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Da defesa invertida da isonomia: o caso das ADIns da desigualdade

O poder de requisição da Defensoria Pública não é um privilégio. É uma forma de equilibrar a balança da justiça em favor dos seus assistidos, os brasileiros mais vulneráveis

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Atualizado às 14:55

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Têm sido alvo de discussão no meio jurídico, na mídia e nas redes sociais as ADI's promovidas pela Procuradoria Geral da República com o intuito de declarar a inconstitucionalidade, sob a alegação de violação à isonomia, do poder de requisição de informações e documentos de órgãos públicos por membros da Defensoria Pública. Foram explorados nas ADIns outros fundamentos, mas que dependem essencialmente do enfretamento do citado.

A referida prerrogativa para quem atua com demandas individuais de massas ou mesmo em tutela coletiva revela-se verdadeira necessidade e não um privilégio.

Não é demais lembrar que a Defensoria Pública, nos termos da Constituição da República de 1988, erige-se como instrumento do regime democrático, incumbindo-lhe a promoção dos direitos humanos e a defesa, no âmbito judicial e extrajudicial, dos direitos daqueles que necessitem de sua assistência jurídica. Muitas de suas atribuições são sobrepostas inclusive com as do Ministério Público, havendo, por diversas vezes, a convergência de interesses na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos de potenciais hipossuficientes.

Se forem procedentes as ADI's, por que motivo também não seria possível questionar a mesma prerrogativa dada ao Ministério Público? Qual seria sua efetividade na tutela coletiva ou na defesa de direitos individuais indisponíveis se fosse cassado seu poder de requisição de informações e documentos? O fundamento que hoje é utilizado para censurar a atuação da Defensoria Pública pode ser utilizado no futuro para o mesmo fim contra o Ministério Público.

De qualquer forma, o intuito do texto não é alertar apenas ao perigo da procedência do decote do poder de requisição, mas enfrentá-lo no mérito: por que não há violação à isonomia? A resposta é simples: porque a isonomia não se concretiza tão somente com tratamento igualitário cego, a isonomia também se revela quando a pura igualdade concretiza verdadeira desigualdade, a exemplo de não haver atendimento preferencial para idosos ou deficientes em fila de banco ou supermercado.

Não é diferente no âmbito judicial, como no caso de inversão do ônus da prova em demandas consumeristas ou quando for excessivamente difícil para uma das partes produzi-la em demandas cíveis.

É uma premissa falsa o suposto desequilíbrio da relação processual na concessão do poder de requisição. Muito pelo contrário, em verdade, o assistido pelo órgão geralmente apresenta hipossuficiência informacional, o que justifica o tratamento diferenciado.

Não há como se falar em desequilíbrio processual pela atuação da Defensoria Pública quando de um lado há uma pessoa em situação de rua que vê no órgão sua única chance de acesso à justiça e do outro há uma grande instituição financeira defendida por escritórios com estruturas milionárias. Não há como se defender como privilegiado quem não tem uma casa para morar face a quem representa pessoa jurídica com sede na Faria Lima.

É uma verdadeira inversão sobre quem é o desfavorecido. As pessoas que são atendidas pela Defensoria Pública muitas vezes tomam o primeiro café do dia no órgão. Não é raro muitos assistidos andarem quilômetros para serem atendidos nos núcleos, já que não têm dinheiro nem sequer para o transporte coletivo.

Os supostos favorecidos não têm um décimo do conforto e muitas vezes nem sequer um décimo de conhecimento formal em relação a quem supostamente seria alvo da "desigualdade" da utilização da prerrogativa pela Defensoria Pública.

Todo Defensor Público sabe, inclusive, que essas pessoas muitas vezes apresentam dificuldade extrema em se expressar. Há um trabalho hercúleo, por ocasiões, até se descobrir a real pretensão do usuário do serviço. São essas pessoas as verdadeiras privilegiadas?

Não há paridade de armas quando duas clavas pesadas são dadas em um combate entre gigantes e pequenos, assim como não há isonomia quando há uma tentativa de obliterar instrumentos que visam reduzir assimetrias originárias do próprio estado de hipossuficiência.

Enfraquecer a Defensoria Pública é conduzir a sociedade a penalizar o pobre duas vezes: uma ao estado de pobreza, que se justifica por si só, o outro que, por sua condição social, terá o acesso à justiça dificultado ou impossibilitado.

A quem interessa a inacessibilidade à justiça dos desvalidos e a frustração da promoção de seus direitos?

Raphael de Souza Lage Santoro Soares

Raphael de Souza Lage Santoro Soares

Defensor público federal e diretor Acadêmico da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef).

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