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O mínimo existencial legislado e a realidade econômica: o equilíbrio na relação de crédito

A revisão dos modelos e dos padrões de como o crédito é entregue e de como ele é usado é o ponta pé essencial para uma salutar relação com o dinheiro e, nesse sentido, assecuratório da busca da dignidade.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Atualizado em 13 de outubro de 2022 14:39

A preservação do "mínimo existencial", assegurada como direito básico do consumidor, nos termos do art. 6º, incisos XI e XII, do Código de Defesa do Consumidor ("CDC")1, conforme inclusões feitas pela lei 14.181, de 1 de julho de 2021, foi regulamentada por meio do decreto 11.150, de 26 de julho de 20222.

A intenção é a de preservar e não comprometer a renda mínima mensal do consumidor, que, para fins do citado Decreto, equivalente a 25% do salário-mínimo vigente na data da sua publicação, ocorrida em 27 de julho de 2022. Sendo uma lei federal, leia-se que este salário-mínimo condiz com o salário-mínimo promulgado pelo Senado Federal para 2022, qual seja, R$ 1.212,003. Portanto, R$ 303,00 é o mínimo existencial atualmente a ser preservado ou não comprometido mês a mês.

Mas preservado ou não violado contra o quê? Contra as parcelas das dívidas, vencidas e a vencer no mesmo mês, assumidas pelo consumidor pessoa física versus a renda total mensal desse mesmo consumidor, conforme dispõe o parágrafo 1º do art. 3º do citado decreto4.

Contudo, são excluídas dessa limitação as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo, bem como as parcelas das dívidas: a) relativas a financiamento e refinanciamento imobiliário; b) decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais; c) decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval; d) decorrentes de operações de crédito rural; e) contratadas para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES; f) anteriormente renegociadas na forma do disposto no Capítulo V do Título III da lei 8.078, de 1990; g) de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor; h) decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; e i) decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos; II - os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; e III - os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré- aprovadas5.

Ademais, o mesmo Decreto, nos termos de seu art. 5º e respectivo parágrafo 1º dispõe que a preservação do mínimo existencial não é impedimento para a concessão de crédito que visa a substituir outra(s) operação(ões) de crédito anteriormente contratada(s), desde que a nova linha de crédito traga melhores condições ao consumidor, seja na mesma ou em outras instituições financeiras, sendo certo que, quando se referir a substituição de crédito por outra melhor em diversa instituição financeira, deverão ser observadas as regras de portabilidade do CMN, atualmente regulamentada pela Resolução 4.292, de 20 de dezembro de 2013, do Banco Central do Brasil6.

A par das situações excepcionais listadas acima, que não precisam observar a preservação do mínimo existencial, quer porque são situações com regramentos especiais ou com garantias que assegurarão a dívida assumida, muito se tem criticado a exceção genérica trazida pelo caput do art. 4º do citado Decreto, que se refere à exclusão das dívidas e aos limites de crédito não afetos ao consumo da preservação do mínimo existencial, que, no linguajar dos críticos, é matéria decorrente de lobby das companhias do mercado financeiro.

Sem entrar diretamente no aspecto de ser lobby ou não, até porque esse tema abre inúmeros aspectos para discussões infindáveis, que não guardam serventia para a discussão que me proponho, agora e aqui, o que se deve ter em vista é que a referida disposição legal é, no mínimo curiosa, e até, mesmo, para os tais críticos. Por quê? Simplesmente porque, de per si, toda relação de crédito com instituição financeira é uma relação de consumo.

Nesse sentido, em sentido contrário do que parece querer dispor o legislador, podemos afirmar que os créditos ou a "dívidas" contraídas pelo consumidor juntos à instituição financeira, por si, são afetas ao consumo e, portanto, estariam, sim, sujeitas à limitação do mínimo existencial.

Agora me questiono: terá sido essa mesma a real intenção do legislador ao redigir tal disposição? Claramente aqui estamos diante de um tema que, por certo, trará algumas discussões acaloradas junto aos nossos tribunais e juristas afetos à temática.

De qualquer forma, a par de tais possíveis embates judiciários e/ou doutrinários que se farão ouvir de agora em diante a respeito do tema, uma coisa é certa: a postura de criar-se um mínimo existencial a ser protegido, por si só, não soluciona ou sequer minimiza a dor daqueles que se encontram em precárias situações financeiras e que os fizeram recorrer ao exercício do seu direito à garantia de tal mínimo para sua existência digna.

A tessitura das relações dos cidadãos brasileiros com as finanças é bem precária, ainda mal elaborada, gerida e tratada, e demanda uma ação conjunta da tríade sociedade-entes atuantes no mercado-poder público, sem o quê, qualquer perna sozinha será uma tentativa inofensiva, para não dizer desastrosa, pois gerará desequilíbrio em zona já instável.

Veja-se que o próprio legislador mantém o viés arcaico, que se quer revisitar, de assumir que os créditos ou linhas de créditos buscadas pelo consumidor junto a instituições financeiras são meramente dívidas. Enquanto se mantiver essa leitura, a posição do tomador de crédito será sempre a da pessoa reduzida a uma situação vexatória e crítica, como se fosse o mote central da problemática econômica em que vivemos.

Enfim, aqui apenas um alerta: lidar com crédito, no Brasil, seja na qualidade de agente intermediário da sua concessão, seja na de agente concedente é, antes de tudo, um dever fiduciário, na medida em que exige que se cuide dos interesses financeiros alheios (leia-se do consumidor do crédito) justamente em benefício desse terceiro e não em benefício próprio.

O mínimo existencial é um direito, sim. Ponto. Mas ele por si não é nada se não houver um contexto no qual possa ser exercido de forma plena e segura. Olhar-se por um lado - criticando-se os participantes do mercado financeiro e acusando estes como se fossem o mal gerador dos problemas dos consumidores de crédito (ou a malfadada dívida) - ou apenas de outro - tornando o consumidor, que não consegue ou não sabe lidar com suas questões financeiras, como se fosse o culpado dos problemas econômicos -, é persistir no erro que cometemos até hoje: de ver a relação com o crédito como algo medonho, dolorido e pesaroso. Dívidas deletérias e nada mais.

O crédito precisa ser visto como algo bom, desde que saiba ser bem usado e bem entregue, portanto, gerido, de lado a lado, de forma equilibrada, perdendo o estigma de dívida que há muito permeia a nossa sociedade, adoecida pelos tempos críticos vividos.

A dignidade da pessoa humana é princípio constitucional e se refere à garantia das necessidades vitais de cada indivíduo, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1º, III, da Constituição Federal. O mínimo existencial que se quer preservar guarda total relação com essa vida digna.

Para tanto, a revisão dos  modelos e dos padrões de como o crédito é entregue e de como ele é usado é o ponta pé essencial para uma salutar relação com o dinheiro e, nesse sentido, assecuratório da busca da dignidade; quem souber tratar isso na base de educação e respeito pelo consumidor que quer crédito (e não dívida) sairá na frente.

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Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas; XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito..     

2 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11150.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2011.150%2C%20DE%2026%20DE%20JULHO%20DE%202022&text=Regulamenta%20a%20preserva%C3%A7%C3%A3o%20e%20o,C%C3%B3digo%20de%20Defesa%20do%20Consumidor. Acesso em 9.8.2022.

3 Lei nº 14.358, de 1.6.2022. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/35919409/publicacao/35922033. Acesso em 9.8.2022.

Art. 3º  No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a vinte e cinco por cento do salário-mínimo vigente na data de publicação deste Decreto. § 1º  A apuração da preservação ou do não comprometimento do mínimo existencial de que trata o caput será realizada considerando a base mensal, por meio da contraposição entre a renda total mensal do consumidor e as parcelas das suas dívidas vencidas e a vencer no mesmo mês.

5 Nos termos do art. 4º, parágrafo único, incisos I, II e III, do Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022.

6 Disponível em https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/res/2013/pdf/res_4292_v1_O.pdf. Acesso em 9.8.2022.

Andréa Ueda

Andréa Ueda

Diretora Jurídica, de Compliance e PLD/CFT da Open Co Tecnologia S.A., graduada, com Mestrado e Doutorado em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, pós em Administração de Empresas pela FGV/SP e MBA em Gestão Exponencial pelo IBMEC.

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