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A desuetudo do art. 1º da lei 11.101/05

Alex Stochi Veiga

O presente artigo foi desenvolvido como resultado da participação do autor como membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB-SBC.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Atualizado às 08:40

Por outro lado, também não se considera como válida uma norma que nunca é observada ou aplicada. E, de fato, uma norma jurídica pode perder a sua validade pelo fato de permanecer por longo tempo inaplicada ou inobservada, quer dizer, através da chamada 'desuetudo'. A 'desuetudo' é como que um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente.1

O art. 1º da lei 11.101/05 circunscreveu ao conceito de empresário a legitimidade para requerer a Recuperação Judicial ou Extrajudicial e para constar do polo ativo e passivo da falência, fazendo referência ao conceito de empresário e sociedade empresária, já presentes no art. 966 do Código Civil2, sendo mera atualização da revogação do antigo Código Comercial e do advento do Código Civil de 2022, porém mantendo a linha restritiva do art. 1º do DL 7.661/45 que limitava o seu âmbito de aplicação aos comerciantes. Como bem lembra a doutrina, o projeto de lei 4.376/93, que viria a se transformar na lei 11.101/05 pretendia incluir as pessoas jurídicas civis que exerciam atividade econômica, porém tal inovação legislativa foi barrada no senado3.

Como bem aponta Emanuelle Urbano Maffioletti4, o fundamento para a restrição do instituto da falência aos comerciantes deriva da maior utilização de crédito por parte dos empresários, e da índole punitiva e gravosa do instituto, conceito já rechaçado pela doutrina atual, que não enxerga mais na falência uma punição ao falido, como leciona Marcelo Barbosa Sacramone5. A Recuperação Judicial e a Recuperação Extrajudicial, por seu turno, jamais tiveram um caráter punitivo, mas de preservação da atividade econômica (art. 49 da lei 11.101/05), desde sua origem, no caso Wabash, St. Louis and Pafic Railway6.

Ao tempo da vigência do DL 7.661/45 e do CPC/73, aos comerciantes insolventes era reservada a falência e a concordata, já aos devedores não comerciantes era reservada a insolvência. O vigente Código de Processo Civil, por outro lado, não regulamente o instituto da insolvência, como seu antecessor. Mais recentemente foi permitida a Recuperação Judicial do produtor rural, com fundamento no caráter meramente declaratório de sua inscrição na Junta Comercial competente, e a criação da SAF, o que demonstra que há uma intenção do legislador de mitigar e contornar a restrita limitação da legitimidade para a Recuperação Judicial/Extrajudicial e Falência imposta no art. 1º da lei 11.101/05.

A jurisprudência que já chegou a negar um pedido de Recuperação Judicial distribuído por associação (podendo ser citado o caso São José Esporte Clube), com fundamento na "ausência" de fonte produtora, função social da empresa e estímulo a atividade econômica na extensão de tal "benefício" (instituto da Recuperação Judicial) as pessoas civis, como conta a doutrina7, atualmente, sem alteração do art. 1º da lei 11.101/05, vem permitindo que as pessoas jurídicas civis se valham da Recuperação Judicial, como se vê em inúmeros precedentes, tais como do Figueirense Futebol Clube, Universidade Cândido Mendes etc.

Tal questão está em vias de ser apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao menos como obter dictum, no REsp 2.025.509/RS, que aportou no referido Tribunal Superior em 1/9/22 e foi autuado em 12/9/22, como se verifica do arresto que decidiu Agravo de Instrumento em Pedido de Contracautela, AgInt no TP 3.654/RS. Nas palavras do voto-vencedor, Min. Luis Felipe Salomão:

"a controvérsia principal está em definir, em juízo ainda superficial, se há legitimidade ativa para apresentar pedido de recuperação judicial das associações civis sem fins lucrativos, porém com finalidade e atividades econômicas. (.)

Nesse passo, tenho que a possibilidade de recuperação judicial das associações civis é tema latente, que vem dividindo o entendimento tanto da doutrina especializada quanto da jurisprudência."

A prosperar decisão favorável no Superior Tribunal de Justiça a tese de que as associações podem requerer Recuperação Judicial, eventualmente confirmada em Embargos de Divergência, dada a valorização de seus precedentes (v.g. art. 489, VI, do CPC)8, mesmo os meramente persuasivos, se estará diante de peculiar caso de desuetudo, estimulando ainda mais pedidos de Recuperação Judicial/Extrajudicial de pessoas civis, e, por fim, a revogação, via costume, de parte do art. 1º da lei 11.101/05.

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1 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Martins Fontes, São Paulo, 2.003, p. 237-238

2 COELHO, Fábio Ulhôa. Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. Revista dos Tribunais, 14ª ed digital, São Paulo, 2.020, p. 33.

3 MAFFIOLETTI, Emanuelle Urbano. Disposições Preliminares. O Campo da Nova Lei. In: VERÇOSA, Haroldo Malheiros Dulclerc. Direito Comercial - Falência e Recuperação de Empresas - Vol. 6, Dialética, 2ão Paulo, 2.021, edição eletrônica, p. 78-79.

Opus cit, p. 75.

Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Saraivajur, 2ª edição eletrônica, São Paulo, 2.021, p. 631.

6 MILLER, Harvey R.; WAISMAN, Shai Y. Does Chapter 11 Reorganization Remain a Viable Option for Distressed Businesse for the Twenty-First Century?, Americam Bankuptcy Law Journal, vol. 78, 2.004, pp. 163

7 COELHO, Fábio Ulhôa. Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. Revista dos Tribunais, 14ª ed digital, São Paulo, 2.020, p. 46.

8 CÂMARA, Helder Moroni. Ampliação do Efeito Vinculante das Decisões do STJ como Corolário do Princípio da Legalidade e Meio Hábil a Propiciar Celeridade e Efetividade Processual. In: DANTAS, Bruno at all. O Papel da Jurisprudência no STJ. Revista dos Tribunais, 2.014, São Paulo, p. 165-176.

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O presente artigo foi desenvolvido como resultado da participação do autor como membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB-SBC.

Alex Stochi Veiga

Alex Stochi Veiga

Advogado e Administrador Judicial e Membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB de São Bernardo do Campo. Bacharel em Direito pela FDUSP (2.009), Pós-graduado em Responsabilidade Civil pela FGV (2.014) e Aluno Especial da Pós-Graduação Lato Sensu da FDUSP (2.020).

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