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Eleição de foro abusiva?: competência territorial a partir do processo judicial eletrônico

A internet possibilitou o acesso ao Judiciário de qualquer local do país. Com isso, a atual realidade superou a jurisprudência para a declaração da abusividade da eleição de foro.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Atualizado em 21 de janeiro de 2022 13:02

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A jurisdição, pelo aspecto de poder1, possibilita que o Estado seja a autoridade competente para resolver os conflitos jurídicos em geral, conforme corrobora o Código de Processo Civil (art. 3º, caput) e a Constituição Federal (art. 5º, XXXV).

Como é sabido, o legislador estabeleceu critérios para distribuir as atividades a serem exercidas para cumprir o encargo atribuído pela CF entre os órgãos competentes para exercer o poder jurisdicional. Desse modo, tem-se, por exemplo, a distribuição da competência interna prevista no Livro II, Título III do CPC, o qual possibilita a identificação do foro competente para determinada hipótese. No entanto, além das hipóteses objetivas, o art. 63, caput, do CPC2 possibilita que as partes possam eleger o foro de proposição de eventual ação, podendo-se citar inclusive o art. 78 do Código Civil (CC) com sentido análogo3.

Nos contratos em geral, é comum existir cláusula de eleição de foro para determinar qual será competente para processar e julgar conflitos jurídicos que porventura surgirem, sendo possível eleger tanto foro estatal quanto juízo arbitral, e ainda, conforme salienta o professor Fredie Didier Jr. (2021), sendo possível eleger um foro para cada assunto do contrato.

  Essa possibilidade de eleição de foro visa respeitar o princípio da autonomia privada, possibilitando certa liberdade ao particular para celebrar negócios jurídicos. Com isso, após a celebração do contrato, dever-se-á observar o foro estipulado em razão do princípio da força obrigatória dos contratos (máxima pacta sunt servanda4).

Contudo, a legislação prevê que, caso constatada abusividade na referida cláusula, ela poderá ser reputada ineficaz de ofício pelo magistrado (antes da citação) ou após análise da contestação5. Nesse sentido, embora a abusividade possa ser qualificada como conceito jurídico indeterminado - dependendo da análise do caso -, é possível encontrar exemplos na jurisprudência para caracterizá-la, e.g.:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CONTRATO DE ADESÃO. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. VALIDADE. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS E PROVIDOS.

1. A jurisprudência desta Corte preconiza que, via de regra, para que se declare a invalidade de cláusula de eleição de foro, é necessária a presença conjunta de, ao menos, três requisitos: a) que a cláusula seja aposta em contrato de adesão; b) que o aderente seja reconhecido como pessoa hipossuficiente (de forma técnica, econômica ou jurídica); e c) que isso acarrete ao aderente dificuldade de acesso à Justiça.

2. Ademais, a mera desigualdade de porte econômico entre as partes proponente e aderente não caracteriza automática hipossuficiência econômica ensejadora do afastamento do dispositivo contratual de eleição de foro.

3. Na espécie, equivocou-se o v. acórdão embargado, pois não fora adequadamente justificado, nas instâncias ordinárias, o reconhecimento da hipossuficiência do aderente.

4. Embargos de divergência conhecidos e providos.

(STJ - EREsp: 1707526 PA 2017/0282603-1, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 27/05/2020, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 01/06/2020, grifo nosso)

Em suma, tem-se que, para constatação da abusividade da cláusula, é necessária a comprovação, sobretudo, da dificuldade do acesso à Justiça (Judiciário) e da hipossuficiência da parte que compõe a relação processual.

Nesse diapasão, convém comentar acerca da facilidade de acesso à Justiça advinda com a presença cada vez maior do processo judicial eletrônico. Ainda mais que, em razão das recomendações das autoridades da área da saúde, com vista a combater o novo Coronavírus, fomentou-se o meio judicial eletrônico.

Assim, além da possibilidade já existente de realizar atos processuais em meio eletrônico, os Tribunais possibilitaram a realização de audiências remotas (sustentações orais, depoimentos etc.), bem como de atendimento ao público de forma remota (e.g. a criação do balcão virtual6), observando-se a iniciativa do "Juízo 100% Digital7" determinada pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ.  

Por conseguinte, existindo a possibilidade de acesso à Justiça por intermédio da internet, a qual viabiliza que o litigante participe do processo de qualquer lugar que possua rede, questiona-se: como deve ser interpretada a abusividade da cláusula de eleição de foro a partir do processo judicial eletrônico?

Consoante visto na ementa citada, para qualificar a cláusula como abusiva, segundo jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ -, é necessária a presença conjunta dos três requisitos: contrato de adesão, hipossuficiência (técnica, econômica ou jurídica), dificuldade de acesso à Justiça. Assim, dada a facilidade oportunizada pelo processo eletrônico, o acesso à Justiça pode ser realizado por diversos meios, destacando-se o aparelho celular.

Todavia, não basta o aparelho eletrônico, sendo necessária a utilização de dados para comunicação com o Juízo. Acerca dessa questão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE -, após pesquisa, relatou que 82,7% dos domicílios brasileiros possuíam acesso à internet no ano de 20198.

A partir dessa informação, infere-se que houve significativa redução da dificuldade de acesso ao Judiciário, apesar de sua não eliminação por diversos motivos, por exemplo: a dificuldade não se reduz à territorialidade e não são todos os lares que possuem acesso à internet. 

Nessa perspectiva, apesar de ampliada a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário, destaque-se a ressalva exposta no excerto do voto do Desembargador Diaulas Costa Ribeiro no acórdão do processo 0745879-22.2020.8.07.0000, o qual aduz, in verbis:

O conceito de competência territorial está mitigado ou superado pelo surgimento do processo judicial eletrônico. Exatamente como consequência da Internet, a noção de território físico desapareceu, foi liquefeita. Todavia é preciso controlar a competência, sob pena de total desconstrução do conceito de Juiz Natural e de desorganização judiciária plena, sobrecarregando ou esvaziando os Tribunais e Juízes estaduais.

(TJDFT - Ag: 07458792220208070000, Relatora: Desembargadora NÍDIA CORRÊA LIMA, Data de Julgamento: 24/02/2021, 8ª Turma Cível, Data de Publicação: 04/03/2021)

Como é sabido, o princípio do juiz natural visa evitar a escolha do juiz para a demanda, isto é, a escolha do juiz será aleatória objetivando, dentre outros, manter a imparcialidade do julgamento.  Dessarte, sendo possibilitada a eleição de foro e o acesso à Justiça de qualquer local, implicitamente poder-se-ia escolher qualquer foro do território brasileiro (não se entendendo aqui como sinônimo de magistrado) para certa demanda, sem incorrer em cláusula abusiva.

Considerações finais

Ante todo o apresentado, observa-se a necessidade de um olhar legislativo e jurisprudencial sobre as questões advindas com o processo judicial eletrônico. Na presente questão, é evidente que os requisitos para declaração de abusividade da cláusula de eleição de foro devem ser repensados, pois encontram-se em desarmonia com a realidade processual.

Nesse diapasão, a dificuldade de acesso à Justiça (Judiciário) estaria superada se observada sob a perspectiva da territorialidade, uma vez que os atos processuais poderiam ser realizados de qualquer lugar com acesso à internet.

Inclusive, a parte hipossuficiente e assistida pela Defensoria Pública poderia, em tese, exercer o contraditório e a ampla defesa em qualquer processo independentemente da comarca. Isso porque, por exemplo, a Lei Complementar 828/10 em seu art. 4º, caput, não cita a comarca da lide como determinante para a atuação do Defensor, somente exige que seja comprovada a insuficiência de recursos9.

Ainda, de acordo com o ensinamento do professor Fredie Didier Jr. (2021), o ordenamento jurídico não faz distinção de espécie de contrato para que seja possibilitado considerar determinada cláusula como abusiva. Fato esse que vai de encontro à jurisprudência do STJ.

Logo, verifica-se que, de todos os requisitos da jurisprudência, somente resta a hipótese de hipossuficiência (técnica, econômica ou jurídica) da parte para considerar a nulidade da cláusula. No entanto, o assunto necessita de melhor aprofundamento, uma vez que pode comportar contradição: se a parte da lide, de forma livre e consciente, concordar em estipular determinado foro para eventual questão jurídica, poderá suscitar nulidade da cláusula em momento posterior se, no decurso da execução do contrato, vier a tornar-se hipossuficiente?

Portanto, a partir do processo judicial eletrônico, alterou-se a realidade dos atos jurídicos, com isso apresentou-se a problemática causada pela possibilidade de mitigação da competência territorial, sobretudo diante da ampliação do acesso à internet pelos domicílios brasileiros. É necessário que o legislador e/ou a jurisprudencia se debrussem sobre o tema, especialmente pela qualidade dos contratos de importantes instrumentos no meio empresarial.    

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 23. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2021.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil - Volume único. 11. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.

1 Assim conceitua Daniel Amorim Assumpção Neves: "Entendida como poder, a jurisdição representa o poder estatal de intervir na esfera jurídica dos jurisdicionados, aplicando o direito objetivo ao caso concreto e resolvendo a crise jurídica que os envolve" (2019, p. 60)

2 Art. 63. As partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações.

3 Art. 78. Nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes.

4 O referido brocado pode ser encontrado no tesauro do Supremo Tribunal Federal:

5 Art. 63. [...] § 3º Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu.

   § 4º Citado, incumbe ao réu alegar a abusividade da cláusula de eleição de foro na contestação, sob pena de preclusão.

6 Regulamentado pela Resolução 372 de 12/02/21 do Conselho Nacional de Justiça.

7 Resolução 345/20 alterada pela Resolução 378/21.

8 "Pesquisa mostra que 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet". Diponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-nternet#:~:text=em%202019%2c%20entre%20as%20183,estudantes%20(75%2c8%25).

9 Art. 4º O Distrito Federal prestará assistência jurídica gratuita e integral a quem comprovar insuficiência de recursos.

 

Anderson de Oliveira Silva

Anderson de Oliveira Silva

Acadêmico de Direito do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), pesquisador nas searas de Direito Processual Civil e Direito Econômico, autor de artigos, e integrante do Grupo de Estudos em Direito e Economia (UnB/IDP).

Adilson Souza Santos

Adilson Souza Santos

Doutorando em Direito, Mestre em Ciência Política - ênfase em Direitos Humanos, Cidadania e Violência. Especialista em Direito Público; em Direito Penal; em Direito Empresarial; e em Gestão de Sala de Aula em Nível Superior. Estudos do Percurso Psicanalítico nas obras de Freud e "Pós Freudianos". Bacharel em Direito e Análise de Sistemas.

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