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Os recentes ajustes contábeis na história do orçamento brasileiro (da pedalada à motocada fiscal)

O resultado primário é importante, pois, caso ele seja negativo, significa que não há recursos para pagar a dívida pública do Brasil.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Atualizado às 09:31

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O governo federal brasileiro vive uma dura realidade orçamentária. Desde o ano de 2014,vem acumulando consecutivos resultados primários negativos. Nessesseteanos asomados déficits, em valores ajustados pelo IPCA, foi de R$1,6 trilhão1.

De forma resumida, resultado primário é a diferença entre tudo que o governo arrecada e tudo que ele gasta, sem considerar as receitas financeiras e as despesas relacionadas à dívida junto ao sistema financeiro (tarifas, juros e amortizações). Também estão excluídas das contas de apuração do resultado primário as instituições financeiras nas quais o governo tem participação ou é dono (como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, Banco do Nordeste) e as empresas estatais  que possuem capacidade de gerar receitas para sua própria manutenção, como Petrobras e Eletrobras.

O resultado primário é importante, pois, caso ele seja negativo, significa que não há recursos para pagar a dívida pública do Brasil. Mesmo quando positivo o resultado primário, a dívida pode aumentar, no caso de o Brasil precisar buscar recursos no mercado       para financiar as despesas financeiras excedentes das receitas.

Como se sabe, notícia ruim não é o que o governo quer passar à população e, no caso do orçamento, também ao mercado financeiro. Mas ele é obrigado a prestar contas à nação, devido ao comando do art. 70 da Constituição Federal.

Assim, para atenuar a dura realidade que os números trazem, os últimos governos se valeram de artifícios contábeis para apresentar resultados mais favoráveis à população e ao mercado, em manobras envolvendo suas empresas e bancos que, como vimos acima, não são considerados na apuração do resultado primário.

A nossa história recente vem colecionando vários exemplos desses mecanismos "criativos", o pesquisador Marcos Mendes, no artigo "O que é 'contabilidade criativa'?2 cita alguns:

  1. O pagamento do máximo possível de dividendos de empresas públicas ao governo, entrando esses recursos no resultado primário do governo. Essa ação tende a enfraquecer as empresas que ficam sem recursos para reinvestir. Como exemplo do impacto dos dividendos, neste ano o governo federal receberá R$ 23,3 bilhões de dividendos da Petrobras3 que, de forma "extraordinária", antecipou boa parte do pagamento;
  2. Venda de patrimônio público a empresas sob gestão do governo, entrando os recursos da venda no resultado primário do governo, mesmo que não haja aumento patrimonial efetivo. O autor cita que em 2010 o Tesouro vendeu à Petrobras o direito de explorar cinco bilhões de barris de petróleo;
  3. Antecipação de receitas com a venda de créditos futuros, aumentando o resultado primário atual a custas do resultado primário futuro. Cita-se o exemplo ocorrido no ano de 2012, quando o BNDES comprou R$ 6 bilhões referente aos créditos dos royalties a serem pagos pela Itaipu Binacional ao governo federal durante o ano.
  4. Emissão de títulos públicos para empréstimo a bancos públicos para que esses façam empréstimos subsidiados a determinados setores da economia. Como é uma ação financeira, não impacta diretamente no resultado primário, e aparentemente também não aumenta a dívida líquida, pois há créditos a receber. O problema é que a qualidade da dívida piora, pois pode haver inadimplência dos empréstimos, e os juros que o governo recebe são menores que os juros que o governo pagou para emitir os títulos públicos. Esse procedimento ocorreu várias vezes durante o governo Dilma, envolvendo o BNDES, em valores que chegaram até R$ 300 bilhões;
  5. Adiamento de desembolsos, não os autorizando nos orçamentos ou inscrevendo-os em "restos a pagar", quando autorizados, empurrando-se o gasto para o ano seguinte, de modo a se favorecer o resultado primário atual em detrimento do exercício financeiro seguinte. Para se ter ideia da amplitude que essa prática simples do "pago quando puder (ou quiser, dada a possibilidade de novo calote)", o saldo dos restos a pagar que, em 2007/2008, era de R$ 62 bilhões, passou para R$ 228 bilhões, em 2014/20154, um crescimento de 368% em sete anos.

Uma outra maquiagem contábil nas contas públicas que ficou famosa é a conhecida "pedalada fiscal". Essa operação foi um dos fatores responsáveis pela abertura do processo de impeachment da presidente Dilma. Uma publicação do jornal Estadão definiu "pedalada fiscal" como:

"A 'pedalada fiscal' foi o nome dado à prática do Tesouro Nacional de atrasar de forma proposital o repasse de dinheiro para bancos (públicos e também privados) e autarquias, como o INSS. O objetivo do Tesouro e do Ministério da Fazenda era melhorar artificialmente as contas federais."5

Na prática, o Tesouro Nacional, nos anos de 2014 e 2015, utilizou o caixa de outras instituições para quitar suas obrigações tempestivamente, aumentando-se o déficit primário para comportar as "pedaladas". Devido às controvérsias daí decorrentes, o Banco Central revisou os critérios de apuração do recultado primário. Note-se que essa e outras práticas fiscais consideradas impróprias fundamentaram o impedimento da então Presidente da República.

Ciente desse novo contexto, o atual governo tem procurado respaldar em lei algumas propostas polêmicas nessa área. Nesse sentido, em 2021, a primeira dificuldade que o governo federal enfrentou foi ter que sancionar o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021, aprovado pelo Congresso Nacional com o valor subestimado de R$ 17,5 bilhões em despesas obrigatórias.

A preocupação no Palácio do Planalto era a de que a aprovação de um orçamento deficitário pudesse configurar crime de responsabilidade do Presidente. Para contornar esse problema, o Congresso Nacional aprovou o PLN 2/21 (lei 14.143/21), que retirou a exigência de compensações para gastos de despesas temporárias, contornando a Lei de Responsabilidade Fiscal, e concedeu maior autonomia ao Executivo no bloqueio de dotações discricionárias.

Outra inovação contábil respaldada por lei (lei 14.212/21) autorizou a possibilidade de aprovar aumento de despesa a ser compensado por proposta legislativa em trâmite com previsão de recursos para tal. Em outras palavras, os Poderes Executivo e Legislativo concordaram em gastar recursos que ainda não possuem previsão legal  de existirem. É colocar a carroça na frente dos bois. Em matéria da revista Veja esse episódio de "motocada" fiscal foi assim registrado:

"É algo apontado por alguns parlamentares como pedalada fiscal, alegando que a LDO está sendo alterada para contornar regras fiscais. Nesse caso, este tipo de manobra estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)."6

Um exemplo ainda mais recente dessa criatividade compartilhada foi a aprovação pela Câmara dos Deputados, da polêmica proposta de emenda constitucional conhecida como PEC dos Precatórios (PEC 23/21, do Poder Executivo). Diversos especialistas e veículos de imprensa destacaram que a medida dribla o teto de gastos e libera mais recursos para os governos utilizarem em ano eleitoral, como mencionado em reportagem do Jornal Nacional:

"No fim das contas, o governo federal terá R$ 90 bilhões a mais, e afirma que vai usar R$ 50 bilhões num substituto do Bolsa Família; R$ 24 bilhões para atualizar os benefícios previdenciários; R$ 6 bilhões para despesas que são atualizadas com a mudança no teto, como gastos com saúde e educação; R$ 2 bilhões iriam para outros Poderes; e sobrariam quase R$ 10 bilhões para outras despesas, incluindo emendas dos parlamentares."7

O Mapa Anual dos precatórios evidencia saldo de R$ 194,7 bilhões de obrigações judiciais transitadas em julgado pendentes de pagamento em todas as esferas governamentais. A PEC desvia recursos do pagamento dessas obrigações para outras finalidades e incentiva a ampliação do estoque dessas obrigações em desfavor de quem obteve decisão judicial favorável em ação contra os erários.

O que se observa, portanto, é que, depois do mencionado impedimento, as manobras orçamentárias são agora precedidas de autorização legislativa e com materialidade crescente. Dessa maneira, amplia-se também a desconexão entre as representações contábeis patrimoniais, orçamentária e fiscal. Essas seriam diferenças entre as "pedaladas" e as "motocadas" fiscais.

A contabilidade governamental não é a vilã da história. Ela permite fazer a leitura das contas e apresentar a realidade que os números escrevem. Em artigo   para o site Contábeis, o professor Flavio defende a importância da contabilidade para a sociedade:

"Cabe destacar que a Contabilidade não modifica atos e fatos, apenas atua em seu processo de reconhecimento e divulgação por meio das demonstrações contábeis que instrumentalizam o controle social."8 (grifo nosso)

Ao final, a gestão fiscal responsável do patrimônio público que previne riscos e corrige desvios, passa pelo resgate da correspondência entre as contabilidades patrimonial e orçamentária. Uma contabilidade de Estado não enganosa para a gestão das contas públicas deveria resguardar a relevância e a confiabilidade dos orçamentos, das metas e dos limites fiscais baseados em capacidade operacional, solvência geral e sustentabilidade patrimonial.

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1 Análise Resultado Primário. Tesouro Nacional. Disponível  aquiAcessado  em 12/11/2021.

2 Mendes, Marcos. O que é "contabilidade criativa"? disponível aquiAcessado em 15/10/2021.

3 Petrobras aprova novo pagamento de dividendos aos acionistas no valor total de R$ 31,8 bilhões. O Globo Economia. Disponível aquiAcessado em 14/11/21.

4 Tesouro Nacional, disponível aqui. Acessado em: 17/10/21.

5 Jornal Estadão. As 'pedaladas fiscais' do governo Dilma. Disponível aquiAcessado em 17/10/2021.

6 Revista Veja. Congresso aprova mudanças na LDO para encaixar Bolsa Família. Disponível aqui. Acessado em 17/10/2021.

7 Câmara dos deputados, disponível aquiAcessado em 13/11/21.

8 Souza, Flávio Luis Vieira. Orçamento Público: fake budget e não contabilidade criativa. Disponível  aqui. Acessado em: 17/10/21.

Carlos Murilo de Carvalho

Carlos Murilo de Carvalho

Consultor legislativo do Senado Federal, especialista em políticas públicas e gestão governamental pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP).

Daiana Kmiecik

Daiana Kmiecik

Assessora de Orçamento na Câmara dos Deputados, formada em Ciências Sociais pela Universidade do Contestado - UNC, com pós em Estado, Governo e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília - UNB e pós-graduanda em Orçamento no Instituto Legislativo Brasileiro - ILB.

Danielle Couto

Danielle Couto

Servidora do Senado Federal, assessora de orçamento da Liderança do Democratas e aluna da Pós-Graduação em Orçamento Público do Instituto Legislativo do Senado Federal- ILB.

Guilherme Knevitz

Guilherme Knevitz

Técnico Legislativo do Senado Federal, bacharel em Direito e pós-graduado em Direito Previdenciário.

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