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Terminalidade: contrastes e contradições

Incumbir ao médico o fardo de eliminar uma vida simplesmente por entender que ela não merece ser vivida é atribuir a um terceiro, que nunca esteve em seus sapatos, a decisão de quando não mais vale a pena calça-los e penaliza-lo gravemente por isso.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Atualizado às 10:04

(Imagem: Arte Migalhas)

De todos os dilemas envoltos pela Bioética, aquele que transita entre preservação da vida a qualquer custo e eliminação definitiva do sofrimento é, sem dúvidas, um dos maiores causadores de contendas.

Em um mundo ideal teríamos vida plena e constante, de forma que nunca seria preciso colocar-nos em posição de decidir sobre o próprio futuro - ou sobre o futuro de uma pessoa querida - em situação de terminalidade. É tarefa dolorosa falar sobre o desfecho da sempre breve vida humana, principalmente quando este acontece de uma forma não natural. Entretanto, o simples fato de um assunto ser desconfortável não faz desaparecer a necessidade de discutir sobre ele.

Quando se trata de terminalidade da vida, devemos abordar três componentes fundamentais para a introdução ao assunto. São eles: eutanásia, ortonásia e distanásia.

Não se pretende, com o presente trabalho, questionar as crenças e ideologias dos leitores. Também não é o caso de tentar convencê-los a mudar de opinião, se esta já existir.

O objetivo do artigo é despertar o interesse na população sobre o tema através de uma exposição pessoal, mediante a identificação e distinção dos três tópicos, utilizando uma linguagem de fácil compreensão para que os leitores sejam capazes de formar sua própria concepção e enriquecer o debate.

A primeira coisa a se ter em mente é que essa discussão não diz respeito apenas ao destino do paciente. A tomada de decisões envolvendo um indivíduo que encontra-se entre a vida e a morte também afeta, de forma direta, o futuro do médico que o assiste.

Na prática surgem os mais diversos cenários, desde aquele onde o próprio enfermo expressamente pede para que seja mantido ou removido o suporte vital, até situações em que a condição do paciente é tão debilitada que ele sequer consegue demonstrar sua vontade, ficando a mercê de seus representantes legais e profissionais acompanhantes.

Se não bastasse a complexidade teórica do tema, em alguns casos também deverão ser consideradas variáveis como a grande pressão midiática depositada sobre os familiares e julgadores (tal qual aconteceu com Terri Schiavo, por exemplo) que dificultam a obtenção do real interesse, ou seja, o bem estar do paciente em seu pior momento.

A questão pode ser bastante desenvolvida se forem considerados aspectos jurídicos, éticos e religiosos. No entanto, existem parâmetros que devem ser meticulosamente observados a despeito de qualquer que seja a opinião pessoal de cada um dos envolvidos, como a humanização da abordagem profissional, sua ética ou a falta dela e a clareza no repasse das informações.

Embora o direito à autonomia do paciente seja sempre digno de consideração, não se pode exigir que ele seja fator absoluto se, em outra ponta, sua primazia resultar em qualquer implicação judicial, administrativa ou de caráter pessoal para o médico que o socorre e auxilia.

Ao pensar sobre isso, involuntariamente adentramos ao conflito entre dignidade e humanização, razão que nos instiga a compreender um pouco mais sobre o fascinante mundo do Biodireito. Daí surge a necessidade de trabalhar sob a ótica de três conceitos essenciais: eutanásia, ortonásia e distanásia, pois, como antes dito, não se fala em terminalidade da vida sem eles.

A eutanásia é a abreviação da vida humana onde um terceiro - o médico - que, dizendo-se movido pela compaixão ao próximo, deseja dar-lhe uma "boa morte". Porém, ainda que conduzido pela bondade de seu coração, prevalece o entendimento de que o profissional que aceita ceifar prematuramente a vida de seu paciente está contrariando o juramento de Hipócrates e tudo de mais belo e nobre que existe na sua profissão.

Os defensores da eutanásia sustentam a "dignidade de morrer" do paciente, apelando para um critério de benevolência. Para eles, a autonomia do ser humano se sobressai a qualquer outro fundamento.

Essa visão limitada os impede de enxergar as consequências que também envolverão o profissional. No momento em que o paciente tem sua liberdade de escolha respeitada, é incumbido ao médico, automaticamente, o terrível fardo de "antecipar" a morte do indivíduo.

Ainda que exista requerimento expresso do enfermo ou provas incontroversas de que a sua última vontade era a eutanásia - o que chamamos de eutanásia voluntária - nenhum documento tem o condão de descaracterizar o homicídio nem suas implicações ao médico assistente. Se assim o fosse, estaríamos abrindo margem para um verdadeiro caos.

Segundo essa corrente, a eutanásia somente é legítima se for voluntária. Caso o ato seja praticado contra as vontades e interesses fundamentais do paciente (eutanásia involuntária), estaríamos diante de um homicídio. Essa distinção não se sustenta.

Nós, como seres racionais, estamos constantemente mudando de opinião. O indivíduo pode ter elaborado uma diretiva antecipada há tanto tempo que sequer se lembra que a escreveu ou proferiu.

Ainda sobre o momento de decisão, por vezes, a escolha acontece quando a terminalidade é apenas uma situação distinta, uma hipótese que em nada se assemelha à realidade. Caso sobrevenha o infeliz momento de viver essa escolha na pele, pode ser que o paciente, dessa vez estando numa circunstância factível, não mais deseje seguir o caminho determinado previamente.

O que poderia acontecer com esse cidadão cuja opinião passada não traduz em sua vontade atual se a sua incapacidade de manifestação ocorresse de forma superveniente? A consequência seria desumana.

Para adentrarmos ao conceito de ortonásia faz-se necessário, primeiramente, diferenciar a eutanásia ativa da eutanásia passiva.

A eutanásia ativa se dá por uma ação direta do médico que provoca a morte do paciente. A situação mais comum acontece quando o médico administra, de forma intravenosa, uma substância letal ao enfermo. Por outro lado, a eutanásia passiva ocasiona a morte do paciente através de uma conduta omissiva do profissional. É o caso em que o médico interrompe os tratamentos que vinham sendo aplicados ao indivíduo para mantê-lo com vida.

Acontece que, não raras vezes, o conceito de eutanásia passiva é confundido com o de ortonásia. Engana-se quem segue esse raciocínio, pois não são sinônimos.

Ortonásia significa morte no tempo certo. Diante de um perecimento inevitável, associado a muito sofrimento e, estando presentes os fatores que indicam a ocorrência de morte encefálica, o profissional realiza a suspensão dos meios artificiais de vida e dos medicamentos empregados ao paciente.

Não se antecipa o fim - como ocorre na eutanásia - pois, pelo conceito de óbito que se adota atualmente, no momento em que acontece a retirada das intervenções o indivíduo já está morto. A única intenção daquele que pratica a ortonásia é não prolongar o sofrimento físico. A partir da concordância do paciente ou de seu responsável, ele passará a receber os chamados cuidados paliativos.

Outra distinção fundamental é percebida em âmbito criminal.

Embora inexista qualquer isenção expressa, o entendimento majoritário é pela licitude da ortonásia, situação trazida pela Resolução 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina. Essa Resolução não tem caráter punitivo nem proibitivo. Sua função é doutrinar uma recomendação ético-profissional, possibilitando ao médico a suspensão de tratamentos inúteis que de nada adiantariam a um paciente terminal. Em qualquer hipótese, é imprescindível que seja observada a autonomia do enfermo ou de seus representantes legais.

Em contrapartida, a eutanásia é absolutamente ilícita e, embora as normas penais brasileiras não a especifiquem, ela é frequentemente associada ao delito de homicídio com atenuante de relevante valor moral (art. 121, §1º, CPB). A depender do caso concreto, ela poderá ser enquadrada nos delitos de auxílio ao suicídio (art. 122, CPB) ou omissão de socorro (art. 135, CPB).

Por fim, não se confunde um e outro quando observada a causa mortis: no caso da eutanásia, a morte se dá por ação ou omissão de terceiro, enquanto a ortonásia só é possível de acontecer após o paciente sucumbir em decorrência da própria doença.

Justamente pelo momento da morte, é impossível repreender criminalmente a ortonásia. Não há como atingir o bem jurídico vida, de forma dolosa ou culposa, se o indivíduo não mais vive, restando demonstrada a atipicidade da conduta.

Em vias completamente opostas, fala-se em distanásia quando ocorre a privação da morte. Seria a insistência na manutenção de suporte vital ao paciente, muito embora seu óbito já tenha sido declarado. Essa obstinação terapêutica em querer conservar a pessoa numa vida vegetativa somente ocasiona sofrimento desmedido ao enfermo e profunda angústia aos seus familiares. 

A despeito do custo físico e emocional do paciente, prioriza-se uma visão quantitativa da vida em detrimento de uma qualitativa. Via de regra, essa não é uma hipótese vista com bons olhos. Por mais dura que seja a realidade, é com ela que precisamos lidar. Nos casos em que a morte é uma certeza, rejeitá-la não a fará desaparecer.

Caminhando para o final, conclui-se que nenhum benefício pode emergir da insistência em prolongar o sofrimento do paciente com quadro irreversível através de intervenções desnecessárias, como acontece na distanásia.

Por todo o exposto, também é perceptível que o nosso ordenamento repreende qualquer tipo de ação que resulte na abreviação da vida humana. As circunstâncias são irrelevantes, não interessando qual o grau de enfermidade e debilitação do paciente, se a prática foi expressamente solicitada por ele ou se foi motivada por razões completamente altruístas e misericordiosas. Eutanásia sempre foi e segue sendo homicídio.

Correndo o risco de expor a contradição dos defensores da eutanásia que sustentam a ideia de uma morte digna, ressalto que dignidade e humanização estão intimamente vinculadas. E a humanização da morte se traduz em ortonásia.

Ao meu ver, nenhuma hipótese poderia ser melhor aceita.

Somos muito mais que carne e osso. Cada ser humano tem suas particularidades, crenças e desejos. Em palavras diretas, cada um tem sua própria concepção do que é, genuinamente, "estar vivo". A prática da eutanásia atribuiria um caráter objetivo à vida, abreviando um amontoado de sonhos, histórias e conquistas.

Incumbir ao médico o fardo de eliminar uma vida simplesmente por entender que ela não merece ser vivida é atribuir a um terceiro, que nunca esteve em seus sapatos, a decisão de quando não mais vale a pena calçá-los e penaliza-lo gravemente por isso.

Diante da constatação de uma morte iminente e inevitável, a suspensão de tratamentos agressivos que não trarão benefício algum, mas apenas dor e sofrimento, juntamente com o emprego dos cuidados paliativos, me parece uma forma respeitosa, humana e serena de consumar a passagem do corpo físico para o espiritual, mantendo a dignidade do indivíduo e da história por ele escrita em vida.  

Brunna Pires Barbosa Lopes

Brunna Pires Barbosa Lopes

Advogada especialista em Direito Médico, Odontológico e da Saúde.

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