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A judicialização e a dupla regulação da saúde suplementar no Brasil

A importante análise da judicialização da saúde suplementar e a dupla regulação que sofrem os planos de saúde visualizando o conflito de normas que impactam diretamente nos usuários desse sistema.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Atualizado às 13:23

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A importância do tema propicia aos estudiosos do direito, aos consumidores uma visão ampla sobre a crescente judicialização da saúde suplementar e a interferência do poder judiciário em normas regulamentadas pela ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Confere o art. 6º da CF/88, "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

Podemos observar que o constituinte elencou o direito a saúde com importância diferenciada, sendo denotado em capítulo próprio, entrelaçado intrinsecamente com o direito a dignidade da pessoa humana e o direito a vida.

Em consonância com o art. 6º, o art. 196, estabelece que o direito a saúde é um direito de todos, dever do Estado, vejamos: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Perceba que o Constituinte deixa claro, que a saúde é um direito de todos e obrigação do Estado, onde o legislador reconheceu como direito social tendo o poder público por obrigação formular políticas públicas sociais e econômicas que visem a recuperação e a proteção da saúde.

Assim, a proteção constitucional dada à saúde seguiu a linha mundial sob ótica preventiva, promocional e curativa, impondo ao Estado que forneça acesso de modo universal a essas medidas.

Deste modo o art. 6º estabelece o direito a saúde como direito fundamental e o art. 196 como capítulo próprio do direito à saúde, estabelecendo em sentido amplo o seu conceito e o acesso universal.

Adentrando na saúde suplementar a CF/88 no seu art. 199, permitiu a participação da iniciativa privada na promoção da saúde de forma suplementar/complementar. Como o próprio nome sugere, a participação da iniciativa privada suplementa o Sistema Único de Saúde.

Assim, podemos concluir que o sistema de saúde no país é dual ou híbrido com a participação pública e privada, aquele que utiliza o SUS é chamado de usuário e está sob fiscalização do ministério da Saúde e aquele que utiliza o sistema privado é chamado de consumidor com observação fiscalizatória da ANS.

O limbo jurídico e os conflitos normativos tiveram início com o advento da lei Federal 9.656/98, fazendo um traçado entre os planos regulamentados e os não regulamentados, trazendo diversos questionamentos judiciais sobre a cobertura de procedimentos.

No Brasil a judicialização da saúde cresceu de forma exponencial a partir dos anos 2000 onde o judiciário se aprofundou mais sobre o assunto, devido ao aumento de demandas sobre o tema, até então não muito rotineiro. O aumento da demanda sobre a matéria trouxe a seriedade de melhor organizar e sistematizar o judiciário, visto que, para muitos o tema era novo e fazia parte de uma nova geração temas que dominava o judiciário, chamado de temas da nova era.

As demandas judiciais na saúde tomou uma proporção tão gigantesca que do ano de 2008 até 2017 houve crescimento de um porco mais de 130%, alcançando 498.715 processos nesse período. Tais números não impactam somente o judiciário mais também no ministério da Saúde que percebeu um aumento de 13 vezes nos últimos 7 anos com ações judiciais.

Sendo assim, é percebido que a crescente judicialização da saúde se dá na maioria das vezes pela falta de assistência do Estado com seu dever de cumprir com o regramento constitucional, sendo o poder judiciário responsável por efetivar esse direito garantido.

Com a ausência do Estado, o judiciário tem obrigado as operadoras de saúde a cumprir o papel do poder público, desvirtuando o art. 199 da CF/88 e criando a maior insegurança jurídica do Estado brasileiro.

Os entraves judiciais vão desde a disponibilização de um simples medicamento, passando pelos mais complexos, como também aqueles de cunho experimental que muita das vezes não tem autorização da ANVISA, onde os Tribunais têm tomado decisões de cunho individual ou coletivo que impactam de alguma forma no setor da saúde.

A prática da judicialização tem se tornado um hábito, visto que, o autor já entra com processo contra a operadora com sentimento de ganho de causa e os  magistrados na maioria das vezes com a falta de apoio técnico acaba impondo decisões desarrazoadas mesmo que não seja sua obrigação de arcar gerando impacto financeiro em todo sistema da operadora.

O excesso de judicialização sobre os contratos firmados entre as operadoras e os beneficiários tem virado cada dia mais objeto de preocupação das operadoras, visto que, estamos diante de um setor altamente regulado e os seus contratos já são elaborados de acordo com as diretrizes mínimas estipulados pela ANS.

Assim os impactos são altamente negativos, uma vez que, o excesso de demanda neste segmento além de gerar um verdadeiro rombo econômico, inviabiliza a previsibilidade e a operacionabilidade deste tipo de segmento no país, sendo necessário buscar meios eficazes para tentar reduzir as demandas.

Quando falamos em meios eficazes de redução não se trata do autor deixar de buscar o poder judiciário, mas sim o beneficiário buscar o seu direito quando houver flagrante desrespeito as normas firmadas entre as partes, o que na maioria das vezes não é o que acontece.

Analisando diversas decisões judicias nos mais variados tribunais de justiça do país, as decisões carecem de apoio técnico científico, inclusive a falta de citação dos próprios NAT-jus, que foram criados com finalidade de prestar apoio aos magistrados em suas sentenças.

Ficou evidenciado que o embasamento das decisões é único e exclusivo com foco no direito a saúde, direito a vida, dignidade da pessoa humana, trazendo como direito absoluto, sabemos da importância desses direitos, mas por outro lado não existe direito absoluto.

Toda decisão que obriga a operadora de saúde a arcar por algo que ela não está obrigada a custear gera dispêndio econômico e todo sistema é obrigado a pagar por este custo nos aumentos anuais.

A exemplo do que estamos falando podemos citar o "home care", que  é um sistema de cuidado domiciliar em que o paciente tem todo o atendimento em sua residência, a ANS já se manifestou no sentido que não existe obrigatoriedade de cobertura por parte da operadora exceto se houver em contrato ou desospitalização por parte da própria operadora.

Mas a realidade é totalmente diferente, a partir do momento que operadora indefere o pedido de assistência domiciliar o beneficiário busca a justiça e na grande maioria das vezes o pedido liminar é deferido. Assim, é observado o perigo que a própria justiça cria com a insegurança jurídica, atropelando o contrato entre as partes, sendo neste caso uma negativa devida em razão da não obrigatoriedade de custeio por parte da operadora, no final, quem arcará esse custo é o próprio sistema.

De tudo que fora abordado podemos destacar alguns pontos que são cruciais e perigosas para o excesso de judicialização por exemplo a insegurança jurídica, o incentivo a máfia da saúde, impacto econômico financeiro da operadora, o surgimento de jurisprudências sem qualquer fundamento técnico científico.

A dupla regulamentação da saúde suplementar é algo que tem se tornado cada vez mais comum, infelizmente o poder judiciário na maioria das vezes tem interferido em assuntos já devidamente regulados, não estamos falando em negativa de direito, mas sim a concessão de direitos inexistentes que inclusive já possuem regulamentação de uma agência reguladora estatal.

Não é novidade que a saúde suplementar brasileira é um setor altamente regulamentado, fiscalizado seja ela nas normas de proteção aos beneficiários, nas diretrizes governamentais para o setor, como também uma severa fiscalização no equilíbrio econômico financeiro de cada entidade.

Sob a ótica simplista regulação nada mais é do que a intervenção estatal em determinado assunto entrelaçando e caminhando lado a lado entre direito e poder econômico. A própria regulação traz a ideia de medida preventiva, produzir normatividade, utiliza critério técnicos científicos e se vale da multa ou qualquer outra punição para combater a irregularidade.

O enfoque da regulação é justamente buscar um equilíbrio entre as partes envolvidas em conciliação aos valores da sociedade justa e moderna através de critérios jurídicos e técnicos definindo os direitos e deveres de cada um.

Podemos afirmar que se caso o poder judiciário intervém de forma contrária a uma norma regulada, podemos afirmar que o judiciário está fazendo um controle de constitucionalidade de modo discreto.

A saúde suplementar como o próprio nome já denomina possui a sua essência de suplementar secundária com fundamentos baseados na onerosidade, atuaridade, sinistralidade e a contraprestação desses serviços são baseados no perfil de cada beneficiário.

Não podemos cobrar das operadoras de saúde a mesma assistência de saúde que o Estado tem o dever de efetivar, a partir do momento que isto acontece transferimos a responsabilidade do ente estatal para iniciativa privada caracterizando a partir deste momento um grande imbróglio constitucional.

A CF/88 é clara ao afirmar que a saúde é um dever do estado e que de modo suplementar a saúde pode ser explorada pela iniciativa privada, mas a Carta Magna deixa explícito que a obrigação é estatal.

Os limites da prestação dos serviços ofertados pelas operadoras de saúde são diferentes do poder público, incumbindo ao judiciário analisar minunciosamente caso a caso certificando que a pretensão autoral não seja de cunho social de competência do poder público.

A interferência do poder judiciário em atos já regulamentados que não tenham quaisquer vícios ou ilegalidades gera mais prejuízos do que benefícios, além disso essa interferência é totalmente inconstitucional de modo claro observamos a interferência do judiciário em outra esfera de poder fazendo controle de uma norma que não apresenta qualquer ilegalidade ou ferimento de direito.

De modo discreto o poder judiciário está fazendo um papel que não compete a ela, ao tempo que emite decisões de temas que foram regulados, está exercendo o papel de regular e legislar o que está fora da sua atribuição constitucional.

A intervenção desenfreada judicial gera lacunas negativas aos beneficiários do sistema, ano após ano os beneficiários reclamam dos altos reajuste da prestação de saúde e muitos deixam de ter planos de saúde por que não conseguem pagar, de modo escondido o poder judiciário causa esse reflexo de modo direto.

O setor já é devidamente regulado com normas e atos de uma agência reguladora vinculado ao ministério da Saúde que possui capacidade técnica para regular o setor com foco no equilíbrio econômico das empresas prestadoras de serviços de saúde com proteção nos direitos dos beneficiários.

Por fim, fica evidenciado que modelo jurídico brasileiro necessita de forma urgente, definir a segurança jurídica sobre o tema,respeitando as decisões que já possuem regulações definidas, acatando a autonomia da ANS como  órgão regulador, claro, desde que as regulações não infrinjam normas de hierarquia superior, interferindo o poder judiciário em casos excepcionais quando não existir regulação ou quando a norma for de encontro a preceitos constitucionais.

O poder judiciário deve entrar como pacificador e efetivador dos direitos não prolatando sentenças sem fundamentos causando diversos problemas estruturais no sistema de saúde suplementar no país.

Rodrigo Santos de Araújo

Rodrigo Santos de Araújo

Advogado do Escritório Rodrigo Araújo Advocacia Especializada. Especialista em Direito Médico, biodireito e bioética pela Universidade Católica do Salvador

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