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Breve análise quanto à aplicação da ciência inequívoca e o sistema processual eletrônico

Análise da aplicação da teoria da ciência inequívoca, em especial à sua consolidação na Jurisprudência, e seu repatriamento no sistema processual eletrônico (Pje).

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Atualizado às 09:02

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A jurisprudência formulou a tese da ciência inequívoca visando conceder uma maior segurança jurídica aos litigantes em respeito aos princípios processuais, estabelecendo ainda que a ciência inequívoca dos atos e termos processuais tem o objetivo de dar início ao prazo para manifestação, não existindo necessidade da prática de intimação ou citação.

Sua formulação se deve, em especial, ao Recurso Extraordinário 98.561, onde o STF, atento ao princípio da instrumentalidade, admitiu a validade do ato processual mesmo que divergente daquele estabelecido por lei, em razão do alcance de sua finalidade, não restando prejuízos as partes.

A decisão percussora proferida pela 2ª turma por votação unânime, na data de 25 de maio de 1986, em concordância com o acórdão do Recurso Extraordinário 86.936, foi assim fundamentado, conforme, o até então relator, o ministro Djaci Falcão:

Com a retirada dos autos do Cartório do Tribunal, no dia 15.08.80 (sexta-feira), pelo Chefe do Gabinete da Procuradoria-Geral do Estado, houve inequívoca ciência das decisões, com força de intimação. A retirada dos autos equivale a intimação, sob pena de se tratar desigualmente as partes litigantes.

Sob a influência da lição de Moniz de Aragão, o eminente relator invoca:

Partindo do princípio de que o objetivo da intimação é dar conhecimento à parte, entendem os tribunais que ela se faz dispensável quando o advogado tinha notícia inequívoca do ato, antes mesmo de ser intimado, razão não existindo, seja para aguardar a publicação no órgão oficial, seja para exigir a formalização da intimação, pelo escrivão ou oficial. Assim sucede, por exemplo, se os autos foram retirados do cartório com carga, neles constando algum ato já praticado ou despacho já proferido, de que devesse ocorrer a intimação. Nesse caso, a partir do momento da retirada dos autos, houve a ciência do quanto neles se passara ou se encontre, independente de intimação. A ciência inequívoca é o quanto basta. Se o interessado desenvolve qualquer atuação que importe em revelar conhecimento do conteúdo dos autos, não há necessidade de se proceder à sua intimação nem poderá exigi-la, a fim de se considerar no dever de praticar algum ato. Trata-se de corolário das regras que informam a ocorrência da preclusão: praticado um ato incompatível com o desconhecimento de outro, reputa-se preclusa a faculdade de exigir que dele seja feita a intimação, a fim de que os efeitos desta se reputem alcançados. A disposição contida no texto [o artigo 240, do Código de Processo Civil], portanto, não pode ser entendida como se erigisse a intimação em ato meramente formal e indispensável, capaz de transformar o conceito que lhe é próprio. Se o interessado já está ciente de modo inequívoco, a intimação perde o objeto e não é a partir desta, mas de outra ocasião que o prazo correrá.

Em ato contínuo, a conduta inequívoca do ato tem ligação com a certeza de acesso aos termos processuais. No sistema processual eletrônico, os termos processuais são dispostos aos advogados sem que eles cliquem em ciência no ato de comunicação, deixando transcorrer o prazo "tácito" de dez dias para ganho de tempo.

Recentemente, o Magistrado da 3ª Vara Cível de Florianópolis determinou ao cartório que certificasse o trânsito em julgado de caso no qual prazo recursal foi dado início devido a manifestação (postagem) do advogado no facebook , ou seja, ao caso em comento foi aplicado a teoria da ciência inequívoca.

No caso em tela, a Sentença que denegou os embargos à execução foi disponibilizada no PJe no dia 05 de fevereiro de 2020. Já no dia 07 de fevereiro do mesmo ano, a Associação, ora embargante, publicou em seu perfil no facebook um vídeo onde os seus patronos declaram ter tomada ciência da Sentença, apresentando fundamentações sobre o ato processual ao seu cliente.

O caso narrado se enquadra justamente no que aqui foi rapidamente analisado, essa margem dada aos advogados pelo sistema processual eletrônico de acesso aos termos e atos processuais, sem a necessidade de dar ciência à comunicação processual - intimações e citações - passa, na verdade, de uma prática que fere os princípios processuais constitucionais.

Nesse sentido, e segundo a melhor jurisprudência, tem-se por cumprida a intimação quando for efetivo o conhecimento da decisão judicial, em conformidade com o artigo 9, §1, da lei 11.419/06.

Art. 9º No processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta Lei.

§ 1º As citações, intimações, notificações e remessas que viabilizem o acesso à íntegra do processo correspondente serão consideradas vista pessoal do interessado para todos os efeitos legais.

Contudo, a análise desse dispositivo merece certa ponderação quando a ser aplicado pelos julgadores, é o que podemos extrair do julgamento do Recurso Especial de 1.739.20,1 nas palavras da Ministra Maria Isabel Gallotti:

Segundo julgo, não se pode inferir, considerada a descrição fática delineada pela Corte de origem, que do comparecimento espontâneo da parte aos autos para peticionar houve ciência inequívoca do conteúdo da sentença. Permaneço na convicção de que os indícios apontados de que teria havido o prévio acesso aos autos antes do peticionamento - a indicação na petição apresentada de folhas específicas dos autos (todas anteriores à sentença) e data dessa apresentação (dois dias após a prolação da sentença) - não conferem o grau de certeza (segurança) necessário e suficiente para autorizar o afastamento do procedimento legal e específico de intimação. Convém não olvidar que tal afastamento resultará para a parte a grave consequência de não poder interpor eventual recurso contra a sentença, em uma "execução de elevadíssimas quantias".

Consequentemente, por segurança a aplicação da teoria da ciência inequívoca, requer-se total certeza de que houve acesso aos termos processuais antes da ciência por ato da comunicação processual. Consequentemente, nas palavras da eminente relatora:

[...]Penso que a configuração de hipótese de ciência inequívoca em virtude de peticionamento espontâneo, para efeito de ser afastada a necessária intimação formal acerca da prolação de ato decisório (que é a regra, ressalte-se), não se pode basear em meros indícios e avaliações subjetivas do julgador, sob pena de comprometer a objetividade da disciplina processual de contagem de prazos processuais, o exercício do direito de defesa e o contraditório, corolários do devido processo legal.

Dito isto, deve-se primeiro analisar a situação dos autos eletrônicos para que não ocorra a hipótese acima identificada, ou seja, da aplicação do artigo 9, §1, da lei 11.419 por meros indícios e avaliações subjetivas que ferem os direitos e garantias processuais fundamentais constitucionais.

A eminente relatora fecha o julgado da seguinte forma:

A lei do processo eletrônico substituiu a carga do processo físico, a partir da qual o advogado tomava ciência pessoal de todo o conteúdo dos autos, pela ciência pessoal em decorrência do acesso aos autos eletrônicos, ensejado pelas citações, intimações, notificações e remessas que viabilizem o acesso à íntegra do processo. Havendo intimação formal, a possibilidade de acesso do advogado implica sua ciência pessoal presumida de todo o conteúdo do processo, nos termos do art. 9º da lei 11.419/06. Trata-se de presunção legal aplicável apenas em caso de intimação formal. Não tendo havido intimação formal, o que é incontroverso no caso em exame, não houve acesso e conhecimento presumidos, nos termos da lei de regência, da integra dos autos. O peticionamento espontâneo, sem comprovado acesso aos autos, não precedido de intimação formal, somente poderia ensejar a conclusão de ciência inequívoca da parte se o conteúdo da petição deixasse claro, indene de dúvidas, o conhecimento a propósito do ato judicial não publicado.

Continuamente, a aplicação da ciência inequívoca em casos como o da 3ª Vara Cível de Florianópolis decorre da aplicação lógica do artigo 223 do NCPC. Destarte, ocorre a preclusão quando decorrido o prazo, extinguindo-se o direito de praticar ou de emendar o ato processual, independentemente de declaração judicial, cabendo a parte provar que não realizou por justa causa.

Nada obstante, estou em acordo com o entendimento dos Tribunais Superiores, ou seja, havendo ciência inequívoca dos atos e termos processuais, resta afastada o ato de comunicação e aberto prazo para manifestação. Como anteriormente explanado, é irrelevante a prática do ato de comunicação se a(s) parte(s) já detêm conhecimento do andamento processual.

A aplicação da teoria advém dos direitos e garantias fundamentais constitucionais, em destaque, ao do devido processo legal e seus corolários, contraditório e ampla defesa. Inclusive, a aplicação da ciência inequívoca evita o desperdício de tempo e recursos financeiros, auxiliando na duração razoável dos processos e da economia processual.

Torna-se evidente que, o sistema processual eletrônico (PJe) necessita de uma readequação quanto a ciência dos termos processuais em respeito aos princípios regentes. Dessa forma, a melhor maneira de evitar decisões como as daqui analisadas, é que o sistema bloqueie o acesso às petições, decisões e os demais atos processuais sem que se dê ciência aos atos de comunicações (se expedida) pelos litigantes processuais.

Gabriel Bezerra Lins da Silva

Gabriel Bezerra Lins da Silva

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduando em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro efetivo da Academia Brasileira de Direito Civil. Membro do Grupo de Pesquisa Logos: Processo, Linguagem e Tecnologia do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD-Unicap-CNPq). Membro da comissão de Direito Condominial do IBRADIM. Membro Colaborador da Comissão de Direito imobiliário da OAB/PE.

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