos genéricos em campanhas publicitárias patrocinadas pelo Ministério da Saúde e nos recintos dos estabelecimentos autorizados a dispensá-los, com indicação do medicamento de referência

3 XX - Medicamento Similar - aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos, que apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica e que é equivalente ao medicamento registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca; 

4 O tema é pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Por exemplo: ADI 1040/DF, ADI 1351/DF, ADI 1721/DF, ADI 2591/DF, ADI 2626/DF, ADI 2868/PI, ADI 3146/DF, ADI 3324/DF, ADI 3453/DF, ADI MC 1910/DF, ADI­MC 3090/DF.

5 TRF1. Apelação nº 0054457-11.2014.4.01.3400; TRF1. Apelação nº 0035301-42.2011.4.01.3400

6 A título de exemplo: TRF1, Apelação 0050928-86.2011.4.01.3400/DF; 6ª Turma, relator Des. Fed. Daniel Paes Ribeiro Data Decisão 07/12/2015.

7 TRF1. Apelação nº 22503-64.2002.4.01.3400.

Ricardo Campello

Ricardo Campello

Sócio do Licks Attorneys. LL.M George Washington University.

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Luísa Saraiva

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Advogada do Licks Attorneys. Bacharel em Direito (UERJ).

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Ana Luíza Calil

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