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A liberdade contratual e as quebras de contratos de créditos na pandemia

O artigo objetiva promover a reflexão da liberdade contratual como instrumento emancipador nas relações privadas e seus efeitos no comportamento racional das partes do contrato, especificamente, a proposta de alteração dos contratos de créditos pelos Poderes Judiciário e Legislativo face à pandemia do Covid-19.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Atualizado às 12:20

(Imagem: Arte Migalhas)

Refletir sobre a liberdade contratual a partir do desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos possibilita o deslocamento de conceitos estritamente políticos ou jurídicos, para uma dimensão de maior robustez, agregando aspectos econômicos, culturais e sociais. Criando, dessa forma, um ambiente multidisciplinar das atividades humanas.

Nessa linha, nas contratações de serviços, por exemplo, devem garantir direitos contratuais tanto do consumidor quanto do prestador de serviços, uma vez que os contratos refletem a vontade das partes na liberdade da contratação, principalmente em se tratando de vontades bilaterais. O trato faz lei entre as partes. As cláusulas contratuais refletem a vontade das partes quanto aos direitos, deveres e obrigações.

No âmbito do Poder Legislativo, com o intuito de suspender os pagamentos das parcelas de várias linhas de créditos durante o período da emergência pública, em 2020 foram apresentadas na Câmara dos Deputados 82 proposições e 34 no Senado Federal. A pesquisa foi filtrada com projetos de lei (PL) e Projetos de lei complementar (PLP), nos sites oficiais dos órgãos.

Nessa linha de pensamento, citamos a primeira decisão judicial na Ação Popular (AP)1022484-11.2020.4.01.3400 contra o Banco Central do Brasil (BCB), a qual foi deferida tutela provisória de emergência para que, dentre os pedidos requeridos, seja prorrogada as parcelas dos créditos consignados aos aposentados, por quatro meses, sem adição de encargos de qualquer natureza, impondo, portanto, uma alteração contratual compulsória, que traz insegurança jurídica às partes contratantes.

A partir das considerações iniciais sobre o tema, a epistemologia jurídica a ser utilizada como suporte para o desenvolvimento da presente reflexão será o law and economics podendo esta ser entendida como um método que promove o estudo e a análise da teoria econômica concernente à estruturação, impacto e consequências comportamentais referente à aplicação de institutos jurídicos ou textos normativos, ou ainda, nas palavras de Caliendo (2009, p. 15) sob outra perspectiva, a análise econômica do Direito.

"[...] pretende não apenas descrever o Direito com conceitos econômicos, mas, encontrar elementos econômicos que participam da regra de formação da teoria jurídica. Desse modo os fundamentos da eficácia jurídica e mesmo o de validade do sistema jurídico deveriam ser analisadas tomando em consideração valores econômicos.

Para tanto, a fim de se valer dessa relação, necessário pensar que a análise econômica deve considerar o ambiente normativo no qual os agentes e o direito atuam ao estabelecer as normas e regras de conduta que modelam a relação entre pessoas devendo levar em conta os impactos econômicos que dela derivarão além de considerar ainda os efeitos sobre

[...] distribuição ou alocação dos recursos e os incentivos que influenciam o comportamento dos agentes econômicos privados. Assim o direito influencia e é influenciado pela Economia, e as organizações influenciam e são influenciados pelo ambiente institucional. A análise normativa encontra a análise positiva, com reflexos relevantes na metodologia de pesquisa nessa interface (ZYLBERSZTAJN, 2005, p. 30).

Sendo assim, o sistema de referência do Law and Economics trata da "[...] racionalidade econômica do direito, uma visão dos acontecimentos em mundos ideais" (VITA, 2011, p. 52), se apresentando como um método de pesquisa sobre o comportamento humano, um conjunto de instrumentos analíticos, ou seja, objeto da moderna ciência econômica que abrange toda forma de comportamento humano que requer a tomada de decisão. Além de possibilitar a identificação de possíveis falhas de mercado e de governo.

Tem-se, então, que a análise econômica do direito é em última análise

[...] a aplicação do instrumental analítico e empírico da economia, em especial da microeconomia e da economia do bem-estar social, para se tentar compreender, explicar e prever as implicações fáticas do ordenamento jurídico, bem como da lógica (racionalidade) do próprio ordenamento jurídico. Em outras palavras, a AED é a utilização da abordagem econômica para tentar compreender o direito no mundo e o mundo no direito" (GICO, 2010, p. 12).

Dessa forma, refletir sobre a liberdade de contratar se torna perfeitamente possível dentro da perspectiva da análise econômica do direito, pois, no ambiente normativo do direito contratual cujos agentes econômicos (partes) atuam, há comportamento racional em busca de emancipação das vontades com o fito de realizar transação cujos efeitos ressoarão para toda uma coletividade.

Na tentativa de amenizar os efeitos da pandemia sobre o orçamento dos brasileiros foram apresentadas 116 proposições legislativas em 2020 para suspender, exclusivamente, o pagamento de consignados, de crédito imobiliário, financiamento de veículo, crédito agrário e suspensão das execuções judiciais, a fim de que os valores das parcelas fossem usados em despesas de maior essencialidade durante a calamidade pública, em resumo. Não bastasse, foram ajuizadas várias medidas judiciais com o idêntico fim, causando, portanto, uma instabilidade para o mercado financeiro.

Com efeito, a pandemia da Covid-19 ainda exige grande desafio para enfrentar as consequências econômicas. As opções à proposta as políticas públicas adotadas pelo executivo bem como a própria dinâmica do mercado.

As proposições apresentadas nas Casas do Congresso Nacional para suspender as parcelas de créditos com base na emergência pública são de alcance indistinto, incluindo aqueles que não tiveram prejuízos salariais ou em seus rendimentos. Inclusive, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) prevê a possibilidade de revisão dos contratos em caso de fato superveniente não previsto pelas partes quando da conclusão do contrato.

Providências arbitrárias nos contratos de empréstimos tem como resultado prático a diminuição da oferta do produto financeiro e o aumento de juros, dado que o aumento da inadimplência será fator determinante para a retração do crédito. Ademais as linhas de crédito são muito importantes para a população, para a atividade econômica e para a manutenção de postos de trabalho.

Impende ressaltar que a liberdade contratual, como solução de mercado, iniciativas tomadas pelas principais instituições financeiras do País que, espontaneamente e certamente sensíveis à nossa realidade, promoveram não apenas a suspensão de pagamentos por prazo de 60 dias, mas também assegurando aos devedores o direito de promover renegociações visando beneficiá-los quando da retomada dos pagamentos.

A reflexão desenvolvida através deste ensaio trouxe como discussão a temática da liberdade de contratar e sua relação com o desenvolvimento. Entretanto, para que fosse possível tal enfrentamento, necessário foi compreender como a noção de liberdade se apresenta em um nível muito maior de complexidade de cunho social e como reflete diretamente na promoção de direitos e garantias individuais.

O Poder Judiciário, não pode desprezar os efeitos externos que as decisões podem resultar, decisões não sistemáticas. Atualmente, nota-se muitas decisões baseadas em pretensas "justiças social" indo de encontro com às normas consolidadas, tais como: CDC, Código Civil e a própria Constituição Federal, restando claro rompimento com o princípio da liberdade de contratar, da autorregulação do mercado e outros princípios balizadores do direito. Outrossim, produzindo mais inseguranças jurídicas e contribuindo para a instabilidade dos sistemas de crédito.

No caso das iniciativas dos congressistas, apesar de terem a liberdade de propor leis para atender seus eleitorados, não podem agir de maneira irresponsável sem antes compreender as regras vigentes e os impactos no mercado financeiro. Como visto nas argumentações, o contrato é o resultado da combinação do interesse de uma pessoa por um serviço ou coisa com o serviço ou coisa oferecida por outra pessoa. O contrato é baseado em leis consolidadas, não cabendo, portanto, a interferência justiceira de terceiros.

Em que pese a discussão ter sido mais acirrada no início da pandemia, infelizmente, não estamos imunes a um recrudescimento. É preciso estar vigilante para que inciativas governamentais supostamente bem-intencionadas não tragam um prejuízo ainda maior.

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AMARAL, Francisco. O contrato e sua função institucional. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro, ano XV, n. 18, 2000, p. 105-119.

CALIENDO Paulo. Direito Tributário e análise econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier,2009.

GICO Jr, Ivo T. Metodologia e Epistemologia da Análise Econômica do Direito. Economic Analysis of Law Review, V. 1, nº 1, p. 7-32, Jan-Jun, 2010;

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 378

VITA, Jonathan Barros. Teoria geral do direito: direito internacional e direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

ZYLBERSZTAJN, Decio. Sztajn, Rachel.  Análise econômica do direito e das organizações. Erio de Janeiro. Elservier. 2005.  6 ed.

Adriane B. do Nascimento

Adriane B. do Nascimento

Advogada- OAB/MT 23.635.

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