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É inconstitucional exigir o uso da plataforma consumidor.gov como condicionante do interesse de agir

Basta isso para ver o prestígio que vem ganhando essa construção que pretende oferecer resposta a um quadro de crise numérica da justiça civil.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Atualizado às 13:03

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Reflexões levam tempo1. Em sua coluna para este Migalhas, no dia 17 de julho de 2019, os professores André Roque, Fernando Gajardoni, Luiz Dellore, Marcelo Machado e Zulmar Duarte defenderam a seguinte tese: nos conflitos consumeristas, em regra, não teria interesse de agir o autor-consumidor que não comprovar ter tentado uma solução extrajudicial por meio da plataforma consumidor.gov.br2, antes do ajuizamento da demanda, isso "desde que se trate de fornecedores previamente cadastrados no sistema e que tenham histórico razoável de solução extrajudicial de litígios por esta plataforma"3. Poucos dias depois, publicaram artigo defendendo idêntica tese Daniel Becker, Eduardo Bruzzi e Erik Navarro Wolkart4. Em janeiro de 2019, este Migalhas já noticiara a extinção de um processo sem julgamento de mérito5, na comarca de Araquari (SC), sob este fundamento. Basta isso para ver o prestígio que vem ganhando essa construção que pretende oferecer resposta a um quadro de crise numérica da justiça civil.

O primeiro texto mencionado trata o tema sobretudo sob perspectiva constitucional. Defende, em suma, que não viola a norma atribuível ao art. 5º, XXXV, da Constituição da República, ou a seu clone infraconstitucional, exigir-se requerimento extrajudicial prévio como condicionante da propositura de uma demanda perante o poder judiciário. Trata-se, escrevem os autores, de conferir à garantia do acesso à justiça conteúdo mais adequado às exigências inexoráveis da realidade. Em apoio dessa proposta, citam entendimentos do STF e do STJ. O primeiro, exarado no julgamento do Recurso Extraordinário 631.240, é de que não há interesse de agir para demandar com vistas a obter benefício previdenciário se não houver prévio requerimento administrativo ao INSS. O segundo, extraído do julgamento do REsp 1.349.453/MS, é de que não tem interesse para propor ação de exibição de documentos bancários quem não os tiver antes debalde solicitado ao banco. Daí e de outros exemplos, seguido por razoáveis ponderações sobre essa conclusão, sustentam que se deve exigir do autor a comprovação da utilização da plataforma consumidor.gov.br, sob pena de indeferimento da inicial por falta de interesse de agir.

Antes de discutir o mérito da tese, cumpre observar que os poderes do magistrado são poderes-deveres; assim, quando nossos colegas dizem que "é lícito ao juiz determinar ao autor que comprove ter utilizado previamente a plataforma consumidor.gov.br", querem dizer também que é ilícito não o fazer, que a parte demandada tem direito subjetivo a não ser submetida a um julgamento de mérito nessas condições, e que o magistrado não pode proferir esse julgamento. Parece-nos, portanto, que há entre a proposta de releitura da garantia do acesso à justiça e a conclusão específica acerca da plataforma consumidor.gov.br uma troca, sem autorização lógica, de modal deôntico. Sem explicação, o ato de exigir o prévio uso do sistema vai de permitido a obrigatório. Isto é: ou a norma constitucional não apenas não o proíbe, mas o impõe, ou da constitucionalidade de uma norma infraconstitucional hipotética deduziu-se a existência mesma dessa norma.

Para escapar dessa arapuca lógica, a questão deve ser discutida em dois planos, distintos mas não desconectados. Duas questões precisam ser respondidas: (i) existe norma infraconstitucional que imponha a prévia utilização da plataforma consumidor.gov.br nas demandas consumeristas? (ii) Se existe, essa norma é constitucional? Se não existe, seria constitucional sua criação?

O que o primeiro texto mencionado sugere, e o segundo texto diz claramente, é que essa norma seria o próprio art. 17 do CPC, segundo o qual é preciso ter interesse para postular em juízo. É dizer: a questão tem como pano de fundo uma disputa sobre o conteúdo do conceito de interesse de agir e, em especial, sobre o elemento necessidade.

Necessidade da tutela jurisdicional, como elemento do interesse de agir, quer dizer impossibilidade de realização do direito material sem ela. Os exemplos clássicos de falta de interesse-necessidade são a cobrança judicial de dívida não vencida ou já paga, a consignação em pagamento proposta contra credor que não se negou a receber a prestação. São situações em que a realidade não apresentou entraves à realização do direito.

A utilização de um método extrajudicial de conflitos, por outro lado, por definição supõe um conflito. Quem não está em conflito não precisa conciliar. Quem vai à plataforma consumidor.gov.br buscar uma solução para um problema já se afirma diante de lesão a seu direito, de obstáculo que a vida apresenta à sua efetivação. Trocando em miúdos, para que o uso da conciliação tenha sentido já é preciso estar presente o interesse-necessidade em sua acepção tradicional. A respeito do interesse de agir, vale menção o ensinamento de Liebman, no sentido de que "seria uma inutilidade proceder ao exame da demanda para conceder ou negar o provimento postulado quando na situação de fato apresentada não se encontrasse afirmada uma lesão ao direito ou interesse que se ostenta perante a parte contrária.."6. Por isso esse autor define o interesse de agir como "relação entre a situação antijurídica denunciada e o provimento que se pede para debelá-la mediante a aplicação do direito"7. Para se chegar ao estágio de conciliação, há uma suposta relação atinjurídica denunciada pelo consumidor, que poderia ser resolvida pelo judiciário, se a ele tivesse sido levada essa questão. Se não houvesse essas circunstâncias, não haveria por que conciliar.

A tese dos autores aqui discutida, pois, propõe ampliar o conteúdo do interesse-necessidade de modo a tornar sua existência duplamente condicionada. Tem-no somente quem (i) se afirma titular de um direito subjetivo lesionado ou ameaçado, em hipótese na qual o judiciário poderá intervir, a ser possível um provimento adequado e tempestivo; (ii) fracassou em tentativa de fazer cessar essa lesão ou ameaça por via autocompositiva.

Há duas razões pelas quais essa disputa entre o conceito "tradicional" e o "ampliado" de interesse de agir, que reflete a disputa entre as duas normas excludentes entre si atribuíveis ao art. 17 do CPC8, deve-se resolver em favor do tradicional. A primeira é, simples e justamente, porque é o tradicional. Os conceitos jurídicos não têm correspondente de verdade, e valem pela força do acordo semântico que há sobre eles. Não se pode alterar os sentidos das palavras, ao arrepio das convenções semânticas, para alterar as respostas do direito. Salvo em hipóteses de amplo aprofundamento e pesquisa, a adoção de novas interpretações sem uma ampla reflexão não nos parece ser o melhor caminho.

A segunda razão joga-nos de volta para o plano constitucional da discussão. Diz o texto do art. 5º, XXXV, da Constituição que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Tirar-se daí norma que não torne quase insignificantes as possíveis restrições do legislador infraconstitucional ao direito de ação é interpretação descompromissada com o texto. Parece óbvio que a Constituição não admite condicionantes outros da apreciação jurisdicional que não a mera existência de afirmação de lesão ou ameaça a direito.

Para Jorge Miranda, a interpretação conforme a constituição é a técnica de fiscalização constitucional que se funda sobre a presunção de constitucionalidade das leis9. Se há duas interpretações possíveis para um texto infraconstitucional, e uma é constitucional e outra não, a interpretação alinhada com a Constituição é a correta.

No caso, apenas com o conceito tradicional do interesse de agir há norma constitucional.

A Constituição de 1824, por exemplo, que em seu art. 161 dispunha que "Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum", seria compatível com o conceito ampliado de interesse de agir. A de 1988 não é.

Ademais, os julgados citados para corroborar a tendência de releitura do acesso à justiça e do interesse de agir operam com o conceito tradicional de interesse-necessidade. Quanto o STF discutiu a necessidade de prévio requerimento ao INSS para qualificar o interesse de agiu, fê-lo em termos da existência ou não de dever da autarquia de conceder benefício previdenciário de ofício. O debate não era em torno da tentativa remoção pela via extrajudicial de uma lesão a direito, mas da própria existência dessa lesão. Prova disso é que, no mesmo julgado, o STF entendeu que não é necessário requerimento administrativo prévio para propor demanda que vise à revisão, ao restabelecimento ou à manutenção de benefício anteriormente concedido10: quando o INSS estebelece um benefício, tem o dever de conceder benefício correto e, ao não fazê-lo, lesiona o direito do segurado. O debate sobre os deveres da autarquia não traz novidades conceituais para o interesse de agir: se há lesão, ao menos segundo as alegações feitas em juízo, há interesse; se não, não.

A obrigatoriedade de utilização da plataforma consumidor.gov.br antes de propor demanda judicial, assim, não encontra amparo em lei, e, caso encontrasse, essa lei seria inconstitucional. Ainda que a crise da justiça seja grave, qualquer proposta de solução que não esteja em consonância com a constituição não deve prevalecer.

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1- Este texto é feito em homenagem a Jorge Amaury Maia Nunes, mentor intelectual de gerações.

2- Disponível aqui.

3- Disponível aqui.

4- Disponível aqui.

5- Disponível aqui.

6- LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 3ª ed. Vol. 1. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros Editores, p. 206.

7- LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 3ª ed. Vol. 1. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros Editores, p. 207.

8- Destacando-se a distinção aqui feita entre texto e norma, sendo a norma o produto da interpretação do texto legal (GUASTINI, Riccardo. Teoria e dogmatica delle fonti. Milano: Giuffrè Editore, 1998, p. 16)

9- MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo VI. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 81

10- "Na hipótese de pretensão de revisão, restabelecimento ou manutenção de benefício anteriormente concedido, considerando que o INSS tem o dever legal de conceder a prestação mais vantajosa possível, o pedido poderá ser formulado diretamente em juízo (...)" (STF - RE: 631240 MG - MINAS GERAIS, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 03/09/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-220 10-11-2014)

João Pedro de Souza Mello

João Pedro de Souza Mello

Mestrando e Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Advogado.

Rodrigo Nery Cardoso

Rodrigo Nery Cardoso

Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Advogado.

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