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O destino da ADPF 944/DF e de outras propostas genericamente contra "decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho"

Torçamos pela parcimônia de nossa Suprema Corte, instância máxima do nosso Judiciário e a primeiríssima interessada em que sua posição - de última instância - seja assim mantida em eventuais lesões subjetivas, atacáveis prioritariamente na especialidade; mas, não, de modo genérico e coletivo.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Atualizado às 09:20

(Imagem: Arte Migalhas)

Nos últimos tempos temos acompanhado um número consideravelmente crescente de Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF's) sendo ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente, estamos a chegar ao número de 950 (novecentos e cinquenta) ADPFs ajuizadas, sendo que a primeira delas data do ano de 2000.

Se por um lado, essa tendência recente de elevação das ADPF's pode ser considerada como um reflexo da posição fundamental de nossa Suprema Corte enquanto primeira e última instância jurisdicional de questões jurídico-constitucionais de alta relevância para a democracia e para a interdependência dos poderes da República (e não só) - assim, por exemplo, situam-se as inúmeras decisões da Corte em sede de ADPF's para atuação coordenada e concorrente dos entes federados no combate do COVID-19 -; por outro lado, também aponta para uma possível deturpação dessa importante ação do sistema de proteção objetiva da Constituição, na qualidade sucedâneo de ações ordinárias e de recursos pelos respectivos legitimados; subtraindo dos tribunais naturalmente vocacionados as contendas que eles deveriam necessariamente decidir de modo concreto e com respeito ao contraditório e a ampla defesa.

Assim nos parece ser exatamente o caso da ADPF 944/DF, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) no último 14/2/22, em desfavor de "decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho, em ações civis públicas, nas quais, ao invés de haver ordem de reversão dos valores das condenações a um Fundo gerido por um Conselho Federal, nos termos do art. 13 da Lei 7.347/1985, outras destinações vêm sendo dadas a esses valores". Não afirmamos isto apenas pelo fato de sermos membro do Ministério Público do Trabalho, pois nossas considerações são aqui especialmente processuais e nossas preocupações cingem-se ao próprio destino da ação regulada pela Lei nº 9882/99; não apenas da ADPF 944/DF, mas do instituto-ADPF enquanto mecanismo vocacionado à concretização do princípio da supremacia da Constituição de 1988; e, não, de substituição do direito constitucional de acesso aos tribunais.

Evidentemente que não desconhecemos o poder econômico da CNI e o fato de ser uma das confederações patronais que mais atuam no âmbito do controle concentrado, especialmente em matéria trabalhista (nesse caso, em prol dos interesses econômicos e corporativos de suas representadas). Em breve pesquisa por nome da parte e tendo como marco inicial o ano de 2015, apuramos que em mais de 50 (cinquenta) ações nas quais a CNI comparece como requerente ou interessada (amicus curiae) no STF1. Assim, foi o caso, por exemplo, na ADPF 489/DF, da Rel. Min. Rosa Weber, em que se discutia a Portaria do Ministério do Trabalho 1129/17, qualificando contra legem o trabalho em condições análogas à de escravo e em ofensa a direitos fundamentais constitucionais trabalhistas e tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Nessa medida, o ajuizamento da ADPF 944/DF deve ser inicialmente compreendida sob esse contexto, isto é, como uma providência confederativa patronal potente, porém, igualmente genérica (dada a difusão e a generalidade de seu ataque e de seu correlativo pedido2), junto ao STF para canhonear, de uma só vez, decisões coletivas (ou a possibilidade delas!) da Justiça do Trabalho que condenam empregadores a indenizações ou reparações sociais, em geral, por ofensa reiterada a ordem jurídica ou aos direitos dos trabalhadores.

Todavia, segundo o art. 4º da lei 9882/99, "a petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta. §1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade".

A jurisprudência do STF, ao interpretar esse dispositivo, tem considerado não ser admissível ADPF sempre que não atendido o princípio da subsidiariedade, justamente porque, em termos ordinários e recorrentes, devem ser os tribunais e juízes naturais aqueles prioritariamente competentes para as soluções de lesões a preceitos fundamentais gerados pelo poder público, em ações propostas pelos respectivos lesados/interessados. Trata-se do princípio do juiz natural como princípio ínsito ao Estado Democrático de Direito. A ADPF comparece, nessa seara subjetiva, portanto, como uma ação de natureza excepcional.3

Ora, a jurisdição constitucional não deve comportar tutela de situações jurídicas individuais e concretas,4 como decorrem, por exemplo, daquelas decisões citadas pela CNI na ADPF 944/DF, em tese, passiveis de impugnações/recursos próprios no âmbito da Justiça do Trabalho, inclusive com a garantia do devido processo legal e do contraditório aos autores das ações coletivas (MPT ou sindicatos profissionais) e com respeito aos beneficiários de boa-fé das reversões sociais (aliás, o próprio SESI/SENAI já fora beneficiário em reversões do MPT5). Por reforço de razão, em consequência, também não é cabível ADPF para desconstituição de coisa julgada formal e material, como estão acobertados por essa garantia constitucional acordos homologados pela Justiça do Trabalho ou decisões irrecorríveis dela, cuja desconstituição existe ação própria (rescisória), em prazos e em condições bastante limitados, sempre assegurados o contraditório e ampla defesa das respectivas partes do processo originário.

Em suma, agora está em causa a ADPF 944/DF, mas poderia ser qualquer outra ADPF genericamente direcionada a atacar "decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho" (ou de outros ramos do Poder Judiciário!), especialmente em sede de "ações civis públicas". Para nós, o acolhimento desta ADPF, com a magnitude e abrangência de seu pedido, ao invés de demonstração de eficiência do STF no controle concentrado (com a afirmação de posição excessivamente acolhedora da ADPF, abrindo a compreensão do princípio da subsidiariedade), conduzirá a severo abalo do princípio do juiz natural (no caso, do juiz do trabalho), inviabilizando que sejam as instâncias ordinárias (trabalhistas) aquelas a reformarem e rescindirem, eventualmente, as suas próprias decisões, se assim os interessados dela recorrerem ou impugnarem. Como reflexo posterior, o descrédito do direito material de acesso à justiça.

Torçamos pela parcimônia de nossa Suprema Corte, instância máxima do nosso Judiciário e a primeiríssima interessada em que sua posição - de última instância - seja assim mantida em eventuais lesões subjetivas, atacáveis prioritariamente na especialidade; mas, não, de modo genérico e coletivo.  

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1 Vide: https://portal.stf.jus.br/processos/listarPartes.asp?termo=Confedera%C3%A7%C3%A3o+Nacional+da+Ind%C3%BAstria&total=194&paginaAtual=1, acesso em 21/02/2022.

2 Pedido d da ADPF 944/DF: No mérito, em decisão com eficácia contra todos e efeito vinculante, seja declarada a inconstitucionalidade da interpretação adotada em decisões da Justiça do Trabalho que violam o preceito constitucional fundamental da separação de Poderes, na forma em que positivado na Constituição e nesta ação demonstrado, declarando-se também, mais especificamente, a inconstitucionalidade das decisões, sentenças e acórdãos proferidos pela Justiça do Trabalho em ações civis públicas, nos quais, ao invés de se determinar o recolhimento de condenações em dinheiro para fundos públicos constituídos por lei, é ordenada a constituição de fundações privadas com dotações patrimoniais específicas e/ou a realização de doações diretas, com valor determinado, para entidades públicas e/ou privadas e/ou a destinação de condenações coletivas a quaisquer órgãos e/ou fim que não o FDDD ou o FAT. (negrito no original).

3 V. Decisão, ADPF 172 MC/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno.

4 V. decisão ADPF 224 AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, onde se lê na ementa: "PROCESSO DE NATUREZA OBJETIVA. TUTELA DE SITUAÇÕES JURÍ-DICAS INDIVIDUAIS E CONCRETAS. DESCABIMENTO DO AGRAVO RE-GIMENTAL (...). 2. Os processos objetivos do controle abstrato de constitucionalidade, tal qual a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, não constituem meio idôneo para tutelar situações jurídicas individuais e concretas. Precedentes desta CORTE.

5 De 26/06/2015: Acordo entre MPT e Suzano garante nova unidade do Sesi/Senai em Teixeira de Freitas, in https://www.jornalgrandebahia.com.br/2015/05/acordo-entre-mpt-e-suzano-garante-nova-unidade-do-sesisenai-em-teixeira-de-freitas/, acesso em 21/02/2022.

Ana Cláudia Nascimento Gomes

Ana Cláudia Nascimento Gomes

Doutora em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Pós-Doutora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do UDF. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Procuradora do Trabalho, Ministério Público do Trabalho/MPT -MPU. Ex-Membro Auxiliar da PGR (2017-2019) em matéria trabalhista.

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