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Polícia e democracia: os donos do poder e a manutenção do status quo

Carlos Frederico Vasconcellos Monteiro Rosa

Na redemocratização, a ausência de justiça de transição provoca sérias consequências, pois a sociedade não entende exatamente o que é democracia, tampouco a função das instituições públicas, especialmente a polícia.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Atualizado às 10:44

Ao se pensar em uma instituição pública, é imprescindível entender que o sentido desta muda de acordo com a forma de governo ao qual ela está submetida. Seja qual for a instituição. Assim, com a polícia não é diferente, o sentido da polícia em um estado autoritário é absolutamente diferente do sentido da polícia em uma democracia, embora, muitas vezes, os profissionais que constituem a instituição continuem os mesmos.

Historicamente, no Brasil nunca houve um rompimento legítimo entre regimes e a redemocratização do país na década de 1980 foi mais uma negociata que manteve muitos privilégios, deixou diversas lacunas e garantiu a impunidade dos donos do poder. O resultado disso é uma sociedade que não tem a menor ideia do que seja uma democracia, sua importância, nem como viver nela. Mas a culpa não é da sociedade em si, pois a maior parte dela sequer sabia o que estava acontecendo de verdade. A culpa é dos mesmos que laçaram os negros nas ruas (abolição) para depois caçá-los e encarcerá-los - os donos do poder. Escreveram na Constituição de 1988 que "todo poder emana do povo", mas não ensinaram o que isso significa, não ensinaram que o povo tem o dever de cobrar resultado das instituições públicas, que estas instituições e seus integrantes atuam a partir de mandatos públicos e que os seus limites de atuação devem ser estabelecidos pela própria sociedade, seja diretamente, seja através de representantes eleitos. Não houve justiça de transição de fato, nunca foi ensinado à sociedade, após um longo período de regime autoritário, como viver em democracia. Com atraso, fraca e ineficiente, o máximo que foi feito a esse respeito foi a instalação da comissão da verdade, em 2012. Sem punição, com muita autonomia e poder além daquele a eles reservado em uma democracia, os militares nunca saíram totalmente dos bastidores da política brasileira até 2018 quando passaram a ocupar gradativa e ostensivamente cargos públicos nos órgãos federais, chegando a praticamente 20% do total em 2021, extrapolando as competências das forças armadas.

Diante dessa realidade, observa-se algumas consequências, especialmente quando se trata da polícia, tendo em vista que foi mantida constitucionalmente uma polícia militar, força auxiliar do exército. Decisão no mínimo imprudente dos legisladores, pois as forças armadas devem atuar na área defesa externa, e nada tem a ver com segurança pública.

Desta forma, tem-se pelo menos dois problemas muito evidentes: a) um choque de lideranças, à medida que as polícias militares são órgãos estaduais, ou seja, os comandos gerais das polícias militares são subordinados a dois senhores, formando por um lado a estrutura hierarquizada que liga os praças aos oficiais, ao comando geral, ao secretário de segurança pública e ao governador (orientação e planejamento); e, por outro lado, ligando o comando geral das polícias militares ao comandante do exército e esse por sua vez ao Ministro da Defesa que está vinculado diretamente ao presidente da República (controle e coordenação). Esses problemas passavam despercebidos ou ao menos eram minimizados pela inércia do exército no exercício de suas prerrogativas até 2018; b) a criação de um cenário de guerra perpétua. A subordinação ao exército, que nada entende de segurança publica, nem precisa entender, desumaniza os policiais, transformando-os em cães de guerra, submetidos a regimentos disciplinares incoerentes ao estado democrático de direito, convencidos que estão travando uma guerra sem fim, contra inimigos da vez, convenientes aos donos do poder. Disciplina, hierarquia e respeito não são sinônimos de militarização, polícias civis no mundo todo são regidas por esses três princípios.

O resultado desses problemas também tem duas faces: a primeira está relacionada aos policiais, que frente à uma memória institucional muito forte, não entenderam ainda sua função em uma democracia, compondo uma categoria literalmente desnorteada - fora de sentido. Os donos do poder, para manter o status quo, não permitem mudanças profundas na polícia e o saldo é um percentual alarmante de policiais afastados diariamente por problemas psicológicos ou psiquiátricos e uma taxa de suicídio quatro vezes maior que a da sociedade em geral. Em São Paulo, por exemplo, o número de policiais civis que cometeram suicídio, em 2021, foi três vezes maior que o número de policiais que morreram em serviço. A segunda é pertinente à sociedade, ignorante e vítima dos abusos cometidos por uma polícia desgovernada. Não são poucos os exemplos de violência policial. Na verdade, são raras as manchetes que versam sobre segurança pública que não sejam polêmicas ou revoltantes. A falta de entendimento sobre a função da polícia em um Estado democrático de direito, somada a ausência de proteção de direitos e de protocolos operacionais, aliada à punições desproporcionais, geram confusão mental e frustração que reverbera diretamente na sociedade, realçando as desigualdades sociais em forma de violência - em 2020, de acordo com o fórum brasileiro de segurança pública (FBSP), 13% das mortes violentas intencionais do Brasil foram cometidas em intervenções policiais e 79% desses mortos eram pessoas negras.

Em um país onde 63,5% dos policiais declararam ter sido vítima de assédio moral no ambiente de trabalho; 60% relataram ter sido humilhados e/ou desrespeitados por superior hierárquico; 28% disseram ter sido vítimas de tortura em treinamento ou fora dele (esse número sobe para 39% entre os policiais militares); 33% expuseram que foram acusados injustamente da prática de ato ilícito; 27% alegam que seu direito de defesa foi negado ou cerceado pela corporação; 55% afirmaram faltar apoio por parte do comando (superior hierárquico), além de não possuírem condições básicas para desempenhar suas funções de forma eficiente e segura; e 54,5% declararam faltar equipamentos pessoais de proteção (FBSP, 2015), fica evidente a intensão nefasta de afastar esses profissionais dos princípios de direitos humanos, pois ao terem cerceados seus direitos, os policiais são alimentados pela ideia de que direitos humanos é coisa de bandido.

Por outra perspectiva, a percepção que a sociedade tem da polícia afeta diretamente a vida privada do policial, conforme pesquisa do FBSP (2015):

  • 66% dos policiais já sofreram algum tipo de discriminação por serem profissionais de segurança pública (entre os PMs esse percentual sobe para 74%);
  • 35% dos policiais escondem sua profissão, de pessoas conhecidas.
  • 39% limitam o círculo de amizade e convívio social a colegas de trabalho.

Sentimentos e comportamentos que refletem o estado de saúde mental dessa categoria profissional.

Desta forma, a frágil democracia brasileira ver seus alicerces ruindo, seja pela perda progressiva de credibilidade das instituições públicas, quando apenas 31% da sociedade afirma confiar nas instituições policiais, segundo o relatório da escola de direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (2017), seja pelo fato de que um dos indicadores da qualidade da democracia de um país é justamente a forma como atua sua polícia, quando 51% dos policiais declararam ter receio e demonstram preocupação por falta de diretrizes claras sobre como proceder em situações do quotidiano, como: abordagens, prisões e uso da força - esse número salta para 70,5% entre os policiais federais, (FBSP, 2015).

No entanto, assim como não se pode dizer que a violência policial tem origem na ditadura, mas sim, que nela foi potencializada e normalizada, também não se pode dizer que a bomba-relógio chamada polícia brasileira foi acionada no governo Bolsonaro, pois nenhum governo democrático anterior fez as mudanças que precisavam ser feitas nas organizações policiais. Os donos do poder mantiveram o modelo de polícia sui generis, segregador e contraproducente, espólio da ditadura militar, mas que, ao mesmo tempo, é eficiente para manter as estruturas de poder e garantir o status quo. Ou seja, a verdade é que no Brasil, a esquerda mantém aquecido o rancor e o preconceito com a polícia, em uma espécie de acordo tácito de convivência pacífica, sem ingerência, onde as polícias têm autonomia para se autogerenciar, garantindo o sossego dos donos do poder; enquanto que, por outro lado, a direita se apodera das polícias e os donos do poder, por sua vez, utilizam-nas como milícias privadas, aumentando as desigualdades dentro das corporações, mantendo os privilégios dos comandantes, que seguram as tropas à base do chicote. Duas faces da mesma moeda!

Neste cenário, ao contrário do que geralmente ocorre quando há a transição de um estado autoritário para uma democracia, uma reforma imediata em tudo que se refere à gestão do poder de polícia, garantindo o controle, limitando a autonomia (sem eliminar a discricionariedade) e responsabilizando quem comete excesso, violação e violência no exercício deste poder; o Estado brasileiro escolheu omitir-se da responsabilidade de gerir suas polícias, dando margens à gestões paralelas, interesses privados, interferências político-partidárias, formação de milícias e ao risco de insurgência contra si mesmo.

Assim, enquanto a sociedade não entender que em uma democracia, o verdadeiro dono do poder é o povo, que a segurança pública é dever do Estado, que os policiais não são heróis nem vilões, são apenas servidores públicos - seres humanos - que trabalham mediante procuração pública dada pela própria sociedade, com a finalidade específica de garantir que o pacto social seja respeitado, sem violência nem violações; e que os representantes políticos, postos em seus cargos também sob procuração pública - o voto - para servir ao real dono do poder, devem assumir a responsabilidade de promover as mudanças estruturais, constitucionais e culturais que a polícia precisa, alheios a interesses privados e em busca do bem comum, assim como, garantir a gestão das polícias de maneira firme e democrática; o Brasil permanecerá na iminência de a bomba explodir e derrubar o que resta dos alicerces que ainda sustentam o Estado Democrático de Direito.

Carlos Frederico Vasconcellos Monteiro Rosa

Carlos Frederico Vasconcellos Monteiro Rosa

Doutorando em Direito e Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco; Especialista em Direito Penal e Processual Penal; Professor universitário; Pesquisador do Moinho Jurídico - UFPE; Coordenador do Programa de Extensão da Uniaeso: ARGOS - Segurança Pública, Justiça e Democracia; Membro colaborador da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB-PE.

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