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Recurso Especial Egóico

Este artigo trata dos óbices de admissibilidade do recurso especial, sua problemática na consciência intersubjetiva, trazendo seis realidades que precisam ser internalizadas pelos operadores do direito.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Atualizado às 12:20

 (Imagem: Divulgação/Migalhas)

Recurso Especial Egóico(Imagem: Divulgação/Migalhas)

Era comecinho deste século quando fiz meu primeiro recurso especial. Lembro-me com clareza até hoje daquela tarde, porque foi um evento traumático em minha vida. Um recém-formado, achando que sabia tudo e que o mundo era seu, sentiu ali sua primeira derrota profissional. Sem ideia do que era aquele recurso, sem clareza alguma, sem conhecimento teórico, muito menos prático, achou que poderia vencer.

Como podem imaginar, foi um desastre. E claro, a culpa não era minha, mas do STJ. O recurso especial era um recurso impossível, pelo menos para mim, naquele momento.

A razão do meu fracasso, naquele ponto, entre outras que falarei ao longo deste texto, foi subestimar a força obstativa que esse recurso tem. Foi desprezar que o sistema constitucional, corroborado pela visão moderna de aproximação com a common law, foi desenhado para que existam poucos deles, escolhidos, realmente especiais, alguns selecionados e eleitos para uniformizar a interpretação da lei federal no Brasil inteiro. Eu, querendo aumentar a indenização do meu cliente, que já era razoável naquele ponto, não tinha percebido ainda a grandeza disso. Acho que quase ninguém percebeu ainda.

E em razão disso, de os participantes desse jogo ainda não terem entendido bem o objetivo final do jogo maior que o REsp propõe, os jogos menores do dia a dia continuam ocorrendo e, para esses, o tribunal tem regras rígidas: os óbices de admissibilidade. Quer você queria ou não, quer você aceite ou não, eles existem e estão todos os dias desafiando os mais atentos e preparados causídicos.

Por mais que isso não soe simpático ao leitor, diria que essas regras rígidas são imprescindíveis ao funcionamento da Corte da Cidadania, sob pena de se tornar inoperante. Para se ter uma ideia, antes de o novo Código de Processo Civil entrar em vigor, em sua redação original (em que não haveria juízo prévio de admissibilidade), foi feito um estudo interno pelos órgãos administrativos do STJ e chegou-se à conclusão que em pouco tempo se receberia 1 milhão de processos por ano.1 Mas, mesmo com a volta do juízo prévio de admissibilidade (LEI 13.256, DE 4 DE FEVEREIRO DE 2016) esse número ficará por volta de 430 mil processos neste ano de 2021.2

E quando se fala em óbices de admissibilidade é o momento em que o REsp se torna egóico. Longe de querer adentrar às explicações técnicas para essa expressão, apenas a uso aqui no sentido de se experimentar um espaço de "sofrimento" e angústia como eu senti quando tive meu recurso inadmitido, de ter o ego ferido.

E quando se está ferido apontam-se os dedos na tentativa de achar culpados: jurisprudência defensiva; omissão da Corte em cumprir sua função; gestão de acervo; mera função de controle numérico de demandas; ministros que não leem as petições; robôs que estão fazendo as decisões... e assim vai. Para onde isso leva? Respondo: lugar algum.

Existe um "sofrimento" incrustrado na repetição desse mantra depreciativo ao STJ que se tornou lugar comum na comunidade jurídica. Mas grande parte do "sofrimento" associado ao REsp está ligado a um conceito espiritual: a resistência, a não aceitação daquilo que é! Nessa linha, na resistência estamos brigando, não aceitando aquilo que está aqui agora, travando uma batalha com a realidade, lutando contra a natureza das coisas, dividindo nossa energia, cansando.

Desde que começamos a pensar sobre os pensamentos, ou como diz Harari3, a sermos criativos, começamos a travar essa luta interna.

Porém, como seres conscientes, podemos escolher não resistir ao que está aqui agora, não resistir à realidade, não resistir ao que o mundo nos apresenta, aceitando aquilo que é! Quando fazemos assim a energia de resistência se dissolve, a paz surge, a força se restabelece, pois não há conflito, apenas aceitação.

Ao longo da minha jornada com o recurso especial e o agravo em recurso especial, felizes são os poucos que pararam de resistir, que se entregaram à realidade e conseguiram entender como o tribunal funciona, porque, como disse Pascal, "A grandeza do homem é grande na medida em que ele se conhece miserável"4.

Reconhecer a própria miserabilidade, no STJ, é um ato de aceitação da realidade, um ato de humildade. Um reconhecimento de que existem muitas regras que precisam ser seguidas e que essas regras fazem parte de um sistema maior e de que não adianta brigar contra esse sistema e contra as regras, responsabilizando o tribunal.

Além disso, como ato de não resistência, não seria mais sábio entender como o STJ funciona para, então aproveitar essa sabedoria nas petições, na abordagem interna e externa do REsp?

Mas não adianta, também, somente entender essa natureza egóica. O simples entendimento não leva à internalização. É apenas metade do caminho. As palavras somente ganham poder à medida em que conseguimos transformar isso em nossa experiência. É necessário dissolver o ego. Para então, dissolver o recurso especial egóico, é necessário internalizar algumas realidades com as quais a Corte trabalha, para que se possa soltar essas resistências e fluir com o REsp.

Como primeira e mais importante contribuição para o desaparecimento do REsp egóico, a realidade a ser assimilada é: não leve para o lado pessoal. O STJ não está te perseguindo. Na maior parte do tempo ele nem sabe quem você é, e isso é bom. A análise dos óbices é feita com procedimento roteirizado e sistematizado, de forma objetiva, o que, por mais que possa soar frio, está totalmente alinhado com o princípio da impessoalidade.

A segunda realidade a ser internalizada, como já disse antes e agora eu explico, é a força obstativa que esse recurso tem. Ele foi feito para ser um destruidor de pretensões, de forma geral e em sua maioria. Aceite isso incondicionalmente.

Apenas para ilustrar como esse é um mecanismo necessário, a Suprema Corte Americana recebe em torno de 8.000 pedidos de julgamento por ano e julga cerca de 1% deles5, enquanto o tribunal da cidadania vai receber em torno de 430 mil pedidos neste ano de 2021 e tem que julgar todos eles.6

A terceira realidade evidente, que precisa ser aceita é a de que o tribunal, apesar de ter justiça em seu nome, não pode e não deve estar preocupado em entregar a justiça ao caso concreto. Deve sempre ser buscado como efeito indireto de sua atividade, mas não seu objetivo principal. Quanto antes essa máxima for aceita, mais cedo você vai encontrar paz. Pela própria definição constitucional o STJ não é terceira instância. Isso precisa ser superado.

A quarta e uma das mais doloridas e combatidas, é que o STJ é um tribunal difícil de ser acessado. O recurso especial e o agravo em recurso especial são recursos extremamente complexos, cheios de detalhes e requisitos.

Com muita sinceridade, se você não souber como a Corte aplica os óbices de admissibilidade, sua chance é muito baixa. Para se ter uma ideia, hoje o STJ aplica, mais ou menos, de forma ampliada e com variações, dezenas de óbices de admissibilidade,7 cada um com sua especificidade, com sua dimensão vertical de aplicabilidade.

Assim, não adianta, como eu fiz, pegar a petição nos modelos do computador, ou achar alguma na internet. Essa é uma receita para o fracasso. Pode ser uma base, mas a construção do REsp começa na comarca e se estende para a segunda instância. Se isso não for cuidado, não raras vezes o recurso já chega irremediavelmente inadmissível ao STJ.

Isso nos leva à quinta realidade: de que o STJ não quer julgar o mérito do seu processo. Não por desídia ou preguiça, mas, para que isso aconteça, você precisa merecer, processualmente falando. Existem muitas barreiras a serem transpostas para que se chegue a esse ponto e, apenas alguns merecedores terão essa honra. Apenas para ilustrar essa afirmação, em 2020, em torno de 70% dos agravos e 25% dos recursos especiais não foram conhecidos8. Isso, sem mencionar que esse número é apenas os que chegaram à Corte, sem levar em conta o que foi inadmitido na origem, que, apesar de não haver dados oficiais, aparenta ser muito maior.9

Assim, antes de se preocupar com o mérito, se o seu direito é "bom", preocupe-se com a admissibilidade.

A sexta realidade, conectada com a quarta é: a Súmula 7 do STJ não é a vilã. Aliás, ela está certa. Não cabe ao tribunal reanalisar os fatos. Como explicado acima, a Súmula 7 é apenas mais um óbice entre as dezenas possíveis. Não se descura que ela é a mais aplicada e a mais controversa, que rende muitos memes engraçados, mas, sem dúvidas, tem seu sentido e sua lógica.

Trazidos esses convites à aceitação da realidade, a intenção aqui é mostrar a existência desta resistência incrustrada na atividade e incentivar que se soltem esses pré-conceitos sobre o STJ, reconhecendo a limitação e o papel da Corte e a própria limitação e o próprio papel do advogado em todo esse jogo.

Assim, a invocação é deixar de lado o recurso especial egóico, cheio de citações jurisprudenciais, trazendo teses incríveis de mérito, merecedores inclusive de livros solos. Pode até ser uma tese inovadora, que vai mudar o mundo jurídico, mas, de nada adiantará se ela sequer for lida porque você não recolheu as custas.

Não adiantar falar sobre a "instrumentalidade das formas", pois ninguém que está analisando seu processo se importa com isso se você não trouxer o comprovante do feriado local.

É inútil vociferar o absurdo da jurisprudência defensiva, se você não discutiu a tese no acórdão e tenta discutir isso no STJ.

É insuficiente dizer que o CPC traz a primazia do mérito se você quiser discutir os fatos relevantes do seu processo aqui no STJ.

Por outro lado, é importante entender que o STJ, como Corte de Vértice, vocacionada a ser uma Corte de Precedentes, inspirando-se no sistema da Common Law, precisa ter requisitos de admissibilidade para viabilizar seu funcionamento. Eles são saudáveis ao sistema, quer você goste ou não.

Então, a não resistência aqui significa não brigar com essa realidade. Não adianta. Isso é o que está posto. A paz só surge quando a briga cessa.

E, ao invés de brigar com a realidade, não seria melhor entender como essa realidade funciona para que você possa fluir com ela?

Ao invés de brigar com o STJ, querendo provar que está certo, por que não deixar o ego de lado e fazer o que tem que ser feito, para depois discutir se o tribunal está certo ou errado? Entenda que não conclamo a aceitar passivamente qualquer óbice que a Corte aplique. O que trago, de forma simplificada é: faça o que precisa ser feito e, então, depois discuta o que quiser discutir. Uma visão prática e pragmática.

Fluir com a realidade dos recursos para o STJ significa, ao invés de dizer que o tribunal se furta a julgar, estudar os óbices na jurisprudência e entender quais são para que possam ser superados.

Por que discutir os fatos no STJ se você deve discutir isso na origem, deixando o recurso preparado para que possa ser conhecido, uma vez que os fatos soberanamente delineados no acórdão podem ser analisados na Corte para se estabelecer a melhor regra jurídica para eles?

Por que desafiar a paz e esperar para apresentar o recurso especial no último dia do prazo, sabendo toda a instabilidade do entendimento do STJ com relação ao feriado local, intimação eletrônica, prazo contado pelo sistema do tribunal de origem etc.?

Quando acreditamos muito em uma ideia ela se torna tão forte que transforma o resto em irrelevante. Bradar contra o recurso especial e a suposta jurisprudência defensiva é uma dessas ideias que toma a nossa atenção, tornando-se atrativa a ponto de virar uma desculpa sempre pronta para afagar o ego ferido. Solte essa ideia.

Assim como na vida, no recurso especial estamos sempre brigando contra a realidade. Mas não adianta, porque a realidade sempre vence, a despeito de nossos desejos internos. Então solte, dissolva e flua, na vida e no recurso especial.


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1 Estudo não disponível para consulta porque feito para uso interno das unidades administrativas do STJ.

2 Estudo não disponível para consulta porque feito para uso interno das unidades administrativas do STJ.

3 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM Editores S. A., 2018.

4 http://www2.uefs.br/filosofia-bv/pdfs/pascal_02.pdf

5 SURIANI, F. M. F. . A Suprema Corte Americana e o Writ of Certiorari. Publicações da Escola da AGU: Direito, Gestão e Democracia , v. 10, p. 187, 2018.

6 É sabido que, apesar de serem cortes de Vértice, elas funcionam de forma muito diferente. O exemplo foi trazido apenas para pontuar a discrepância no número de processos que cada uma recebe e julga por ano.

7 Essa quantidade é baseada em estudos pessoais, na minha experiência trabalhando 14 anos na área de admissibilidade do STJ.

8 https://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/verpagina.asp?vPag=0&vSeq=357

9 Estimativas não oficiais colocam essa proporção em 1/8, ou seja, a cada REsp admitido, oito são inadmitidos pela origem

Tiago Irber

Tiago Irber

Mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Unb, servidor do STJ, pós-graduado em direito público e professor de meditação.

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