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Intolerância contra nordestinos: possíveis causas e origem

A gênese do preconceito e outros atos de intolerância em relação ao nordestino se dá conforme afirmação de Albuquerque Jr.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Atualizado em 23 de junho de 2022 10:05

No Brasil, o fenômeno migratório é historicamente uma marca tatuada na cara do Nordeste do país. Por óbvio, não foi algo que ocorreu exclusivamente com o povo nordestino, entretanto, quando se fala de migração em seu aspecto econômico, climático, expressivo numérico e principalmente em relação à intolerância, aí sim, a migração do NE desponta como um grande fator histórico no Brasil. O problema da migração como distúrbio socioantropológico é algo que permeia as atividades dos estudiosos no assunto até hoje. Os efeitos que as grandes massas de trabalhadores rurais provocaram ainda no passado surtem, em alguns pontos, até nos dias atuais. Quando no início do século XX os nordestinos começaram a se deslocar para o Sudeste não havia qualquer espanto, ora em que ainda estava muito sutil a migração. Contudo, a partir da década de 30 do século passado (ALBUQUERQUE JR. 2012), quando a migração começou a chamar a atenção como fenômeno social migratório aos grandes centros urbanos, notadamente por conta da construção da rodovia Rio/Bahia, começou então a ser observado como fenômeno social relevante. 

Durante a década de 1930, a população local do Sudeste e autoridades públicas podem ter passado a enxergar os migrantes de forma negativa, pelo menos no que tocava a segurança pública, pois foi a partir daquela década que a figura do cangaceiro (lampião) começava a aparecer na literatura de forma romantizada, como no livro "Os Cangaceiros" de José Lins do Rego. Dessa leitura de comportamento do homem do Nordeste bruto, viril e quase alheio a sentimentos é que se constrói (ou se reforça) a imagem do Nordestino como um ser violento. Lá pelos idos dos anos 70, do século XX, era comum haver repressão policial aos festejos e ajuntamentos como forrós e outras manifestações da cultura do NE, como a capoeira também. 

A percepção da gente violenta traça um tipo de marginalização dos migrantes, quase como se fossem sobreviventes de uma guerra, encarando-os como um problema a ser enfrentado. A capoeira, por ser historicamente criminalizada, tinha uma rejeição mais antagônica, principalmente pelo fato de que os praticantes, geralmente, serem negros e muitos deles com forte estrutura corporal. Tanto era assim que já no nascimento da República a capoeira foi alçada como crime, se praticada em local público. Esta tipificação estava expressa no capítulo XIII, do decreto 847/90, que instituía o CP. O capítulo se chamava "Dos Vadios e Capoeiras" e traçava penas de prisão não só pela prática, mas por ações ou palavras que pudessem ofender ou ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou a segurança pública. Além destes fatores de rejeição por muitos naturais de São Paulo, ainda havia as críticas por conta de problemas de saneamento básico e das más instalações de moradias causados pelo crescimento demográfico migratório. 

No final daquela década, mais precisamente em 1939, ingressaram no estado de São Paulo cerca de 100.139 pessoas, das quais 66.492 vieram do Nordeste (VILLA, 2017, p. 29/30), isso já considerando que naquele ano começava a segunda guerra mundial.  Vale ressaltar que, ao passo que a migração ganhava volume em detrimento de problemas climáticos e administrativos públicos, havia em andamento a marcha econômico/industrial no Sudeste do país, à qual via no fenômeno da migração uma possibilidade para  inseri-lo no segmento capitalista de produção.    

O processo migratório, particularmente em relação a São Paulo, deu-se mediante o deslocamento das massas de trabalhadores que advinham, predominantemente, do sertão do Nordeste, povoando a capital paulista e sua região metropolitana desde a primeira década do século XX, ainda que de forma sutil (SP.GOV. 2016). De lá até nossa contemporaneidade, esse processo abreviou-se substancialmente, devido a uma leve melhora na economia local e a uma maior participação do governo Federal através de programas sociais. Entretanto, se por um lado a economia nordestina galgou melhoras, freando a saída de parte de seus habitantes, por outro, essa população passou a ser estigmatizada por uma parte dos 'sudestinos', mais notoriamente paulista e carioca. Esse estigma aos nordestinos é fruto de pensamentos xenófobos regionalizados gerados em parte pelo histórico da região NE e do perfil sócio/educacional das grandes massas de emigrantes, principalmente do passado. 

Um dos fatores determinantes no surgimento dos estigmas ao povo nordestino se deve ao pensamento intolerante de parte da população do Sul/Sudeste do país, a qual teve um comportamento negativo em relação a estes, porém, foram sempre dóceis e amistosos com imigrantes estrangeiros, salvo casos de atritos isolados. Mas, como ou quando surgiram esses comportamentos repulsivos intolerantes em face do povo nordestino? 

Não se tem uma data, um marco preciso de quando esses atos xenófobos regionalistas surgiram. Mas, pelo contexto histórico, podemos fazer uma leitura sensata nesse sentido. Primeiro, a população do Sudeste se viu surpreendida pelas centenas de milhares de pessoas advindas dos sertões do NE, principalmente entre as décadas de 30 e 50 do século passado. Nesta linha de entendimento, podemos, por conseguinte, imaginar que nesse interstício temporal esse comportamento possa ter surgido. 

Tal dedução pode ser entendida se imaginarmos que as grandes massas de trabalhadores daquela época eram formadas por pessoas sem qualquer instrução escolar. Assim, sem qualquer manejo com o idioma pátrio; junte-se a isso o sotaque bem peculiar do povo do sertão no meio da maior metrópole do país. Certamente, houve o natural choque entre as culturas em todos os sentidos, causando estranhamento e, consequentemente, as "brincadeiras" de mau gosto. 

Numa segunda acepção, podemos levar em conta aspectos comparativos entre os grupos de migrantes nordestinos e grupos de imigrantes europeus. Por óbvio que o resultado dessa comparação pode ter sido a veneração dos hábitos e idiomas estrangeiros e o menosprezo pela rusticidade das simples pessoas do interior nordestino. 

Nosso país, desde sempre, foi extremamente influenciado pela cultura europeia, é só lembrarmos de como as pessoas se vestiam e se comportavam em pleno verão tropical brasileiro nos séculos XVIII e XIX, por exemplo. Era moda de época usar roupas tipicamente londrinas ou parisienses mesmo embaixo do sol escaldante do Brasil. Ao se deparar com os próprios europeus no seu dia a dia, mesmo que num contexto histórico tão degradante a eles (europeus) provavelmente provocou nos anfitriões do Sul/Sudeste grande admiração e empatia por aqueles a quem, outrora, tanto foram imitados no passado. As comunidades de imigrantes reforçaram, ainda que de forma inconsciente, aquela antiga ligação cultural do Brasil com a Europa, principalmente em relação às elites que continuavam ligadas umbilicalmente à cultura europeia, hábito mental daquela época herdado do império (DE CICCO, GONZAGA, p. 275, 2011). 

O posicionamento desses autores anteriormente citados vem ao encontro da tese explicativa que aqui se procura firmar. De Cicco e Gonzaga concluem que as comunidades de imigrantes despertaram nos anfitriões sentimentos vanguardistas culturais, arraigados do período imperial. Provocando, por conseguinte, o que se afirma no começo deste parágrafo, quais sejam, empatia e admiração pelas versões originais daquilo que outrora só se copiava. A veneração aos imigrantes europeus pode ter contribuído para não haver nenhuma manifestação xenófoba contra eles, uma vez que não se sentiam como superiores, fator psicológico determinante para uma boa convivência. 

Por outro lado, viam suas cidades invadidas por nordestinos pobres e analfabetos (ROLNIK, 2013, online), sem qualquer domínio culto da língua madre e com sotaque estranho. Isso pode ter causado o início desse tipo de conduta antissocial tipicamente paulista e carioca, diga-se de passagem. 

É importante frisar, neste ponto da história, que tanto os nordestinos quanto europeus, como especificamente o caso dos italianos, eram majoritariamente pessoas pobres moradoras do campo. Grande parte dos italianos imigrantes não conseguia sequer sobreviver, quer seja no campo quer seja nas cidades onde morava na Itália. Por isso vieram em busca de sobrevivência no Brasil, assim como qualquer sertanejo buscou no Sudeste do país.

Esse fato explica o motivo pelo qual houve a saída, entre 1860 a 1920, de cerca de sete milhões de italianos (GOMES, 2000) do seu país de origem para tentar a vida em outras nações. Todavia, a depreciação sócio/cultural recaiu sobremaneira aos concidadãos do NE, como sendo um povo de hábitos estranhos e linguagem esquisita. Os migrantes nacionais foram estigmatizados como um povo que não sabe votar e quando o faz, "usa o estômago", ao passo que muitos do Sudeste votariam apenas nutridos de paixão onírica e idealística pela sua nação.

Extrai-se da assertiva mencionada acima que o preconceito ou a discriminação (atos de xenofobia regional) são emanados, também, de uma visão inferiorizada dos aspectos sociais, linguísticos, educacionais, financeiros e até políticos desses grandes volumes de pessoas. Mas, não é só. É preciso identificar o caráter geográfico e climático como fontes nutrientes desses comportamentos desdenhosos. Assim, por não terem escolaridade na sua maioria, os migrantes, humildes trabalhadores da zona rural, sempre ocuparam postos de trabalho braçal. Por terem baixo domínio do idioma pátrio, acabaram por ser engessados num ardil preconceito, por conseguinte, tal conduta desrespeitosa desaguou no bullying e este se estendeu a todos os nordestinos. Criou-se um estereótipo caricato do cidadão "nortista" como sendo membro de uma população leiga e desprovida de cultura e capacidade intelectual.  

Mas é verdade também que camponeses europeus tinham tanta desenvoltura educacional e financeira quanto qualquer sertanejo naquela época, por que, então, insistir no comportamento aversivo ao migrante do Nordeste? Por que jovens criariam um "movimento" chamado São Paulo para os Paulistas (2010), todos com idade entre 18 a 25 anos, cuja pretensão seria reagir ao "desrespeito" supostamente praticados pelos migrantes, por se comportarem "como se estivessem na sua terra"? (ACUNHA, 2014, p. 104). 

Pra responder a essa indagação, é preciso analisar o Brasil e o mundo pós segunda guerra. A partir de então, pode-se deduzir como os fatores de assimilação daquilo que seria o contexto sócio/cultural de migrantes e imigrantes, iriam direcionar a percepção do Sul e Sudeste diante desses diferentes povos.  Após a segunda guerra mundial, houve um planejamento estratégico, do ponto de vista econômico, para estimular a Europa a crescer e se reerguer, uma vez que o período de guerras a devastou financeiramente. 

Os EUA e os países vencedores se encarregaram dessa tarefa, principalmente os norte-americanos, os quais se preocuparam sobremaneira com a influência soviética naquele continente e com o avanço político ideológico desta que poderia conflitar com interesses deles. Deste cenário pós-guerra (e guerra fria) nasceu o chamado Plano Marshall em 1947, que tinha como objetivo o empréstimo e doações financeiras para os países europeus debilitados pelo período de guerras. Com essa ajuda norte-americana albergada pelo presidente Henry Truman, os países europeus conseguiram dar início à implantação de setores industriais e prover o mínimo necessário à população (ENC. ILUS. CONHECER 2000). Este apoio dos EUA possibilitou a elevação dessa meta ao que seria chamado de Estado de bem-Estar Social (Welfare State), que seriam as condições minimamente necessárias à manutenção da dignidade das pessoas. 

O cenário mundial ganhava contornos de paz e equilíbrio financeiro, principalmente na Europa. O estancamento de sangue e a promoção de crescimento econômico fizeram com que os países que perderam milhões de pessoas, seja por meio da guerra seja por conta da imigração, começassem a se reerguer e reconquistar o orgulho próprio. 

Entre 1948, quando efetivamente começaram as doações e empréstimos norte-americanos, e por volta de 1951, quando esse plano se encerrou, foram cerca de 18 bilhões de dólares concedidos aos parceiros europeus, financiando suas economias e reestruturando os países (ENC. ILUS. CONHECER 2000). A visão, portanto, que se passou a ter daquela gente miserável e decadente que vivia em condições deploráveis aqui no Brasil, pode ter ganhado um outro panorama na medida em que aqueles países se reerguiam. 

Nessa mesma época, o povo nordestino sofria tanto quanto as vítimas diretas das grandes guerras. Na mesma proporção em que as nações devastadas pelos grandes conflitos mundiais se restabeleciam, a região Nordeste em nada evoluíra. Inclusive, nessa época entre 1947 (criação do Plano Marshall) e 1951 (fim do Plano), foi um período em que a migração do sertão nordestino estava ocorrendo em grande volume em direção ao Sudeste. 

Na possível perspectiva analítica de parte do Sul e Sudeste do Brasil, pode ter havido a concatenação de certas premissas a partir do cenário em que esses povos foram enlaçados, após a segunda guerra mundial. Isso porque foi um período de importantes transformações geográficas, econômicas e políticas no mundo, determinantes para a criação de um modelo de vida sustentável e mais humano aos europeus. 

É só lembrar que foi justamente dentro desse interstício em que durou o Plano Marshall que foram declarados os direitos humanos em 1948, logo após a criação da ONU em 1945. Todo esse contexto histórico ajuda a vislumbrar como ocorreu o processo de criação do estigma da imagem desses imigrantes (europeus) e migrantes (nacionais), seja de forma positiva, (aos primeiros), e negativa (aos segundos). 

Em contrapartida, os grandes volumes de trabalhadores advindos dos sertões do Nordeste apresentavam um recorte social atrasado, com centenas de milhares de pessoas pobres, analfabetas em sua maioria e com hábitos estranhos aos naturais do Sudeste. É neste contexto que Albuquerque Jr. vai dizer:  

O fato de que a maior parte dos migrantes nordestinos não possuíam qualificação profissional, indo ocupar as atividades mais desqualificadas, gestou um outro preconceito, que atinge, inclusive,  os setores médios e intelectualizados da população da região, ou seja, a ideia de que o nordestino somente é capacitado para realizar trabalhos braçais e não atividades intelectuais.  (ALBUQUERQUE JR. 2012, p. 118) 

A gênese do preconceito e outros atos de intolerância em relação ao nordestino se dá conforme afirmação de Albuquerque Jr., no mesmo sentido já delineado anteriormente. Depreende-se, de tais explanações, um ideário baseado em complexas ferramentas contextualizadas a partir de uma leitura social, econômica e até antropológica, tanto de nordestinos migrantes quanto de europeus imigrantes, na compreensão de ambos. 

A gênese da xenofobia regional pressupõe um estado de coisificação social, contornando um histórico excludente daqueles que sempre foram vistos à margem do pensamento desenvolvimentista que lastreava o Sul/Sudeste do país. A dinâmica que a história passa é que o mundo já viu países quase desaparecerem em meio a guerras, catástrofes, etc. e se recuperarem novamente, ao passo que o NE parece nunca galgar qualquer esboço de melhoria ou superação, afirmando ou confirmando as premissas criadas e defendidas por uma parte do Sul e Sudeste, ao afirmar que aquela região representa o atraso do Brasil. 

Diante desse quadro, o migrante nordestino passa a ser visto como um sinônimo de representatividade do caos, não só climático ou intelectual, mas público. Se em certo período estavam equivalentes em grau de condições diante de imigrantes estrangeiros, após o período pós-guerras os migrantes flagelados das secas assumiram um triste posto no ideário do eixo Sul/Sudeste, o de que eram um verdadeiro empecilho para o crescimento do país, sendo vistos como o lado atrasado, um peso exaustivo que ninguém queria ajudar a carregar.

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ACUNHA, Fernando José Gonçalves. O combate à discriminação regional no Brasil: limites e possibilidades do direito. - Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2014.

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia - 2° edição. - São Paulo: Cortez. 2012.

DE CICCO, Cláudio, GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. - 3. ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 

GOMES, A. C. Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000

História: Da Idade Moderna à Época Contemporânea. In: Enciclopédia Ilustrada de Pesquisa Conhecer 2000 - São Paulo: Nova Cultural, 1995 - vol. 3.

ROLNIK, Raquel. Viva São Paulo, a maior cidade nordestina do Brasil! Yahoo. 09 de out. de 2013. Disponível em: Acessado em 24 de jul. de 2016.

SÃO PAULO.sp.gov.br. Migrantes. Disponível em: Acessado em: 15 de mai. de 2016.

VILLA, Marco Antônio. Quando eu vi-me embora: história da migração nordestina para São Paulo - Rio de Janeiro: Leya, 2017.

Marcelo Vasconcelo

Marcelo Vasconcelo

Advogado, articulista de portal na web, escritor independente, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da 3° subseção da OAB/SP, Curso em Direitos Humanitários e Direitos Humanos (2018).

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