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CPC moderno x processo moroso

A solução para esse paradoxo parece não estar na simples alteração da legislação processual, mas na necessidade de radical mudança: do modelo processual vigente, cartorial e burocrático para a desejável e real adoção do princípio da oralidade e simplificação do procedimento, notadamente na fase recursal.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Atualizado às 14:12

A preocupação com a lentidão processual é, para utilizarmos uma expressão muito ao gosto do saudoso ministro Athos Gusmão Carneiro, uma "antiga novidade".

Com efeito, já LOBÃO1, no século XIX, insurgia-se contra as dilações indevidas e defendia a sumarização do processo. O clássico ANDOLINA discorreu sobre o conceito de dano marginal, que decorre da simples demora na solução do processo.2 Entre nós, encontramos em CRUZ e TUCCI e BARBOSA MOREIRA perfeita radiografia desse problema.3

Ocioso seria aprofundar, neste ensejo, o exame das causas desse fenômeno, mas, pelo menos, três ressaltam claras: a excessiva judicialização dos conflitos, o baixo nível de ensino em muitas faculdades e a desarrazoada possibilidade de interposição de recursos.

Diversamente do que ocorre, por exemplo, no Reino Unido, no Brasil, a facilidade do ingresso em juízo e a ausência de punição rigorosa à litigância de má-fé, especialmente em relação aos clientes habituais da Justiça, contribuem poderosamente para o aumento do acervo a cargo dos juízes. E mais, tais problemas, aliados muitas vezes à baixa qualidade técnica e à permissiva recorribilidade do sistema, transformam o modelo vigente em algo semelhante a uma autobahn cheia de lombadas e semáforos.

Esclareça-se, para logo, que acesso à justiça não significa somente a possibilidade de ingresso em juízo sem barreiras, mas envolve o direito à tutela jurisdicional qualificada em tempo razoável, o que, infelizmente, não ocorre entre nós.

Em verdade, a promessa da razoável duração do processo, elevada a status constitucional, não foi ainda cumprida. Não se logrou substituir o modelo burocrático e cartorial por outro ajustado à evolução da tecnologia e às exigências da sociedade, que se mostra insatisfeita com a lentidão processual.

Alternativa seria, também, adotar um híbrido do melhor que já existe em nosso sistema com experiências externas que já se mostraram eficazes no que se refere a dotar o processo de maior agilidade e celeridade.

Em recente palestra ministrada na PUC-SP, o professor e pesquisador HENRIQUE ARAÚJO COSTA4 mostrou, por exemplo, que, nos países europeus, o tempo para se chegar à sentença, em média, é de 205 dias, enquanto, no Brasil, atinge o triplo. O que se poderia "importar" de lá para tornar mais rápido o nosso processo, considerando-se, ainda, o tempo necessário para a tramitação dos recursos e para a satisfação do julgado?

Vivemos atualmente um verdadeiro paradoxo: temos um CPC moderno, mas que manteve um modelo que não se ajusta à realidade atual o que, ao final, acaba anulando a pertinência, a efetividade e a própria legitimidade das inovações trazidas por essa modernidade.

Com efeito, quem tem familiaridade com o processo civil não pode deixar de reconhecer algumas inovações introduzidas pelo CPC/15: consagração do princípio da cooperação, proibição das decisões surpresa, previsão de audiência de conciliação no início do procedimento, saneamento compartilhado, incidente de resolução de demandas repetitivas, julgamento parcial do mérito, qualificação da prova como um direito, previsão expressa da prova emprestada e da ata notarial etc.

Por que, então, não se logrou alcançar a meta da razoável duração do processo? De que vale poder usar tantas ferramentas se, para vermos a máquina funcionar, é preciso permitir que se percorra todo e qualquer caminho, mesmo que às mais baixas velocidades?

A resposta parece não estar na simples alteração da legislação processual, mas na necessidade de radical mudança: do modelo processual vigente, cartorial e burocrático para a desejável e real adoção do princípio da oralidade e simplificação do procedimento, notadamente na fase recursal.

Tomemos alguns exemplos.

Nosso sistema recursal se complicou sobremaneira tornando árduo o iter para se alcançar a coisa julgada, que, ainda, pode vir a ser discutida em ação rescisória e, até mesmo, na pretendida relativização da coisa julgada. Há notícia de que muitos recursos do século passado ainda aguardam julgamento no Supremo Tribunal, que enfrenta a ilimitada judicialização dos conflitos na área política. A manutenção do efeito suspensivo da apelação converte a sentença no que o saudoso professor OVIDIO BAPTISTA DA SILVA5 chamou, em palestra, de "simples exortação ao cumprimento do dever". A alteração do Código, nesse aspecto, se impõe com urgência, na linha da tese de doutorado defendida, na PUC-SP, por MILTON PAULO DE CARVALHO FILHO6

Por outro lado, os magistrados de segundo grau, em geral afogados com a pletora de serviço, reclamam, com razão, do número excessivo de agravos interpostos para discussão de tecnicalidades em prejuízo do andamento normal da apelação.

Quando se fala, porém, em limitação do agravo à tutela de urgência ou à discussão da competência, ouve-se forte protesto supostamente inspirado no princípio do duplo grau de jurisdição e no acesso à justiça.

O que significa, porém, acesso à justiça? O que se deve entender por ampla defesa? O princípio do duplo grau de jurisdição tem caráter absoluto?

É de rigor deixar bem claro que o acesso à justiça deve ser garantido, mas com responsabilidade. Atualmente, bastam poucas linhas, muitas vezes com agressões ao vernáculo, para levar o recurso ao tribunal. O caminho para se chegar lá não pode ser tão fácil. Por que não se pensar em algo semelhante ao sistema inglês em que o acesso aos tribunais não é ilimitado?

Outra possibilidade seria estabelecer a necessidade de conjugação de pelo menos dois dentre os três critérios seguintes: relevância da matéria de fundo, ausência de jurisprudência a respeito do tema no tribunal local, existência de julgado favorável à tese em outro tribunal nacional e irreversibilidade do cumprimento da decisão agravada.

Quando se defende a manutenção do sistema atual, argumenta-se, com frequência, com o direito à ampla defesa. Com efeito, a defesa deve ser ampla, mas não ilimitada, especialmente no que se refere ao transcurso do tempo; ou seja, ela tem de ser fundamentada e pertinente (tanto quanto ao mérito, como no que tange à época de sua alegação), sob pena de se autorizar dilações indevidas e/ou inovações extemporâneas.

Aspecto importante relativamente ao agravo é a necessidade de simplificação do seu julgamento em segundo grau. Haverá sempre necessidade de formação do colegiado para apreciação de questões mais simples? Não seria suficiente o julgamento por um único magistrado?

O mesmo raciocínio é válido para a apelação, em certas hipóteses. Será necessário contar com a presença de três magistrados para julgar, por exemplo, um despejo fundado na denúncia vazia?

Também será útil - se é que em algum momento já foi - a possibilidade de oposição de embargos de declaração quando quem os julga é o mesmo magistrado - ou órgão - que atuou como relator na apelação ou agravo? Basta analisar o índice de acolhimento desta espécie de recurso para constatar que ele apenas contribui para agravar o quadro de morosidade processual.

Por último, há que discutir a oportunidade de adoção do sistema de protocolos prévios à propositura da ação e do disclosure (dever de revelar para o adversário as provas de que a parte dispõe a respeito da relação jurídica) para atender-se aos princípios da cooperação e da lealdade processual.

Assim, mais que apenas pavimentar a via processual com o melhor material e com a mais moderna sinalização, faz-se urgente tornar seu percurso mais reto e plano e retirar-lhe as lombadas, desvios e semáforos, para que se possa, de fato, alcançar a pretendida razoável duração do processo.

_____

1 LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de. Tratado pratico compendiario de todas as acções summarias. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859, t. 1, prefácio. O autor referia-se "aos inconvenientes públicos que resultam dos processos ordinários" e à necessidade de "se abreviarem as demandas".

2 ANDOLINA, Italo. Cognizione ed esecuzione forzata nel sistema della tutela giurisdizionale. Milão: Giuffrè, 1983, p. 16.

3 TUCCI, José Roberto Cruz e.  Tempo e processo. Uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual civil e penal. S.Paulo: Revista dos Tribunais, 1997 e MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da Justiça: alguns mitos, in REPRO 99, pp.141/150.

4 HENRIQUE ARAÚJO COSTA é professor na UNB e defendeu, na PUC/SP, em 2012, tese de doutorado com o título Os Poderes do Juiz na Inglaterra e no Brasil.

5 OVIDIO A. BAPTISTA DA SILVA preocupou-se com o problema do tempo no processo em várias obras sobre tutela cautelar, notadamente o seu clássico Do processo cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

6 MILTON PAULO DE CARVALHO FILHO é desembargador no TJSP e publicou sua tese com o título Apelação sem efeito suspensivo. São Paulo: Saraiva, 2010

Ricardo Augusto de Castro Lopes

Ricardo Augusto de Castro Lopes

Sócio-diretor de Castro Lopes Advogados Associados da área de contencioso estratégico, com foco em novas tecnologias, LGPD e propriedade intelectual. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, com master em Estudos da União Europeia pela Universidade Livre de Bruxelas - ULB e em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESP-SP.

João Batista Lopes

João Batista Lopes

Sócio-diretor de Castro Lopes Advogados Associados da área de contencioso estratégico, professor dos cursos de mestrado e doutorado da PUC-SP; desembargador aposentado e consultor jurídico.

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